Maria Luísa da Eira, 62 anos, ainda não viu a mãe este ano. Uma está em Cascais, outra em Vila Real. A distância é grande, mas não só os quilómetros que as separam: também há o vírus da COVID-19, que, por precaução, as mantém distantes. Por isso, este ano não houve reunião de Páscoa ou sequer férias em conjunto. E no Natal vai ser igual.
Apesar de o governo ter avaliado as restrições para o Natal, a organização para as festas está, no seu todo, muito diferente face ao ano passado. "Esta fase difícil que estamos a atravessar impossibilita passar o Natal como tenho passado, que é com uma família grande", conta à MAGG. Em 2019 eram 16 sentados à mesa e em 2020 ficam reduzidos para menos de metade: Maria Luísa só vai passar com o marido, a filha, o genro, os pais do genro e com as duas netas pequeninas.
O Natal de Anabela Pereira, 61 anos, já costumava ser com pouca gente, mas em 2020 vai ser ainda mais reduzido. Apesar das poucas ruas que separam a família, residente no Feijó, em Almada, este ano cada agregado festeja separadamente, apenas com quem partilha casa. "Normalmente junto-me com a minha irmã, o meu cunhado, a minha sobrinha, e o meu filho", conta. "Este ano fica cada um em sua casa."
Antes do vírus, sentavam-se à mesa nove e este ano serão apenas dois. Vai haver bacalhau e alguns doces, mas para ser partilhado só na companhia do marido. "O meu filho é que deu a ideia de que cada um ficasse em sua casa este ano, porque muitos trabalham todos os dias e não fosse alguém ser assintomático e contagiar os outros."
Além de passar o Natal longe do neto, Anabela é mais uma filha que vai passar o Natal longe da mãe. Residente de um lar em Belverde, é por lá que a mãe, avó e bisavó com perto de 90 anos, vai ficar. "Desde março que não sai de lá. Nós vamos lá visitá-la", conta. "Ela tem 88 anos, mas compreende muito bem as coisas. Tem pena de não vir passar o Natal, mas entende que não deve ir. No lar não houve até hoje nenhum caso."
Já no caso de Teresa Monteiro, vai contar com a presença da filha no Natal, que vai passar o Natal em família, em Santa Comba Dão para as festas. "Ela tomado alguns cuidados. Vai, inclusivamente, fazer um teste porque vir vir à vontade para ao pé dos avós", conta. "E não vem de transportes. Vem antes de boleia."
Isto é o que está agora combinado. Mas, antes de ficar decidido, pôs-se a hipótese de neste Natal, mãe e filha, de 62 e 25 anos, respetivamente, ficarem em cidades diferentes. É que, além da incógnita acerca das restrições de circulação entre concelhos para os dias 24 e 25, os pais de Teresa vivem consigo e, pela idade, são grupo de risco.
"Pôs-se a questão de ela ficar em Lisboa. É claro que eu pensei logo em mil e uma soluções para poder estar com a filha", conta. "Ainda assim, fui preparando os meus pais, que me diziam logo que 'não, nem pensar'. Ia ser um desgosto para eles."
Como no caso de Anabela e Maria Luísa, também esta consoada em terras da Beira Alta levará menos gente. "Não somos uma família muito grande, mas claro que é mais reduzida este ano", conta. "Éramos dez e agora somos quatro ou cinco. Sou eu, os meus pais, a minha filha, e talvez o padrinho dela."
A situação custa, mas o sentido de renúncia necessária está presente. "Custa-me não passar com a minha mãe, que já é uma pessoa idosa. Se calhar não vou ter muitas mais hipóteses de ter outros natais com ela", diz Maria Luísa. "Estamos a passar uma fase difícil. Se realmente há ajuntamentos em vários pontos do país, os contágios vão aumentar. Esta redução serve para se evitar a propagação do vírus", acrescenta, referindo que também a sua mãe prefere estar mais recolhida para se proteger. "Ela fica com os meus irmãos, que vivem lá em cima. Mas telefonamos muitas vezes, fazemos chamadas de videoconferências."
Anabela Pereira concorda: é um sacrifício necessário. "Dadas as circunstâncias, tem de ser. Temos de ter cabeça. Isto está tão mal, não estamos seguros em lado nenhum", diz. Ainda assim, acredita que nem toda a gente se vergue às circunstâncias. "Acredito que haja uma parte das pessoas que vai atender aos pedidos e não fazer ajuntamentos, mas outra que vai tudo igual e isto vai rebentar novamente pelas costuras."
Também as compras ficaram para segundo plano. "Só comprei para o meu neto. Não comprei mais nada para ninguém. Anda muita gente às compras", diz Anabela. "Depois, acalma, vêm os saldos e aproveita-se", acrescenta, frisando que o consumismo da época fá-la nutrir poucos sentimentos em relação ao Natal.
A esperança está num futuro que vá regressando àquilo com que a vida se parecia no passado. "Vamos confiar para o ano. Não digo que esteja tudo normalizado, mas, pelo menos, que já estejamos no caminho de uma certa normalidade", imagina Maria Luísa. "Para o ano será melhor", acredita Anabela Pereira.
Teresa Monteiro tem dificuldade em sentir o espírito natalício, mas lembra aquilo que — sobretudo agora — mais importa. "Nem parece que é Natal. Não há vontade de se comprar presentes ou de se fazerem grandes preparações. Mas há saúde e isso é o que interessa."
"É importante que haja uma conversa familiar sobre isto"
Não é fácil falar sobre as repercussões psicológicas de um Natal tão particular. "Como em tudo este ano, é imprevisível", começa logo por notar Lara Morgado, psicóloga da Clínica da Mente. Mas há vários cenários previsíveis e algumas reflexões potenciadas por todas as particularidades de 2020.
Um dos aspetos mais importantes para a especialista tem que ver com o diálogo. "Aquilo que eu acho importante é que haja uma conversa familiar sobre isto. Uma negociação familiar verdadeira, em que todos discutem para chegar a um consenso. Perguntar aos mais velhos o que é que eles acham. Se acham que vale a pena correr o risco, se é preferível haver uma separação", diz. "Mas sem a infantilização que tem sido atribuída a esta faixa etária, notória tanto ao nível das tomadas de decisão, como da comunicação social, que, em apelos, se até dirige aos filhos e não aos mais velhos."
Depois, relativamente às reacções desencadeadas pelas singularidades deste Natal, a psicóloga identifica vários. Anabela e Maria Luísa correspondem a um deles: tem que ver com a tal noção de sacrifício necessário. "As causas são das coisas mais importantes para o ser humano", explica. "Tem que ver com a atribuição de sentido às coisas. Se percebermos e identificarmos o sentido de tudo o que está a acontecer, tudo é mais bem levado."
Lara Morgado fala-nos ainda da clássica "melancolia" associada ao Natal, a que popularmente se dá o nome de "christmas blues". "Está relacionada com uma reflexão sobre o ano que passou", diz. Num cenário menos pragmático e mais emocional, podem exacerbar-se os sentimentos ligados à solidão. "Não é necessariamente física", frisa a especialista. "É a sensação de pertencermos, de estarmos a partilhar com o outro."
Só que estes sentimentos, destaca, dificilmente nascem só da pendemia e de um Natal diferente. Já lá estavam: "Se calhar, agora, esta solidão tem menos esconderijos."
No reverso da medalha, a ausência de convívio poderá, para alguns, trazer alguma sensação de alívio. "Houve muitas pessoas que na pandemia estiveram muito bem. No Natal pode acontecer. Há uma desculpa para não se estar, para não ter este tipo de convívio e para se ficar sozinho. Depois, em vez de dizermos 'eu não vou porque não quero estar contigo' dizemos que 'não vou por causa da pandemia.'"
Nestes últimos casos, Lara Morgado identifica na pandemia um bom pretexto para que se tenha coragem para embarcar numa reflexão honesta e verdadeira. "Se calhar podíamos usar mais a verdade nas nossas relações e nas nossas verdadeiras intenções."
Porque é que o Natal cria um sentimento de solidão? Porque é que estar com os outros causa sentimentos de stresse e de aborrecimento? De onde vem a melancolia? Porque é que embarcamos nas experiências de frete ao invés de expormos aquilo que verdadeiramente queremos? E, mais importante: de onde vem esse desejo de se estar longe?
Somos desonestos para dentro e para fora. Connosco e com os outros. Lara Morgado desafia a que se quebre esse ciclo. "Muitas patologias clínicas acontecem porque não somos corajosos na nossa análise ao longo da vida, porque nos escondemos atrás de pretextos", diz. "Esta pandemia não e trará necessariamente solidão, poderá trazer reflexão."
A psicoterapeuta termina lembrando todos aqueles cujo Natal será marcado pelo luto, referindo-se em particular a todos os que viram familiares partirem vítimas da COVID-19 — muitos dos quais, nem puderam dizer adeus. "Há pessoas que estão de luto e com um luto muito difícil. O luto da culpa, por não se terem despedido."