José (nome falso), é condutor da Uber desde julho de 2019. Como tantos outros parceiros da plataforma, fazia do serviço que desempenhava para a Uber o seu sustento principal com uma faturação que, mesmo em plena pandemia, chegava a rondar os cerca de 50 a 100 euros por dia. Mas desde que a empresa anunciou a funcionalidade que, em teoria, permitiria dar um controlo maior aos condutores sobre as tarifas praticadas durante as viagens (através do aumento ou da redução do valor), José deixou de fazer dinheiro.
O contexto ajuda a explicar. A 29 de outubro, os motoristas da Uber a operar na Área Metropolitana de Lisboa passaram a ter possibilidade de alterar o preço das suas viagens através da ativação de um multiplicador que tem em conta o valor da tarifa base, bem como a distância e o tempo até ao destino escolhido pelo cliente.
Em termos práticos, isto significa que uma viagem que custe 5€ pode passar a custar um mínimo de 3,50€ ou um máximo de 10€. O grande problema? O facto de a aceitação do preço ser, claro, opcional por parte do cliente que preferirá sempre o valor mais baixo que a aplicação lhe mostrar. Só que o cliente não tem conhecimento das tarifas que os motoristas estão a praticar uma vez que apenas lhe é mostrado o valor final.
Se um condutor optar por aumentar a sua tarifa ou mantê-la igual àquela que era praticada pelo restantes condutores antes do anúncio do multiplicador — aquela que estipula um preço base de 90 cêntimos —, o mais provável é que não receba pedidos de viagens porque há quem esteja a praticar preços mais baixos para aliciar novos clientes. É o caso de José que, desde 29 de outubro, deixou de poder trabalhar com a Uber porque a empresa parceira de que é funcionário não o autorizou a alterar o valor.
De uma média de 50€ por dia, a 0€ em apenas duas semanas
"O meu patrão não me deu autorização para baixar da tarifa normal em Lisboa, o que significa que, desde que este multiplicador foi anunciado, não tenho tido trabalho. Cheguei a estar dias inteiros no carro sem ser chamado uma única vez para uma viagem dentro de Lisboa", explica à MAGG sob anonimato por receio de represálias junto da sua entidade empregadora. A exceção, recorda, aconteceu uma única vez quando havia poucos motoristas em funcionamento. Em apenas duas semanas, José viu a sua faturação a baixar da média de 50 a 100€ por dia para um total de 0€, que o obrigou a procurar outro trabalho noutra área completamente diferente e que prefere não divulgar.
A continuidade na Uber, no entanto, é uma possibilidade, mas apenas em dois cenários concretos: em regime de part-time e enquanto funcionário de outra empresa parceira que lhe permita praticar tarifas mais baixas.
Mas, mesmo assim, garante que "a quebra na faturação vai ser muito acentuada", até porque a introdução desta nova funcionalidade coincide com o recolher obrigatório e as restrições à livre circulação nos 121 concelhos sinalizados como de alto risco devido ao foco de infeções por COVID-19. A comissão da Uber por cada viagem, no entanto, mantém-se a mesma, 25%, facto que deixa Nuno Neves, 43 anos, condutor da Uber há três, perplexo.
"Esta nova realidade das aplicações e dos serviços como a Uber veio tirar o sufoco a muita gente, mas agora a corda na garganta está a voltar a apertar. Especialmente nesta altura em que se está a juntar tudo: a crise da pandemia à da economia."
"Embora seja verdade que a Uber já baixou os preços por diversas vezes, nunca reduziu a sua comissão, que continua a ser a mais elevada em comparação com a de outras plataformas [a Bolt tem uma comissão de 15%, enquanto a da FreeNow está estipulada nos 18%]. A introdução deste multiplicador é só mais uma forma de a empresa baixar ainda mais os preços das suas viagens, mas sem ser ela a fazê-lo e passando a batata quente para os condutores que não têm outra opção", lamenta.
É que de cada vez que os condutores se recusam a baixar as suas tarifas e perdem viagens para outros motoristas que pratiquem preços mais baixos, é a própria Uber que, através da aplicação, os alerta para essa realidade através de, nas palavras de José, "um aconselhamento por mensagem na forma de pressão psicológica cujo objetivo é só fazer-nos baixar ainda mais os valores praticados".
A aceitação de trabalhar com preços mais reduzidos traduz-se em mais viagens, mas em menos dinheiro faturado. "Antes de começar a crise provocada pelo surto da COVID-19 no País, chegava a faturar, ainda que em regime de part-time, cerca de 60 a 70 euros por dia. Agora é para chorar", diz Nuno referente ao período compreendido entre 27 e 30 de outubro. "Nesses quatro dias, fiz um total de 106€", o que equivale a cerca de 26€ por dia. "Nem dá para o gasóleo", desabafa.
"Neste momento, uma viagem de apenas três quilómetros na Uber rende cerca de 2.70€ aos motoristas. São viagens ao preço da chuva, porque somos obrigados a mexer no multiplicador, e a reduzir o preçário, porque a aplicação vai-nos dizendo que estamos a perder viagens. Num dos trajetos que fiz recentemente, o cliente pagou 12€ por 14 quilómetros que se traduziu em apenas 9,01€ para mim. Quando entrei na Uber, em condições normais, uma viagem do aeroporto de Lisboa para Cascais nunca ficava a menos de 30€ para os condutores", explica.
Mas o mais "revoltante" e "inacreditável", é que esta funcionalidade foi implementada "de um dia para o outro", sem que tivesse havido espaço para contestação, informação ou esclarecimento de dúvidas. A partir do momento em que o multiplicador foi acionado, os pedidos de viagens aumentaram exponencialmente.
"Desde que comecei a usar o multiplicador, não consegui trabalhar com mais nenhuma aplicação porque os pedidos de viagem eram bastantes devido aos preços mais baixos. Foi uma coisa fora do normal. Ainda não tinha terminado uma viagem e já estava a cair outra. Trabalhei muito, é certo, mas ganhei muito pouco", diz Nuno que reconhece, ainda assim, não ser um dos mais afetados por ter um emprego fixo e usar a Uber apenas em regime de part-time para "juntar um dinheiro extra". Mas teme por todos aqueles que, ao contrário de si, "vivem inteiramente dependentes disto para alimentar mais bocas".
"Esta nova realidade das aplicações e dos serviços como a Uber veio tirar o sufoco a muita gente, mas agora a corda na garganta está a voltar a apertar. Especialmente nesta altura em que se está a juntar tudo: a crise da pandemia à da economia", e Nuno tem poucas esperanças de que a Uber possa voltar atrás e desmantelar o multiplicador.
"A melhor maneira de se castigar a Uber seria os motoristas e os passageiros não usarem a aplicação", mas concorda que irá depender sempre das condicionantes do parceiro para quem trabalha, mas também dos clientes. "A minha linha vermelha é não baixar da tarifa 0,8, porque aí tenho apenas uma perda de 18 cêntimos de preço base. Se baixar para a tarifa de 0,7, estou a atirar dinheiro para o lixo."
A redução de preços traduz-se também em tempos de espera elevados
Mas a redução de preços não significa só vantagens para os clientes. Estes podem correr o risco de, para conseguirem uma viagem mais barata, terem de esperar mais por um condutor que está muito longe do local de recolha — mesmo que haja outro perto, mas cuja tarifa está mais elevada.
Quem o diz é Gleydson Silva, 29 anos, condutor da Uber há dois meses e cuja única fonte de rendimento vem das viagens que faz enquanto motorista e cuja quebra na faturação ultrapassa os 50% desde a introdução deste multiplicador. "Já me aconteceu estar no Bairro Alto e ser chamado para ir recolher um passageiro que estava na Amadora e que ia para a Pontinha. Foi uma viagem que não me foi rentável. Além disso, é quase impossível que, naquele momento, não houvesse condutores mais próximos. Mas se calhar estavam com tarifas mais elevadas e não foram selecionados pela aplicação para aquela viagem", explica.
Isto pode, segundo José (nome falso), servir para pressionar a Uber a tomar medidas, especialmente se os clientes se "começarem a cansar de esperar cada vez mais pela chegada dos motoristas", que até então eram quase sempre imediatas.
A Uber, no entanto, não mostra sinais de cedências. Questionada pela MAGG sobre algumas das queixas dos seus condutores, uma fonte oficial da empresa defende e justifica o multiplicador. "Estamos a introduzir esta nova opção em Lisboa para permitir aos motoristas decidir os preços, garantindo mais controlo sobre os seus serviços", naquele que considera ser "um passo para aumentar a flexibilidade e escolha" que os "motoristas valorizam".
Sobre as queixas de que a possibilidade de controlar a tarifa é, na verdade, uma forma de penalizar condutores que não a aumentem por não lhes ser rentável financeiramente, a mesma fonte diz que a ideia desta nova funcionalidade é querer "dar autonomia e flexibilidade à comunidade de motoristas, o que significa que estes podem decidir qual é a melhor opção, reduzindo ou aumentando os preços para os mesmos, onde e quando quiserem".
E continua, sem responder diretamente às queixas dos motoristas: "Esperamos que os motoristas decidam os preços que acreditam aumentar o número de viagens que fazem, por exemplo, fora dos horários de pico."