É na companhia de “Lábios de Vinho” que começo este texto. Foi com este mesmo tema de Luís Severo que há perto de 24 horas, debaixo do sol já mais arrefecido em Cem Soldos, entre centenas de pessoas na pequena praça da Igreja, nos despedimos desta aldeia junto a Tomar. Ainda faltava ver Dead Combo e Linda Martini, mas a segunda-feira já vinha demasiado perto. Mas tudo bem. Severo fez-nos dizer adeus numa explosão de felicidade que vinha a acumular-se há já quatro dias, depois de Slow J, Mirror People, Tomara, Monday, Conan Osiris, Paus e tantas outras coisas boas que por lá foram acontecendo. Já no carro, de volta à realidade, percebemos que a alma vinha lavada e o coração estava cheio, a rebentar pelas costuras.
Dizia Slow J, logo no primeira noite de concertos — na quinta-feira, 9 de agosto — qualquer coisa como: “Que público tão bom é o deste festival de que nunca tinha ouvido falar.” Slow J nunca tinha ouvido falar do Bons Sons. Provavelmente nem sabia que existia um sítio em Portugal chamado Cem Soldos. E sentiu, tal como eu — que também nunca tinha ouvido falar naquela aldeia e que desconhecia o contexto daquele festival — que aquilo que ali se passa era, de facto, especial.
Mais do que uma casa temporária, Cem Soldos passa a ser um mundo, que não pode sequer ser desta galáxia. Neste mundo todos os habitantes fazem nascer o maior e melhor anfitrião de sempre, que acolhe de tão boa cara todos os forasteiros que por lá se fixam e invadem cafés, esplanadas, casas e o próprio chão, em busca de todas as sombras — isto se não forem para a praia do Agroal refrescar-se na água limpa e gelada que corre, onde dá para pôr cadeiras e criar uma sala de estar.
Neste mundo há tasquinhas castiças, como a Tonica ou o Aliquete. Há pessoas que não se conhecem mas que se juntam para cantar e dançar na rua. Neste mundo, o público vai para ver e não para ser visto. Além dos concertos que começam durante a tarde, as pessoas reúnem-se na associação para jogar matraquilhos ou assistir a jogos de futebol, porque a época arrancou e ninguém quer ficar para trás. Neste mundo não há marcas a anunciarem-se em cada esquina, mas há os jogos do Hélder, que, feitos de madeira e de corda, tantas e tão variadas pessoas — desde as crianças aos mais velhos —entretêm durante a tarde e durante a noite.
No Bons Sons não há brindes ou passatempos especiais, mas há frases escritas em várias paredes, de diferentes autores ou músicos. Circula pouco dinheiro, porque o truque para filas rápidas está em carregar a pulseira e a partir daí cada um fazer a própria gestão. Há copos reutilizáveis, há caixotes do lixo para o vidro, papel, cartão e orgânico. Há pratos de trigo porque quanto menos se desperdiçar melhor. Há pataniscas, salada de tomate e de pepino e uns quantos outros petiscos. Há pão com chouriço, pão com farinheira. Há tripas de Aveiro e uma sandes de pernil que não se esquece.
Há concertos de garagem — literalmente de garagem — e outros espalhados pelos restantes seis palcos que só recebem música portuguesa para concertos muito mais íntimos, em que o público ou está atentamente a descobrir ou está a ouvir e a cantar, sem precisar de telemóveis para depois recordar. Pelo menos, de forma permanente. Há quem se concentre junto ao palco, junto às oliveiras ou sentado no chão de palha, mas há também quem se pendure nos parapeitos das janelas para dali apreciar, com uma vista privilegiada, tudo o que está a acontecer.
Em Bons Sons não são só os sons que são bons. Em Bons Sons há pessoas simpáticas, explosões de felicidade, almas lavadas e corações cheios, a rebentar pelas costuras.