Há muito tempo que Jel queria trabalhar com Fernando ou Nando Alves, mais conhecido por emplastro. "Aquilo que ele faz é comédia", diz, numa alusão contrária à ideia que põe o humor num sítio cerebral e intelectual. Um dia ia no carro a ouvir um jogo na TSF e percebeu que o personagem que aparece frequentemente por detrás das câmaras dos jornalistas tinha invadido o campo. Um dos comentadores disse: "Lá vamos nós ter que levá-lo a casa". Jel mexeu uns cordéis e não tardou muito a descobrir a morada do seu futuro amigo, aquele com quem chegou a ir ao Lux, ao Opart e à luta.
Já estávamos com o gravador desligado, mas a conversa continuava a correr. Estávamos sentados num jardim, em Carcavelos, na tarde desta quinta-feira, 2 de maio, e logo desde o início percebemos que os formalismos ali não faziam sentido. Nunca tínhamos estado com Jel, mas é difícil não tratá-lo por tu. A descontração faz parte de si, o que não significa que as conversas não tenham substância. O Homem da Luta chama-se Nuno Duarte, tem 45 anos, gosta de conversar, de trocar ideias, mas não é muito amigo de ideologias demasiado vincadas, tanto que não acredita na exclusividade do "certo" e do "errado", do "bom" e do "mau", conceitos — ou trincheiras de opinião — demasiado fechados para servirem a realidade.
O diálogo e a troca de ideias são um dos prazeres do comediante, músico e documentarista, aquele que dá a cara em "Como Isto Anda", o novo programa da SIC Radical. Em sete episódios, transmitidos às 21h30 de sexta-feira (o segundo estreia a 3 de maio), e numa espécie de série documental, celebra os 18 anos do canal — "que já tem idade para beber" —, mostra-nos como é que os anos mudaram áreas cruciais da sociedade. Desde a música, ao turismo, à comédia, jornalismo, futebol, entretenimento ou a própria juventude, os temas discutidos em cada um dos episódios contam com diversos entrevistados, desde Herman José, a Manuela Moura Guedes, Agir, Toy, Cristina Ferreira, ou Ana Gomes, conhecida como "A Melhor Amiga da Barbie".
A mudança de registo não é propriamente recente, mas ainda é novidade para muitos. O choque e a rebeldia de personagens como Carlinhos, o Machista Gay ou ainda daqueles que formavam o conjunto de comédia Homens da Luta — duas figuras que viviam no tempo do PREC, no rescaldo da Revolução do 25 de Abril, que faziam aparições frequentes em eventos públicos (criando um embaraço real entre dirigentes de Estado) e que criavam momentos em que a ficção se transformava em realidade (terminando quase sempre na esquadra da polícia) — foram substituídos por um mindset mais maduro, que é fruto de um acumular de experiências e dos anos a passar. Foi com esse Jel que a MAGG esteve à conversa.
Hoje temos mais Nuno Duarte e menos Jel.
É. Acho que este programa tem um bocadinho esse dom. Como é um programa que não tem um objetivo cómico, nem sequer artístico, porque é mais uma espécie de documentário jornalístico, por assim dizer, é um registo que me põe à vontade para isso. Para conversar, sem ter esse intuito de ser o Jel, que está sempre a fazer alguma coisa imprevisível. É um registo totalmente diferente.
É mais fácil estar com a máscara ou sem a máscara?
Eu acho que é mais fácil estar com uma máscara. Mas é mais cansativo. E voltares a ti às vezes é mais exigente.
Houve algum momento em que baralhaste as personalidades?
Sim. Houve uma altura em que isso já me estava a acontecer, que foi quando decidi parar com a comédia, por volta de 2013. Já estava todo misturado.
Em que é que isso se refletia?
Por exemplo, na altura dos Homens da Luta, eu já andava sempre de bigode. Como gravávamos muito, o normal já era acordar e vestir logo a roupa do personagem, já saia na personagem. Isso tem as suas consequências. É como alguém que trabalha muito com as mãos, que começa a ter umas tendinites. Quando se faz comédia ou música, é mais fácil criar rotinas, pequenos truques, que estão ligados a uma certa persona que não és tu. E as pessoas gostam e tu fazes. E é fácil mantermo-nos aí. Mais difícil é tentar fazer uma coisa nova. Mas eu sempre fui assim: curioso. Para mim foi começar do zero, que é também um bocadinho aquilo que este programa representa. Eu gosto disso, sabes? Mantém-me sempre, não diria inseguro, mas sempre com um nível de incerteza, que me faz estar mais alerta para as coisas. Quero manter essa curiosidade ativa em mim.
Estamos rodeados de gente que pensa como nós. E a cultura do diálogo entre quem pensa diferente, para nos encontrarmos a meio, está a desaparecer. Eu estou numa trincheira e tu estás noutra e não há uma conversa produtiva"
O que é que está na tua lista de coisas que ainda não fizeste e que queres fazer?
Opá, muita coisa. Olha, este programa abre-me aqui uma perspetiva completamente nova para fazer mais coisas deste género, que é um género onde eu vou à procura, onde eu comento, formo e exponho uma opinião em relação a determinado assunto, conversa ou situação, como eu próprio, Nuno Duarte. Isto abre um caminho novo para uma data de coisas que eu nunca fiz. Mas, tenho tido vontade de fazer algum tipo de formato ficcional, escrito, mas ficcional.
Já há um esboço para essa ideia?
Sim, mas não posso já adiantar. Estou a começar a trabalhar um bocadinho nesse campo e quero, talvez, dedicar-me um bocadinho ao digital. Tenho trabalhado muito, felizmente, para os meios tradicionais, para a televisão, para a rádio. Mas hoje sinto pica para fazer algo para o digital, para ao YouTube, por exemplo. A liberdade é enorme.
No “Como Isto Anda”, nas áreas que exploraste, consegues indicar aquela em que as diferenças, nos últimos 18 anos, sejam mais gritantes?
Praticamente em todas. O próximo que vai agora para o ar é sobre o turismo. No turismo houve uma mudança radical, desde o início do século. Eu trabalhei durante muitos anos na noite, como DJ, no Bairro Alto, e lembro-me que, há 18 ou 20 anos, tu vias turistas no Bairro Alto um bocadinho no verão, na Páscoa, no fim do ano, e era isso. Não era nada muito massivo. Hoje, esquece. Falei, para o programa, com a Secretária de Estado do Turismo, que me disse que o turismo é o maior setor exportador de Portugal. É o setor em que fazemos mais dinheiro, vindo do estrangeiro. Mais do que a cortiça, o vinho, o azeite. A chegada da internet mudou o jornalismo de uma ponta à outra. Aqueles que eram os jornais de referência, alguns até desapareceram enquanto objeto físico e passaram só para o digital.
O que eu notei é que, nas áreas todas, nestes 18 anos, a mudança veio pelo desenvolvimento tecnológico, pela banalização da internet e das redes sociais. Mudaram tudo. Uma coisa interessante que aconteceu foi: começaram a surgir muitos meios dedicados a nichos e isto não era uma hipótese há uns anos. E isso é bom, porque se aprofundam temas que não se veem noutros sítios. O problema é que há menos tempo. Estamos a ser formatados para um género de conteúdo mais descartável, mais curto, menos trabalhado. Mas isso não quer dizer que no futuro isso não venha a ser trabalhado e afinado.
Falaste numa entrevista sobre uma gana para chocar que tinhas e já não tens.
Essa foi uma transição que aconteceu na minha vida. Quando comecei a fazer comédia — e até antes, na música — eu regia-me por esse choque — queria ter impacto, procurava fazer coisas que os outros não faziam. E fi-lo, durante muitos anos. Tive processos em tribunal, tive idas à esquadra, mas também tive muito sucesso. A minha carreira regia-se por isso. Mas chegou uma altura — e acho que isso tem a ver com a idade — em que esse choque deixou de ter interesse para mim. Começou a ser uma espécie de rotina e já não tinha o mesmo efeito. O género de coisas que eu fazia era fixe porque era honesto e espontâneo. A partir do momento em que a cena se torna num padrão, deixa de fazer sentido. Comecei a pensar que devia fazer uma viragem e procurar outro caminho, para fazer coisas que nunca tinha feito. E assim foi.
Tem a ver com a idade?
Não posso andar velho armado em novo. Isso não é cool. Não é fixe. E eu quero ser fixe. Quero ser velho e fixe. Fiz conscientemente essa paragem. E agora, ao voltar à comédia, como cota e sem essa pressão, tenho-me divertido bué. Não fico nervoso antes de um espetáculo. Sinto aquelas borboletas, mas não é aquela tensão que antes havia. Divirto-me mais hoje. Antes era a adrenalina. Nesta fase da minha vida eu sou tipo uma caravela, com a minha vela lançada: vou um bocadinho ao vento. Gosto disso, sabes? Eu quero ir para ali, mas posso ir assim, ou ir assim. Não tenho de ir em linha reta, numa corrida. Este programa, que foi uma proposta do Pedro, foi um bocadinho uma brisa, para onde eu não tinha pensado ir.
O politicamente correto é um estimulo à comédia. Se não houvesse politicamente correto não havia impacto na comédia. O politicamente correto é uma benesse para o artista"
Como é que olhas para as coisas que fazias antes?
Eu vejo as coisas que fazia há 10 ou 15 anos, rio-me e penso que era fixe. O Machista Gay, os Homens da Luta. Tenho pensado que, mais cedo ou mais tarde, vou ter de voltar a qualquer coisa, sobretudo nesta fase, em que me sinto bacano e em que já provei que podia viver de outra coisa que não só da comédia. De alguma maneira, a comédia bate-me sempre e está aqui sempre a sussurrar: “Olha, não te esqueças, tens de voltar”. Isso dá-me uma certa pica. Tenho pensado nisso. Não excluo essa hipótese. Só não ponho a pressão de ter de voltar a ter o impacto que tive.
Se calhar até vou à procura de uma coisa mais de nicho. Neste programa aprendi isso: hoje em dia, para os comediantes, está bueda bom porque podemos trabalhar realmente para uma parcela de pessoas que gosta mesmo de uma coisa específica. Há uns anos isto não acontecia. Tínhamos de ser mais transversais. O pessoal da minha geração, como o César Mourão, ou Fernando Rocha, não trabalhava para nicho. Tentávamos disparar em várias direções para atingir a malta. O que eu gosto nos putos de hoje é que eles estão-se a cagar para isso.
Alguma intervenção dos Homens da Luta que te tenha marcado mais?
Há tantas. Há uns anos, na inauguração do Túnel do Marques de Pombal, no 25 de Abril, invadimos aquilo e fomos presos. Na tomada de posse do Sócrates, também lá fomos e fomos de cana. Com os Homens da Luta era sempre um grande forrobodó. Nós estávamos ali como duas personagens que tinham vindo numa máquina do tempo. Era super poderoso. Nunca tínhamos uma coisa que os autores têm que é o pânico da página em branco. A premissa era: quem é que nós somos? Os Homens da Luta. O que é que nós fazemos? A luta. Onde? Na rua. O que é que há na rua hoje? Hoje vai haver a inauguração de não sei o que. Então, ‘bora. Hoje é a Feira do Livro. ‘Bora lá também. A realidade é que nos alimentava. Era um carrossel. Nunca faltavam coisas para fazer. Depois, era ir, pôr a gravar e era o que saísse.
Quando vocês iam presos continuavam em personagem?
Com os Homens da Luta, principalmente, porque atrapalhavam muito as coisas, o que acontecia era irmos para a esquadra e os polícias tirarem fotos connosco. Faziam fila. E nós, ali detidos. Eles sabiam que a inauguração, por exemplo, durava duas horas. Portanto, prendiam-nos logo ao início. No final, soltavam-nos. Pronto, nós ficávamos ali. Davam-nos café, conversávamos. E, pronto, já podíamos ir embora. Era um “até amanhã”. No dia a seguir éramos presos outra vez. Era um bocado esse ballet. Como fazíamos uma cena cómica, musical — o nosso lema era “A Luta é Alegria” e não éramos agressivos — as forças da lei não olhavam para nós como uma ameaça.
Há uns dez anos, houve a cerimónia de assinatura do tratado de Lisboa, nos Jerónimos. Foi massivo. Estava cá toda a gente: Tony Blair, Merkl, por aí fora. E, nós, claro: temos de lá ir. Fomos, estivemos lá um bocadinho e fomos de cana. O chefe da esquadra disse-nos: “Vocês estão a crescer.” Eu perguntei porquê. E ele explicou-me — nós já vínhamos no briefing oficial de segurança. Ou seja: “Possíveis perigos: Al Qaeda, Homens da Luta…”. Já era um circo.
Há possibilidade de os Homens da Luta voltarem?
É difícil. Fizemos agora uma aparição no 25 de Abril, no Pop da Revolução, um espetáculo no Seixal, com os Amor Electro, com o Carlão, com o Fernando Ribeiro dos Moonspell, com a Aurea. Não fazíamos os Homens da Luta há seis anos. Foi bueda fixe. E isso faz-me pensar, claro. Mas, se fizesse um personagem voltar — e isto não é uma promessa ou sequer um objetivo — seria o machista gay.
Porquê?
É um personagem muito dentro da atualidade. As questões sexuais, de género, estão muito presentes nos dias de hoje. E este é um tipo de personagem que, pelo seu surrealismo, pelo facto de ser machista e ser gay, podia abordar uma série de temas interessantes. Portanto, nunca se sabe.
És um politicamente incorreto a viver num tempo acusado de ser do politicamente correto.
O politicamente correto, termos como esses, é algo que tem chegado à nossa agenda, todos os dias. E muitas vezes isso vê-se de uma forma maniqueista: uns veem só o que é mau, outros só veem o que é bom. Parece que temos de ter todos opiniões muito vincadas e contrárias uns aos outros. Parece que há um estimulo ao conflito, estilo “tu és branco, eu sou preto.” Muitas vezes, quando estamos presencialmente, essas coisas diluem-se. Mas a realidade é que há um mundo novo onde a malta escreve o que quer e lê o que não quer. Agora, o politicamente correto, em que se dita o que é moralmente aceitável ou não, sempre existiu.
Há dois campos da comédia: o popular, que sempre existiu e que muitas vezes é até considerado como um género menor; depois há uma comédia mais elitista — também sempre existiu — ligada a um tipo de pensamento superior, intelectual, à inteligência, ao chamado humor inteligente"
Mas depois há outra coisa. Todos estes temas estão ligados às liberdades individuais. Eu sou um homem, mas quero ser uma mulher. Ou: eu quero tomar isto quando me apetece. É tudo muito individual. Eu respeito muito isso, mas também acho que se está a perder a consciência da sociedade, como um todo. Mobilizamo-nos mais em torno de coisas que se calhar não são assim tão importantes para o todo.
Por exemplo: as alterações climáticas afetam-nos a todos e não causam um décimo da celeuma que causa a adoção de homossexuais. Acho que as prioridades não estão bem calibradas. Isto nota-se socialmente, pelo tempo que damos ao diálogo. Dialogamos menos. Estamos todos muito preocupados em mandar a nossa posta de pescada, o nosso statement, a nossa opinião vincada e depois não queremos ouvir quem pensa diferente. Eu gosto de falar com quem pensa diferente de mim — desde que não seja fundamentalista. Os próprios algoritmos fazem com que só nos cheguem coisas, conteúdos, de quem pensa como nós. Estamos rodeados de gente que pensa como nós. E a cultura do diálogo entre quem pensa diferente, para nos encontrarmos a meio, está a desaparecer. Eu estou numa trincheira e tu estás noutra e não há uma conversa produtiva. Temos de ir para o diálogo, temos de ser curiosos para aprender, saber, tentar absorver, em vez de irmos para um sítio em que se compete e ataca. Atacar é o novo desporto.
Como é que um comediante habituado a chocar encara os tempos semi-regídos pelo politicamente correto?
A comédia sempre esteve na primeira linha da batalha contra o politicamente correto e o papel de quem lá está é um bocadinho ultrapassar a linha dos limites. Vejo muita malta a queixar-se e isso não me parece muito cool, porque um cómico a queixar-se do politicamente correto é estranho. O politicamente correto é um estimulo à comédia. Se não houvesse politicamente correto não havia impacto na comédia. O politicamente correto é uma benesse para o artista.
Já disseste que o humor em Portugal era elitista, que era burguês. Continua a ser?
Noto que tem mudado nos últimos anos. Com o acesso às tecnologias, há uma grande democratização na comédia e vemos malta que, de outra forma, não veríamos. Mas acho que a comédia é, por natureza, sempre um pouco elitista. Há dois campos da comédia: o popular, que sempre existiu e que muitas vezes é até considerado como um género menor; depois há uma comédia mais elitista — também sempre existiu — ligada a um tipo de pensamento superior, intelectual, à inteligência, ao chamado humor inteligente. Esse tipo de comédia, em Portugal, tende a dominar o espaço. Eu acho que a internet nisso veio a mudar as coisas.
Consegues dar-me um exemplo de humoristas que se encaixem nestes universos?
Vou-te dar dois polos, sem julgamento. Por um lado temos o Ricardo Araújo Pereira, que faz um humor quase cientifico, é um humorista da escrita, é um humorista fino, requintado. Por outro, tens o Fernando Rocha, que é um humorista popular. Muitas vezes, mediaticamente, dá-se muito mais atenção ao elitista do que ao popular, o que acaba por ser um reflexo do próprio elitismo.
Acho que não é justo. Não digo que um seja melhor ou pior. Mas são dois polos e descura-se num deles, que é o popular. É uma atitude que é muito portuguesa, porque em Portugal há uma tendência para minimizar aquilo que é a cultura popular. É uma coisa de País pequeno, talvez. A elite que se julga tão cosmopolita e moderna, às vezes acaba por ser provinciana na forma como descura a cultura popular. Sempre tentei misturar um bocadinho os dois.