Uma bebé de 18 meses morreu durante a tarde desta terça-feira, 30 de janeiro, depois de um acidente na creche Tartaruga e Lebre, em Alvalade, Lisboa. A criança terá ficado presa no gradeamento da creche e acabado por sufocar e entrar em paragem cardiorrespiratória. O óbito foi declarado já no hospital, no dia seguinte, 31.

Também a 20 de março de 2019, uma bebé de seis meses morreu numa creche no Montijo, na consequência de uma paragem cardiorespiratória durante o sono. De acordo com uma notícia do “Correio da Manhã”, a criança terá sido mais uma vítima do Síndroma da Morte Súbita, que é a principal causa de morte infantil no primeiro ano de vida.

O acontecimento trágico ocorreu, ao que tudo indica, durante a sesta na creche, embora não se tenha apurado, até à data, qualquer responsabilidade aos funcionários do estabelecimento de ensino em questão. Mas mesmo sem intenções culposas na morte da criança, como é que os funcionários que assistem a um cenário destes conseguem ultrapassar o sucedido, continuar a trabalhar e gerir tudo o que aconteceu?

“No meu entender, uma das primeiras coisas que se tem de fazer é desconstruir o conceito de culpa”, salienta Júlia Machado, psicóloga clínica do Hospital Lusíadas Porto, à MAGG. A especialista explica que tal é muito importante, dado que “associamos a culpa a algo intencional”.

De acordo com a psicóloga clínica, em casos em que algo trágico acontece, mas em que não existia nada que o pudesse evitar, tal como a morte de uma criança por morte súbita (ainda hoje se desconhecem as causas), é vital perceber “que o peso que essas pessoas carregam não é uma culpa, dado que não tiveram qualquer controle sobre o sucedido — não podemos carregar algo em que não houve uma intenção ou associar o peso da responsabilidade de tal”.

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Depois desta primeira fase, Júlia Machado realça que tem de existir um período de aceitação dos factos: “Há circunstâncias que não podemos controlar, e em que o ‘se' não existe. Muitas vezes as pessoas dizem ‘se eu tivesse feito isto, se tivesse feito aquilo’, mas existem situações incontroláveis, em que ninguém adivinha o que vai acontecer, ninguém prevê. O ser humano tem muito medo de perder o controlo, achamos que controlamos tudo, mas não é verdade, e temos de aceitar as coisas tal como elas aconteceram”.

“Se tivesse sentimentos de culpa, não estava a trabalhar”

Ana (nome fictício), é funcionária de uma creche da zona de Lisboa há mais de duas décadas. Há alguns anos, uma criança de 8 meses morreu durante o sono, também vítima do Síndroma da Morte Súbita.

Na breve conversa telefónica com a MAGG, as emoções de Ana foram audíveis e, bastante comovida, a funcionária da creche explica que não existiu nada que se pudesse fazer para evitar a morte da criança.

“Foi morte súbita, daquelas mortes estúpidas, não houve nada que se pudesse ter feito”, relata Ana, que também revela que o estabelecimento de ensino não foi alvo de qualquer acusação, nem nenhum pai retirou os filhos da creche.

Depois do trágico acontecimento, Ana afirma que não existiu qualquer sentimento de culpa: “Se tivesse sentimentos de culpa, não estava a trabalhar”, e que é a “andar para a frente” que se continua. “Não se tira tempo para parar”, conta a funcionária, que mantém uma fotografia da criança que perdeu a vida na parede do seu local de trabalho até hoje.

Para Júlia Machado, psicóloga clínica, gerir um acontecimento traumático destes depende das características pessoais de cada um, e a forma como lidam com o trabalho também.

Júlia Machado refere que existem vários estudos no campo da neurociência que comprovam que os acontecimentos traumáticos deixam marcas no cérebro

“É muito subjetivo. Há pessoas que têm uma grande capacidade de resiliência, de adaptação, e ultrapassam as situações de uma maneira diferente, e outras com um perfil mais pessimista, que podem precisar de mais ajuda”, esclarece a especialista.

No entanto, para Júlia Machado, não se deve afastar ninguém propositadamente do trabalho nestas situações, caso a pessoa tenha condições para continuar a trabalhar.

“Se a pessoa tem uma maior capacidade de resiliência, vamos motivá-la para que continue a exercer as suas funções. Até porque, nestas circunstâncias, um afastamento do trabalho pode levar a pensar-se que a culpa é dela. Não se devem forçar afastamentos, dado que, com essa atitude, toma-se uma posição que dita que essa pessoa não vai ter capacidade de cuidar de outras crianças.”

Da mesma forma que os afastamentos não devem ser impostos, caso existam condições para os funcionários que presenciaram acontecimentos trágicos como a morte de uma criança continuarem a exercer as suas funções, o contrário também não deve acontecer.

“Se a pessoa está profundamente alterada, também não vamos forçar alguém que não está em condições a regressar ao trabalho imediatamente”, realça Júlia Machado.

A ajuda psicológica é vital

No decorrer da morte de uma criança num estabelecimento de ensino, Júlia Machado salienta é que preciso procurar ajuda psicológica para lidar com a situação. “Nestas circunstâncias, é fundamental procurar ajuda, até porque estas más experiências deixam marcas no subconsciente. Aliás, existem vários estudos no campo da neurociência que comprovam que os acontecimentos traumáticos deixam marcas no cérebro”, refere a especialista.

Tal como explica a psicóloga clínica, por mais subtis que sejam estas marcas, “elas ficam lá” e podem causar marcas permanentes, bem como graves consequências se não forem trabalhadas com apoio psicológico.

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“As marcas permanecem latentes, prontas a serem reativadas caso as pessoas se deparem com situações minimamente semelhantes ou com algum ponto em comum. Os funcionários de uma creche que estiveram expostos a uma situação trágica destas, podem reagir exponencialmente a algo simples. Por exemplo, se uma criança cair e começar a chorar, o cérebro reage como se o acontecimento trágico estivesse a passar-se naquele momento e podem entrar em pânico e até ter sintomas fisiológicos de ansiedade, como insónias e sensação de falta de ar.”

Caso as pessoas que passaram por um acontecimento traumático não tenham toda a ajuda necessária, podem vir a desenvolver quadros de depressão. Para que tal não aconteça, Júlia Machado aconselha que os grupos mais próximos dessas mesmas pessoas estejam atentos aos sinais de alarme.

“Se os indivíduos se começam a isolar, a demonstrar insegurança, a recusar tarefas que sempre desempenharam, a ter ataques de ansiedade e pânico frequentemente, ou, no caso de alguém que lida diariamente com crianças, entrar em choque ou não saber como agir com o choro destas, estes são sinais claros de que podem precisar de ajuda”, conclui a psicóloga clínica.

(artigo original de 2019 e adaptado a 1 de fevereiro de 2024)