Mais de 4.800 crianças abusadas pela Igreja Católica em Portugal. É isto que se lê, em letras garrafais pintadas a vermelho, numa parte da imagem que vai compor os outdoors espalhados por Lisboa durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que vai deixar a cidade num caos com a vinda do Papa. Do outro da lado da imagem? Pontos vermelhos. Muitos pontos. Cada um representando uma criança abusada em Portugal no seio da Igreja. Demasiados pontos. Demasiadas crianças. Demasiados crimes que passaram incólumes. A ideia do protesto, que vai passar do papel para as ruas, partiu de um grupo que, não se conhecendo, começou a organizar-se através das redes sociais para expressar o seu desagrado por um evento religioso a acontecer no rescaldo da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças. Do trabalho dessa comissão, saíram relatos. Gráficos. Dados. Informação que chocou toda a gente, menos quem deveria ter chocado.

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Tudo começou no Twitter, depois de Telma Tavares, que é designer, ter usado a sua mestria nesta área para criar a imagem que serviria de pontapé de partida para o protesto público. Tendo como mote o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças, divulgado em fevereiro, criou infografias. E porque uma imagem vale mais do que mi palavras, é esta que diz tudo.

De um lado, os 4.815 casos registados ganharam a forma de pontos pequenos em tamanho, mas grandes em significado, que preenchiam o formato de uma folha A4. Do outro, os 511 testemunhos de pessoas que foram abusadas na infância em Portugal foram postos em colunas, divididas por data de nascimento. E não tardou muito até esta publicação começar a reunir pessoas que, tal como Telma, queriam fazer-se ouvir.

this is our memorial
créditos: Telma Tavares

"Isto não é uma iniciativa minha", conta a designer à MAGG. Telma Tavares não é a porta-voz de um grupo que, inicialmente começou por ser composto por quatro pessoas, mas que, até agora, já conta com mais de uma dezena. "Houve alguém que teve a ideia de fazermos um outdoor", continua, referindo-se a Bruno, que comentou a sua publicação na rede social. Daqui, foi um saltinho até levarem a cabo uma angariação de fundos, cuja criação ficou sob a alçada de João Peixoto, na plataforma PPL.

O objetivo é só um: homenagear as vítimas, numa altura em que este evento religioso colossal vai decorrer "como se nada tivesse acontecido". "Nós estamos indignados, porque, apesar de ter havido estes números [saídos da Comissão Independendente], nem sequer houve um memorial", frisa Telma Tavares, acrescentando que o nome que deram ao grupo serve, precisamente, esse propósito.

This Is Our Memorial, tal como se lê no cartaz. Em português, significa isso mesmo que está a pensar: Este é o nosso memorial. Um memorial às vítimas, e uma crítica à inércia da Igreja.

Uma iniciativa que não para de crescer

O crowdfunding lançado pelo grupo para financiar o primeiro outdoor teve um sucesso surpreendente. Não só amealharam os 950 euros de que precisavam para conseguirem erguê-lo, um feito conseguido em três horas, segundo a designer, como estão a ultrapassar este valor a passos largos.

De forma proporcional à vontade de dar voz à iniciativa, os outdoors também vão multiplicar-se, uma vez que o grupo já terá conseguido angariar 2.169€, graças às 210 pessoas que apoiaram esta causa. Isto significa que, além de já terem verba para mais um painel publicitário do que o previsto inicialmente, vão abrir uma nova campanha para, eventualmente, darem vida a um terceiro.

"Enquanto continuarem [a doar], nós vamos usar esse valor para aquilo que as pessoas querem, que são os outdoors", garante, acrescentando que, para a semana, o primeiro ficará de pé. E, a par deste, aqueles que forem surgindo serão colocados "nas zonas em que está a acontecer a Jornada Mundial da Juventude – em Oeiras, Lisboa e Loures" – mas é provável que não seja só isso que vai ver na rua.

Neste momento, a designer está a criar uma pasta com materiais para que possam ser usados como e quando as pessoas quiserem. "Já me pediram para fazer t-shirts", acrescenta, frisando que já as fez e que também está a converter as infografias em formatos que vão ao encontro das várias redes sociais, para que a mensagem chegue ainda mais longe.

"Para mim, o design também é uma arma"

Apesar de cientes das possíveis repercussões legais, Telma Tavares afiança que o grupo tem sido aconselhado por juristas e estão determinados a prosseguir com o projeto. Na sua opinião, não crê que vá haver alguma resposta de quem é de direito, mas garante que também não era disso que estavam à espera.

A intenção é "criar algum impacto na cidade, é comunicar os números relativos aos abusos sexuais, não é qualquer tipo resposta", adianta. "Eu falo por mim, enquanto Telma, não acredito que vá haver qualquer tipo de resposta e, a haver, será sempre de defesa", continua, descartando a hipótese de que as entidades eclesiásticas "fiquem sensibilizadas por causa disto".

Uma coisa é certa: Telma Tavares, bem como o grupo e todos aqueles que contribuíram para a iniciativa, já fizeram a sua parte. "Eu sou desginer e, para mim, o design também é uma arma", diz. "Só usei a minha linguagem para poder comunicar a toda a gente aquilo que já sabemos desde fevereiro. Mas comunicar de uma forma mais eficaz, com mais impacto e que isso não fosse só meu", conclui.