Chama-se Maria Eugénia Varatojo, mas só quando vai às Finanças é que responde por esse nome. "É tão grande, tão sério", diz-nos. E de facto, em nada corresponde à figura que nos recebe no Instituto Macrobiótico, em pleno Chiado.
A Geninha tem metro e meio, 40 quilos e uns sessenta anos que mais parecem 45. Fala de forma tão enérgica que somos levados numa conversa que se queria curta e que se acaba a prolongar para lá da hora. Mas, ao mesmo tempo, é tão suave nas palavras que a vontade que fica é de a levarmos connosco para casa ou mudar-nos de malas e bagagens para um espaço que há décadas se dedica a mostrar ao País o que é a macrobiótica.
Se formos por definições standard, podemos dizer que a macrobiótica é um estilo de vida que tem como objetivo último ajudar a desenvolver o nosso potencial humano. E Geninha, tal como a maioria das pessoas deste País, conheceu esta filosofia de vida através de Francisco Varatojo, o mestre da macrobiótica em Portugal, com quem casou, teve quatro filhos e criou algo que vai muito além de uma empresa. "Dar a conhecer aos outros a macrobiótica tornou-se a nossa vida", admite.
Quando no ano passado, Francisco morreu da forma mais inesperada possível — o seu corpo foi encontrado no mar depois de uma das suas habituais práticas de mergulho — tudo mudou."Há um antes e um depois do Francisco", admite Geninha, que, apesar de ser a atual diretora do Instituto que criaram em família, não quer substituir-se no papel de 'bengala', que atribui a Francisco, mas não admite deixar morrer o projeto de uma vida.
É por isso que, no ano passado, ainda com um luto de menos de um mês, o Zimp, um festival que era o sonho de Francisco, avançou sem constrangimentos. Este ano, a Quinta do Crestelo, em Seia, volta a receber uma semana de receitas saudáveis, ioga, dança, meditação, cinema e música e Geninha vai lá estar, a ser a bengala que não quer ser.
Escreveu um livro com o título “Tudo o que comemos conta”. É mesmo assim?
Quando já tinha o livro escrito, andava à procura de um titulo. Um dia, ao encadear ideias para ver se chegava a algum lado, disse em voz alta que tudo o que comemos conta. Parei e disse outra vez, ‘tudo o que comemos conta’. Na verdade não é só tudo o que comemos, é tudo o que pensamos, tudo o que fazemos, tudo isso conta.
O que o organismo quer é comida, não é café com leite e pão com manteiga ou um sumo e uma bola de Berlim."
Então conte-me o que é que já comeu hoje.
Ando numa fase em que a comida não é uma prioridade para mim. Mas estou numa de batidos verdes, ainda que não faça nada durante muito tempo. É uma fase, até porque o organismo vai pedindo coisas diferentes e não vai querer um batido verde de manhã para sempre. Durante uns dias é bom, o corpo recebe nutrientes diferentes, mas depois pede outras coisas. Hoje fiz um batido de verduras, salsa, maçã e limão, só para purificar um bocadinho. Muitas vezes opto por flocos de aveia ou creme de arroz e às vezes até uma sopa.
Sopa ao pequeno-almoço?
O que o organismo quer é comida, não é café com leite e pão com manteiga ou um sumo e uma bola de Berlim. O que ele quer realmente é comer. Começar o dia com ovos e bacon, que é muito salgado, muito yang, ou com bolos, que é muito doce, muito yin, não é o ideal. O que o corpo precisa de manhã é de algo suave, mas potente, algo como uns flocos de aveia com umas nozes e uma fruta em cima.
E o que é isso do yin e do yang?
São forças opostas que se complementam e que estão ligadas à nossa energia. O ideal é criarmos uma harmonia entre esses dois pólos. Uma pessoa mais yin é uma pessoa mais expansiva, mais para fora, mais tranquila e uma pessoa Yang é mais densa, mais condensada, mais séria e deve adaptar o que come à sua condição.
Mas há alimentos yin e alimentos yang?
Sim, e é o balanço entre os dois que nos leva a ter vontade, por exemplo, de comer algo doce (yin) depois de comer um salgado (yang). O ideal é que a alimentação balance estas duas energias.
A Geninha é mais yin ou mais yang?
Acho que depois de 60 anos, já vives num equilíbrio entre os dois. Com o meu 1,50 e os meus 40 e poucos quilos, acho que tenho uma estrutura mais yang. Eu agora estou mais calma, quando era mais nova, assim que pensava em ir já estava a correr para lá. Ao longo dos anos comecei a parar e a pensar ‘Mas onde é que eu vou com esta pressa?’. Passei a encarar a vida com mais calma.
Essa energia passa para o que fazemos na cozinha?
É que não tenho a mínima dúvida sobre isso. Se tu esfregares uma mão na outra, há um calor que se forma, uma energia que não vês, mas que se sente. Se eu direcionar energia, se direcionar amor para ti é isso que tu recebes. Se estiver muito zangada, muito azeda, isso passa para tudo o que faço, para as pessoas com quem estou e para o que cozinho, claro. Aprendi não a controlar os pensamentos, mas a moldá-los.
Como é que se faz isso?
Quando um pensamento mau chega, eu paro uns segundo e reflito, ‘É isso mesmo que queres?’. Tento pensar em coisas boas porque é assim que me sinto bem e é essa boa energia que vai passar para os outros.
É por isso que que os macrobióticos não batem com a colher de pau na panela depois de mexer? [sim, todos fazem isto]
(Risos) Eu faço isso há muitos anos e é uma das primeiras coisas que ensino nas minhas aulas. É tudo uma questão energética. Quando bates com a colher de pau na panela, estás a empurrar a comida para baixo, a condensá-la. E o barulho, a pancada, em si também não é agradável.
E ouvi dizer que também tem um truque para o barulho da varinha mágica.
Sim. Como a varinha tem aquela energia muito intensa e faz aquele ruído todo, eu sugiro que se cante. Só assim uma melodia que suavize um pouco aquilo tudo. O que vai para a panela não é só a cenoura e a batata, entra o teu estado de espírito, entra tudo aquilo que tu pensas, tudo aquilo que tu és.
A macrobiótica não te ensina só a comer, ensina-te a viver."
A macrobiótica faz de si uma pessoa melhor?
Faz. Deu-me ferramentas para me tornar uma pessoa melhor. O facto de se comer melhor e de alimentares o teu corpo com alimentos mais puros, mais simples, dá ao organismo aquilo que ele realmente precisa, sem o sobrecarregar. Assim, a tua mente trabalha melhor, o teu coração trabalha melhor, ficas mais tranquilo, mais sereno. A macrobiótica não te ensina só a comer, ensina-te a viver.
A macrobiótica não é só comida.
Não. Não vale a pena estares a comer arroz integral e uma sopa de miso para depois estares zangada e a mandar vir com toda gente. O que comemos conta, claro, mas o que sentimos e o que fazemos também conta.
Com tantas dietas alimentares, não tem medo que a macrobiótica se perca no meio de modas?
Eu na vida já tenho poucos medos, sabe? Quando passas por situações difíceis, vais simplificando. A macrobiótica é uma filosofia de vida que é apreendida por diferentes pessoas de diferentes formas.
Como é que foi para si?
Foi muito simples. Um dia fui visitar um amigo que trabalhava numa cooperativa em Lisboa, onde funcionava uma loja e um restaurante macrobiótico e onde o Francisco já dava aulas. Mas nessa altura, sabia lá eu o que era macrobiótica. Mas esse amigo apresentou-me ao Francisco, que me convidou para assistir a uma palestra uns dias depois. Eu fui e saí de lá a pensar: ‘Bolas, isto faz sentido, é isto mesmo’. E foi assim.
Como era a sua vida antes desse encontro?
Tinha 23 anos, trabalhava como secretária num escritório de advogados e comia de tudo. Aliás, sempre fui muito doceira.
Ainda é?
Ainda sou, mas de outra forma. Quando agora olho para uma bola de Berlim eu sei exatamente o que é que está ali. É aí que eu penso, ‘queres mesmo comer aquilo?’. É que é mau demais, é só pó, gorduras, adoçantes. Guardo-me para para casamentos, festas, férias, para aqueles dias em que alguém fez um bolo caseiro maravilhoso. Aí sim, delicio-me, desfruto mesmo.
O que é que sentiu de diferente quando adotou uma alimentação macrobiótica?
Foi uma descoberta. Deixei de comer carne, laticínios, açúcar e senti-me logo muito bem.
Como é que era ser macrobiótica há trinta anos?
Era uma odisseia. O pouco que havia comprávamos no Celeiro e, pouco depois, abrimos a nossa própria loja. Mas era difícil não só encontrar o que comer fora de casa, como era também gerir os desejos antigos. Depois de tantos anos a comer de tudo, era difícil lutar contra a vontade de comer um bolo ou beber um café, ainda que tivesse consciência de que essa mudança era o melhor para mim.
Como foi criar quatro filhos nesta filosofia?
Foi duro, mas não foi duro por ser macrobiótica, até porque era algo que fazia todo o sentido para mim. Aquilo era a minha vida.
Eles adaptaram-se sempre bem?
Eu fiz alguma ginástica. Eles levavam a comida de casa e eu tentava fazer a comida muito parecida com a do menu da escola. Por exemplo, se era arroz com bife, eu fazia arroz integral com cenoura e uns bifinhos de seitan ou uns panados de tofu. Mas fazia questão que levassem de casa, isso sempre.
Todos eles seguem uma dieta macrobiótica?
O que acontece é que primeiro dás aos teus filhos aquilo que achas que é o melhor para eles, mas depois chega a fase em que eles se tornam autónomos. Acho que eles provaram de tudo, mas sei que a única coisa que não comem mesmo é carne. Lembro-me de uma vez, a minha sogra lhes ter dado frango e de um deles perguntar ‘Oh avó, que peixe é este?’. Eles não sabiam o que era carne, nunca comeram um hambúrguer, por exemplo. E apesar de terem provado leite, doces e todas essas coisas, naturalmente voltaram todos a um tipo de alimentação mais natural. São todos macrobióticos e agora até chegam a ser mais radicais do que eu. Ainda no outro dia, as minhas filhas me diziam que estávamos a comer massa a mais e eu, ‘olha-me elas, já estão como o pai’, que era muito mais rígido do que eu.
Em tantos anos à frente do instituto, viu muita gente mudar?
Nem imagina. Pessoas com cancros gravíssimos, a chegar cá como última esperança e a saírem daqui recuperados. Vivemos sentados numa secretária e o teu corpo alimenta-se disso. É preciso comer melhor, viver melhor para ver tudo melhorar.
Nunca fica doente?
Tenho umas gripes de vez em quando, mas aí é o corpo a libertar-se. Muitas vezes não tens tempo para eliminar o que está a mais e o corpo chama-te a atenção, obriga-te a parar. Aí ficas uma semana com febre, mas é o corpo a descansar, a recuperar e a voltar com mais força.
Como é que definiria a alimentação dos portugueses?
Não somos os que comemos pior. Ainda comemos comida feita em casa, sentados e de prato e talheres na mão. Claro que há uma fatia grande da população que só quer comer hambúrgueres e batatas fritas, mas vejo uma outra fatia já completamente sensibilizada para uma alimentação mais cuidada. Ali pelo meio há os que comem de tudo, mas pelo menos comem comida caseira. De tudo, o que me faz mais confusão é o fast-food, é o comer sem critério, o abrir o frigorífico e tirar a primeira coisa que aparece, encher o carrinho de supermercado sem pensar muito bem com o quê.
Esforça-se por mudar mentalidades?
Cada um sabe de si e eu não sou ninguém para dizer que o outro está a fazer mal. Eu trato de mim e do meu processo. Para mim a macrobiótica foi a minha sorte grande. Mas cada um tem o seu timing, o máximo que faço é sugerir que façam um curso, que leiam um livro. O melhor é abrir o caminho e deixar que o sigam.
Agora, já sem Francisco, cabe ao resto da família continuar a abrir esses caminhos?
Tudo o que ele criou é demasiado importante para acabar aqui.
Tem justificação para a sua morte?
Às vezes pergunto-me como é que uma pessoa com a sabedoria dele se foi embora tão cedo. Tenho mesmo pena que alguém que sabia tanto já não possa chegar a mais gente. É aí que percebes que tudo é possível e que outra missão o chamou. Só pode. De outra forma não é compreensível.
Pesquisei, li, falei com pessoas e não encontrei uma única menção negativa sobre o Francisco.
Quando às vezes discutíamos eu dizia-lhe ‘Um dia quando crescer quero ser como tu’.
O que era ser como ele?
Era ter aquele sorriso, aquela bondade, ver sempre o melhor dos outros, o não atacar. Ele via sempre o lado bom de tudo, chegava até a ser ingénuo.
Era a macrobiótica que o fazia tão consensual?
Não, acho que ele era mesmo assim. Mas encarnar esta forma de estar fez dele uma pessoa ainda melhor. Para nós, ele era uma bengala. 'Como é que eu faço? O que é que eu digo? Como é que resolvemos isso?' Chamávamos o Francisco e ele tinha a resposta certa.
E agora é a Geninha essa bengala?
Não sou nem pretendo ser.
Mas alguma vez se sentiu apenas a mulher do Francisco Varatojo?
Nunca. Nós tínhamos uma espécie de um pacto: ele tinha um grande sonho, que era levar a macrobiótica a toda a gente quanto fosse possível, mas precisava de ter uma casa, uma família, um poiso para onde voltar. Eu proporcionei-lhe isso.
Vê nos seus filhos uma continuidade dos dois?
Acho que desde que o Francisco partiu, muita gente à volta, incluindo eu e os meus filhos, está a aprender a voar sozinha. Há uma vida antes e uma vida depois do Francisco.