Está um dia maravilhoso de sol. Pelo meio da vegetação, o rinoceronte-negro corre a toda a velocidade, aterrorizado com a seringa que acabou de perfurar-lhe a pele. O barulho ensurdecedor do helicóptero estraga a acalmia da paisagem. Depois de disparar o tiro certeiro, o veterinário recolhe-se para dentro. Vão tentar aterrar a qualquer momento.

Nós estamos do outro lado do campo, a seguir os movimentos do animal de jipe por uma estrada de terra batida. O animal não para de correr, agora já aos ziguezagues. Não está a conseguir controlar os movimentos. De repente, desaparece entre a vegetação. Caiu, exausto, em pânico.

A agitação instala-se em terra. O helicóptero aterra ali perto e, a correr, o veterinário, alguns voluntários e membros da reserva privada, os responsáveis pelo que iria acontecer a seguir, chegam perto do rinoceronte.

É tudo muito rápido: uma pessoa coloca-lhe uma venda nos olhos, outra tapa-lhe os ouvidos com uns auriculares improvisados. A ideia é manter o rinoceronte-negro o menos alerta possível porque, explicaram-nos antes, ele não está completamente a dormir. Até porque isso poderia ser fatal.

Estamos na &Beyond Phinda Private Game Reserve, situada na província sul-africana de KwaZulu-Natal, a quatro horas de carro de Joanesburgo e a 300 quilómetros de Durban. Há exatamente dois anos, em 2016, a reserva privada tomou a decisão de cortar os chifres de todos os seus rinocerontes brancos e negros devido à pressão dos caçadores furtivos. Dois anos depois, começam a repetir o processo, porque o corno volta a crescer — atingiu metade do tamanho original, sendo já suficientemente valioso para ser vendido no mercado negro.

A medida é extrema, mas eles garantem que é indolor (a metáfora utilizada é o corte das unhas no caso dos humanos) e que não traz consequências para o animal (não há conflitos entre os animais que tornem necessária a utilização do chifre para se protegerem). Mais importante do que tudo, está a salvar a espécie: ao cortar os chifres do animal, ele deixa de ser valioso para os caçadores furtivos que assim deixam de os matar.

"As ameaças aos rinocerantes são conhecidas, estão na comunicação social há dez anos. Há muitas opiniões, ideias e estratégias diferentes sobre a forma de lidar com o problema. O que vão ver hoje foi algo a que as reservas privadas, e algumas estatais, tiveram de recorrer para assegurar a espécie", diz o  veterinário Mike Toft ao grupo de jornalistas, reunidos na reserva Phinda para testar o novo Huawei P20 Pro.

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Os números são dramáticos. Mais de sete mil rinocerontes foram caçados ilegalmente na África do Sul nos últimos dez anos. Começou em 2008, 2014 foi o pior ano — 1.215 animais morreram vítimas dos caçadores. Num país onde tanta gente passa fome, matar rinocerontes é um negócio atrativo, sobretudo quando chegam a conseguir 100 mil dólares (mais de 84 mil euros) por quilo de chifre no mercado negro.

E porque é que o chifre é tão valioso? Porque é vendido como cura para doenças, afrodisíaco e um sinal de riqueza — em algumas culturas é comum tê-lo em casa para mostrar aos outros como se deram bem na vida.

"Culturalmente, no Extremo Oriente, o chifre tem sido utilizado como medicamento para constipações, ressacas, cancros e como afrodisíaco. Para uma série de coisas que não têm qualquer validade científica, mas é difícil mudar essa ideia. Mas está também a transformar-se numa espécie de cocaína. O chifre do rinoceronte é algo que exibes quando deténs dinheiro", continua o veterinário.

Como é que funciona a retirada dos chifres dos rinocerontes

São 8h48 quando nos aproximamos do rinoceronte-negro caído no chão. Com um balde, uma voluntária vai atirando-lhe com água, para garantir que a temperatura corporal não sobe demasiado. Outros retiram-lhe amostras de sangue e ADN, outros ainda confirmam se o animal já tem um chip — tem, a máquina apita e é possível perceber que aquele rinoceronte está na base de dados.

É o veterinário que tira o chifre. E não há maneira simpática de o fazer, tem mesmo de ser com uma moto-serra. Quando o processo está completo, limam as arestas e colocam um spray — um desinfetante roxo. É tudo muito rápido porque, apesar da anestesia ser duradoura, o animal pode reagir a qualquer momento. Quando está tudo completo, as pessoas afastam-se e o veterinário aplica no rinoceronte uma injeção que reverte os efeitos de anestesia. Depois é correr — ele está prestes a acordar.

O rinoceronte-negro é muito mais violento do que o branco. É por isso que, quando acorda, já estamos dentro dos jipes quase a partir. Se ele caminhar na direção das pessoas, é pôr o pé no acelerador e fugir — ele destrói tudo o que vê à frente. Não é o que acontece: o rinoceronte desloca-se na direção contrária a fugir, totalmente revitalizado. Precisou de poucos segundos para se recompor.

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Esta foi a primeira retirada dos chifres a que assistimos. Quando abandonamos o local já há informação de que foi avistado um rinoceronte-branco não muito longe dali. É verdade: precisamos de pouco mais de dez minutos para chegarmos ao animal, que caminha lado a lado com outro. Ao contrário dos rinocerontes-negros, os brancos costumam andar acompanhados.

"O amigo não vai tentar defendê-lo?", pergunta alguém. Mike Toft abana a cabeça. "Ele vai afastar-se. Quando acordar outra vez, ele chama-o e voltam a encontrar-se."

O helicóptero continua no ar. Houve um problema com o disparo da primeira seringa, sendo que o mais provável é que não tenha descarregado o conteúdo anestésico no corpo do animal. Não há certezas absolutas, mas é preciso arriscar. Assim, o veterinário volta a aproximar-se da porta e atira a segunda seringa.

O mais impressionante de todo o processo é ver como estes animais lutam contra o efeito da anestesia. Como o rinoceronte-branco é muito mais pacífico e não ataca, podemos aproximar-nos enquanto o conteúdo da seringa ainda está a fazer efeito. Ele recusa-se a parar e, quando já não aguenta mais, recusa-se a cair. E não se deixa cair nunca, na verdade — tem de ser a equipa a aproximar-se dele e a forçá-lo a deitar-se no chão.

Temos detetores de mentiras. Todas as pessoas que trabalham no campo e que podem passar informações importantes às pessoas erradas têm de passar por estes testes todos os anos."

O processo recomeça. Ao fundo, a uma distância bastante segura de nós, o outro rinoceronte observa tudo o que se está a passar. Já não falta muito para se voltarem a reunir. Quando a operação termina, voltamos para os jipes e o veterinário volta a injectar a substância que o faz acordar. E ele levanta-se, faz um som e começa a caminhar na direção do amigo. Quando se reencontram, fogem juntos pela savana.

Os chifres que são retirados aos animais são enviados para Joanesburgo, guardados num vault e muito provavelmente acabam por ser destruídos, explica Mike Toft.

A retirada dos chifres é um processo particularmente dispendioso. "Custa algumas centenas de euros." Além dos custos na utilização do helicóptero, é preciso ter pelo menos oito pessoas em terra.

Mas tem sido eficaz. Mike Toft garante que, assim que começaram a aplicar esta medida, sentiram uma diminuição no número de tentativas de invasão da reserva. Há dois anos que não têm qualquer situação. "Tivemos um falso alarme ontem, mas foi só isso, um falso alarme. Esta foi a melhor ferramenta que introduzimos para lidar com a perseguição ao rinoceronte."

E o rinoceronte não vai precisar mesmo do chifre para se defender? "A verdade é que eles praticamente não o usam. Em casos extremos, a fêmea pode precisar de o usar para defender a cria dos leões. Mas em toda a minha experiência eu nunca vi um leão a atacar um rinoceronte. O tamanho que eles têm é suficiente para afugentar o leão."

No Kruger há 15 ou 20 grupos de caçadores a atacarem todas as noites

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O Parque Nacional Kruger foi um dos primeiros a ser fortemente atacado pela caça ilegal de rinocerontes. "Às vezes têm 15 ou 20 grupos diferentes de caçadores a entrarem todas as noites", explica Les Carlisle, gestor de conservação da &Beyond Phinda Private Game Reserve. Quando a prática começou a tornar-se cada vez mais frequente, Kruger, tal como tantos outros parques, privados ou não, foi apanhado desprevenido e não sabia como agir. Demorou algum tempo até este e os outros perceberem que tinham de investir fortemente na segurança e em práticas mais extremas como cortar os chifres.

Em Phinda, não se verifica a mesma pressão dos caçadores furtivos. "Nós aqui não temos nada disso. O investimento que fazemos na comunidade significa que, quando os caçadores se aproximam, somos informados." A primeira linha defensiva é a comunidade, uma vez que a reserva a tenta ajudar em tudo o que pode. Nos últimos dez anos perderam sete ou oito rinocerontes, um número bastante inferior ao de outras reservas.

"Tivemos uma situação há dois anos em que a comunidade alertou a nossa patrulha de que estava a circular um carro suspeito a rondar a zona", conta Mike Kirkinis, fotógrafo e embaixador da Leica. "Nós agimos imediatamente, eles tinham rifles e apanhámo-los." Era um grupo de seis ou sete pessoas, vindas de Moçambique.

Além da informação que chega da comunidade, a reserva Phinda tem unidades anti-caça furtiva, que estão dia e noite a patrulhar as terras, seguranças nas principais entradas da reserva, patrulhas aéreas. "Toda a gente tem comunicação via rádio, desde os rangers que fazem os game drives até ao staff dos lodges." E há ainda outras medidas. "Temos detetores de mentiras. Todos aqueles que trabalham no campo e que podem passar informações importantes às pessoas erradas têm de passar por estes testes todos os anos."

As penas quase inexistentes para os caçadores

De acordo com a legislação da África do Sul, para alguém poder disparar uma arma tem de esperar que o outro lado o faça primeiro. "É um sistema legal de primeiro mundo, e nós somos um país de terceiro mundo. Não é o ideal", comenta Les Carlisle.

As penas também podem tornar-se um problema porque, de acordo com Les Carlisle, tudo depende de quem é que os prendeu, de quem será o juiz do caso. Isso vai ditar o que é que acontece aos caçadores furtivos. "Se forem apanhados com chifres de rinoceronte, a probabilidade de serem acusados é bastante elevada. Mas a probabilidade de uma pena é muito baixa — 40% contra 60%, diria eu."

E eles pagam ao magistrado, ao procurador e à polícia. Portanto, as sentenças são baixas devido à influência dos cartéis nos sistemas legais."

Mike Toft vai mais longe, e garante que conhece muitos casos em que os caçadores, apanhados em flagrante delito, são libertados sob fiança dois dias depois. "Há casos em que chegam aos 15 anos, mas a grande maioria das condenações é muito mais baixa do que isso, e muitos saem sob fiança."

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Na opinião de Les Carlisle, esta ineficácia do sistema judicial é justificada pelo facto de a caça ao chifre do rinoceronte ser financiada pelos mesmos grupos que traficam drogas, armas e pessoas. "A vida selvagem é apenas outra forma de rendimento", acrescenta Mike Kirkinis. "E eles pagam ao magistrado, ao procurador e à polícia. Portanto, as sentenças são baixas devido à influência dos cartéis nos sistemas legais."

No caso da reserva Phinda, eles deixaram de recorrer à polícia local. Sempre que há um incidente, seja alguém apanhado em flagrante ou informação de que isso possa vir a acontecer, entram em contacto com Durban, a 300 quilómetros de distância. "Com a polícia local eles nunca vão ser presos."

É um tema extremamente complexo, garantem Les Carlisle e Mike Kirkinis. Acima de tudo, o trabalho que eles desenvolvem é puramente de proteção dos animais e de possíveis crimes. Porque, garantem, não lhes cabe a eles combater os cartéis. "Se o governo não o faz, não podemos ser nós", explica Carlisle.

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