Tenho muitas saudades de estudar. Até já pensei inscrever-me numa pós-graduação ou num mestrado, mas depois penso nos exames e nas orais e a vontade vai-se num instantinho.
Do que eu tenho mesmo saudades é de fazer resumos à mão no caderno, sublinhar com cores e fazer das esplanadas as minhas mesas de estudo. Eu era essa pessoa. O que já não me apetece tanto é ter que decorar e provar que sei. Que canseira. É por isso que desisto sempre e aposto a minha formação em workshops e cursos práticos, que normalmente envolvem comer bem e viver melhor.
Só nesta quarentena, já aprendi a fazer pão, a fazer detergentes caseiros, já fiz um desafio de 21 dias de meditação, faço ioga online de manhã e treinos com PT virtual à tarde.
A quarentena foi buscar o que de mais infantil temos em nós. E quando digo infantil, é no bom sentido, naquele do usar a imaginação, lembram-se? Da areia da praia fazíamos croquetes, com uma bola de papel e caricas estava feito um campo de futebol e com meia dúzia de riscos no chão estava desenhada uma macaca capaz de nos cansar uma tarde inteira.
E nisto do faz de conta que a quarentena pede, já fiz do meu pátio uma praia com direito a biquini, já tive dates com direito maquilhagem na cara e velas na mesa e já pus lives com DJ bem alto para sentir que ainda sei sair à noite.
No meio desta loucura de coisas novas, ouvi falar em Telescola e o meu cérebro fez rewind até ao Estado Novo. Ora vejam. Ajuntamentos? Proibidos. Medo generalizado? Algum. Comentários pidescos a tudo o que fuja à norma? Vários. E agora, uma escola à distância? Sim, ainda que desta vez não seja pensada para os alunos das zonas rurais e isoladas. Neste momento, todos vivemos numa micro aldeia.
Nisto do faz de conta da quarentena, acordei cedo, tomei o pequeno-almoço e ainda não tinha tocado para entrar — eu sou muito forte nisto da imaginação — ja eu estava na cadeira mais próxima do quadro. Na verdade estava de manta e chinelos sentada no sofá em frente à televisão mas, hey, a professora nunca vai saber.
Foram praticamente nove horas de aulas, das 9 às 18 horas, onde aprendi sobre o Império Romano, sobre células e até relembrei, ainda que em isolamento, que puedo hablar con mis amigos y jogar a la consola. E aqui vai o que de melhor e pior teve este dia de volta à escola. A seguir já posso ir brincar para a rua? Posso, posso?
Palmas para estes professores
Se me dissessem agora: "Para a semana vais falar sobre o teu trabalho para uma câmara e essas imagens vão passar em televisão". Pá, enfiava-me no primeiro buraco e de lá não saía até que o autor dessa ideia tivesse desistido de jogar às escondidas. Se calhar estou a levar isto do faz de conta longe de mais. Bom, avante.
Estes professores não foram obrigados a estar ali, mas quase de certeza que, de repente, os quase trinta alunos dos quais sempre se queixaram de serem demasiados para uma sala só, de repente, pareciam o número perfeito. Fiz o teste. "Mãe, e se te chamassem para a Telescola?". Resposta: "´Tás maluca! Mas é que nem a brincar". E isto vindo de alguém que enfrenta salas cheias há quase 40 anos.
Alguns estão ali às aranhas, mas eu prefiro o reforço positivo. Tal como a professora Ana Carla Ferreira diz antes de começar a ensinar sobre Camões aos alunos de 9.º ano, "o que vão ver agora é uma aula de português e não um programa televisivo".
Ainda assim, temos sempre uns preferidos e a Isa, não sei se por ser a primeira, ficou-me no coração.
Fala sempre na terceira pessoa, talvez porque tem como público os miúdos do 1.º e 2.º ano. Ouvir "a Isa isto", "a Isa aquilo", dá aquela sensação de pertença. Sinto que, mais logo, a Isa me vai ler uma história antes de dormir.
Mas para já, começa a dividir palavras por sílabas. "Que outras palavras conhecem que começam com a sílaba 'ca'"?, pergunta. Rio para dentro porque a piada seria demasiado fácil e ainda nem são 9h15, há que ter tento na língua.
Tive ainda que trocar sílabas de "lobo" para "bolo" e descobrir que existe uma "asa" na palavra "casa". 9h30, sem toque de campainha, acaba a aula, e Isa reage com alívio, talvez uns segundos antes de ouvir o "corta" da equipa de realização. Não faz mal. Queremos é realismo.
Dez minutos depois, volta ao ecrã para a hora da história. Eu, admito, aproveitei para ir buscar um café à cozinha. Ainda que na minha cabeça estivesse aquele pacotinho de leite pintado com desenhos infantis que todos nós tivemos na escola primária. Não tiveram? Olhem, tenho pena. Mas é que ficava mesmo bem com o pão com marmelada que a minha mãe me punha no saquinho de pano a dizer "merenda", ainda a ecologia não tinha lugar no curriculum do Estudo do Meio.
Ainda voltei a tempo do último livro que Isa escolheu para ler e percebi que, com 33 anos, tenho o cérebro hiperativo de uma criança de nove quando, em vez de estar atenta à história, estou no site da Dr. Martens à procura das botas amarelas da professora. É que eram mesmo giras.
Não sei se é por ser de Humanidades — claro que é — mas as minhas professoras preferidas foram mesmo as de Português. Daniéis Oliveiras desta vida, alguém vá buscar a Teresa Cadete Sampainho, que nasceu para isto. Vestida de forma simples, mas sem ser aborrecida. Olhar incisivo para a câmara, discurso fluido de quem não precisa de guiões, e matéria dada de acordo com a realidade atual. Por exemplo, para ensinar o significado de temeridade, usou o exemplo dos portugueses que enfrentaram o vírus — e o discernimento — para ir para a praia naquele fim de semana fatídico na praia de Carcavelos. Por outro lado, e para dar um final feliz à coisa, mostrou também a imagem de dois médicos num hospital. "São os verdadeiros heróis", lembra. Esta sim, uma temeridade justificada.
E não é que até me safei nas aulas?
Faz muitos anos desde que me sentei a última vez numa sala de aula e, ainda que tenha passado a disciplinas tipo Semiótica, se me pedirem para fazer contas de dividir à mão com mais de dois dígitos, esqueçam. Isso é o mesmo que me pedirem para fazer ponto cruz. Sei que a minha mãe me ensinou a fazer um dia, mas se repeti? Não. E contas à mão seguiram o mesmo caminho, o da gaveta do meu cérebro no qual raramente mexo.
Mas como o início da manhã era para a escola primária — sei que agora se fala em ciclos, mas façam a conversão — pensei, estou safa.
Na aula de Português, as professoras Sandra Simões e Helena Frazão avisam que vamos construir um horário e que é preciso um caderno, um lápis e uma régua. Régua? O máximo que encontrei foi uma fita métrica, mas deve servir.
Até me senti à vontade com a tarefa, ao contrário das professoras, que esganiçavam a voz para se darem a entender aos mais novos. Saudades da Isa, que falava na terceira pessoa, como é tendência dos professores de crianças pequenas, mas num tom menos Cristina Ferreira.
Helena remata a aula numa tentativa de improviso e pergunta, "Oh Sandra, e não temos uma surpresa?". "Temos sim", responde a professora, a fazer lembrar o Mike e o Melga do Herman José e José Pedro Gomes. E sai dali uma canção, com a letra a passar em baixo, ao estilo de karaoke. E quando é karaoke, não puxem por mim. À falta de um "De mulher para mulher", lanço-me sem medo num "Vai começar uma aula, diferente do normal. Quando deres por ti, vais ver que já e banal"
Próxima aula: Matemática. Agora é que a coisa complica. É que tabuada, só no livro do Ratinho. E prova dos 9? Amigos, eu provo tudo, menos língua de vaca e números difíceis.
Ah, mas continuamos nos horários? Boa, nisso safo-me. Das 12 às 15 horas são 15 minutos, ou seja, um quarto de hora. Meia-hora são duas vezes quinze minutos. Matemática era isto? Fogo, afinal adoro.
Seguiu-se uma aula de Ciências mas aí, desculpem, ouvi a palavra citoplasma e de repente o foco virou-se para a lista de compras, para o que me apetecia de almoço, para a conta de água que me faltava pagar e para a roupa que estava lá fora e, caraças, começou a chover.
Na aula de Espanhol aprendi que nos meus tempos livres posso bailar, escuchar musica, chatear, hablar por messenger, hacer ejercicio fisico e jugar a las cartas.
Quantos versos têm "Os Lusíadas"? 8816. Criadores do primeiro microscópio eletrónico? Ernest Ruska e Max Knoll. Quantos tipos de células temos? 130. Acho que estou safa.
O melhor da Telescola são os intervalos
Ainda não vos convenci a ver a telescola pelos conteúdos nem pelos professores esforçados? Pronto, liguem-se à RTP Memória para ver os intervalos. Os conteúdos que passam entre programas são mais ricos do que muitos dos programas que passam noutros canais.
Ele é quizzes, videoclips, mini entrevistas, visitas guiadas aos Açores e um Carlos Lopes a ser campeão mundial de corta-mato.
Sou suspeita, que quem me mete numa hemeroteca ou num sótão antigo vê-me mais feliz do que numa Zara com voucher na mão. Mas a verdade é que ainda não eram sequer dez da manhã e já tinha visto as Doce em rosa total a cantar OK KO. E mesmo que fosse numa pausa da telescola, aprendi algumas coisas: Laura Diogo não só não cantava como nem se esforçava para um bom playback, a Teresa Miguel era a que mais curtia estar em palco, a Fátima Padinha tinha um corpaço, mas a Helena Coelho é que mandava naquilo tudo.
Ainda na música, deu para um concerto dos Xutos e Pontapés nas celebrações do 1 de maio de 1983 e para uma das canções que Tiago Pereira captou no projeto "A música portuguesa a gostar dela própria".
Desporto? Também há. Vi Aurora Cunha a ser campeã mundial de estrada e o Carlos Lopes a ganhar tudo e a todos movido, não a géis e barrinhas energéticas, mas a bifes com batatas e um bom copo de vinho. Não lhe fosse dar a fraqueza.
Houve ainda visitas guiadas a Évora, Porto e São Miguel, imagens do incêndio do Chiado, a 25 de agosto de 1988, ou da primeira emissão da RTP, a 7 de março a 1957.
Até quizzes. Quem interpretou o papel de "A Banqueira do Povo"? De braço no ar, grito Eunice Muñoz. Ganhei. A quem? Não interessa. Estamos todos a brincar ao faz de conta, ok?
E a quantidade de vezes que repetiram a vinda de Walt Disney a Portugal? Já sei os diálogos de cor. Disse que, ainda que não falássemos a mesma língua, percebeu que éramos muito simpáticos porque lhe sorríamos na rua. Ah, e suspeitava que tínhamos um grande sentido de humor. Oh Walt, anda cá agora. A máscara é capaz de nos ter camuflado o sorriso, mas sentido de humor, esse, está cá sempre. Eu, por exemplo, imagino que no próximo sábado, um médico enfie um estetoscópio no cano de uma espingarda e que, sem tiros nem sangue, o COVID faça marcha atrás neste mundo que nos pôs a aprender pela televisão.