No final da gravidez, Ana Vilaça teve uma rutura alta da bolsa e, por isso, Tomás nasceu prematuramente, a 22 de maio, com 35 semanas. Era dia de Santa Rita de Cássia, coincidência de que ela já havia dado conta. Mas havia um pormenor sobre esta divindade que esta assistente social desconhecia. A descoberta acontece muito tempo depois, no contexto mais assustador em que uma mãe pode estar: com seis anos, o seu filho estava a entrar para uma sala de operações, para ser submetido a uma cirurgia altamente invasiva. Nesse dia, ao ler a sua data de nascimento, é a enfermeira do Instituto Português de Oncologia, no Porto, que chama a atenção. "Ó Tomas, tu vais ser abençoado porque nasceste no dia da santa das causas impossíveis.”

Ana Vilaça, 36 anos, natural de Braga, não tem dúvidas de que há alguém a olhar pelo filho, porque, apesar do infortúnio, a sorte tem estado do seu lado. Tudo começou em setembro de 2019, altura em que foi diagnosticado um neuroblastoma a Tomás, um cancro agressivo e altamente invasivo. A 1 de outubro o cenário piora: ficou a saber-se que tinha amplificação do N-Myc, o gene mais agressivo e resistente desta doença. Desde 2019, com 7 anos, foi já submetido a oito ciclos de quimioterapia, a uma cirurgia, a um autotransplante, vários ciclos de radioterapia e imunoterapia.

"Nasceu no dia de Santa Rita de Cássia, fez o autotransplante numa quarta-feira de cinzas e foi submetido à cirurgia no dia de Madre Teresa de Calcutá. Há uma série de coincidências que me permitem dizer que o Tomás tem um caminho tortuoso, mas protegido. Acredito que ele está divinamente protegido por esta gente toda", conta Ana Vilaça à MAGG. “Ele é um guerreiro."

E é mesmo. A 25 de setembro de 2020, com o tumor já praticamente retirado — permaneceram apenas dois pequenos vestígios que, aparentemente, estavam em necrose (o risco de os retirar era maior do que deixá-los ficar) —  e com a esperança de que o filho estaria já em segurança, a doença voltou à vida, provando-se assim a resistência deste cancro, capaz de sobreviver a todos aqueles tratamentos.

"Os pais que passam por isto sofrem de stress pós-traumático porque andam uma vida inteira com medo que o cancro volte. Isso acontece. Aconteceu-nos, infelizmente."

Tomás, relata-nos a mãe, aceitou sem choros e com pragmatismo aquilo que teria de enfrentar novamente: mais ciclos de quimioterapia, uma intervenção cirúrgica ainda mais invasiva (para tentar remover os restos que ficaram no seu corpo, num local de dificílimo acesso) e, se tudo correr bem, um tratamento no estrangeiro. “Agora é o tudo ou nada. A cirurgia é de alto risco, mas a nossa alternativa também é de alto risco.”

A história é-nos narrada ao pormenor por Ana Vilaça, mas é também descrita na campanha de angariação de fundos que, em conjunto com o marido Ricardo Vilaça, 38 anos, engenheiro informático, lançou no Facebook para reunir o dinheiro necessário para que, depois de todos os tratamentos e cirurgias a que Tomás tem de ser submetido em Portugal, a criança possa ir para Barcelona ou Estados Unidos, participar num ensaio clínico e "fazer os tratamentos orientados em concordância com a equipa clínica que acompanha o Tomás no IPO do Porto". Problema? O tratamento custa 400 mil euros.

Ana Vilaça descreve-nos o seu filho ao telefone: é “traquina”, “brincalhão”, “muito astuto”, “parceiro do seu parceiro” e “amigo do seu amigo”. E extremamente ativo: com apenas seis anos, duas semanas antes de se saber que estava doente, percorreu com o pai 15 quilómetros de bicicleta. Nesta altura, Ana já estava muito grávida de Constança, a irmã que desde os três anos este menino desejava que se juntasse família.

O diagnóstico de Tomás e o nascimento de Constança aconteceram praticamente em simultâneo.

"Quando entrei no IPO pensei que nunca na minha vida ia ter de estar estar ali, muito menos pelo meu filho”

Os sinais de que algo não estava bem com a saúde do Tomás começaram com aquilo a que se dá o nome de parestesia, sintomas sensoriais anormais do corpo, que os pais associaram a um ataque cardíaco e os médicos a uma gastroentrite, na sequência da criança ter começado a vomitar depois de chegar à urgência. Ainda sem saberem, é neste mês de setembro que a vida desta família se começa a repartir entre a casa e o hospital.

Tomás voltou para casa, mas não estava bem. Nessa mesma noite, começaram as febres, nunca muito elevada, mas, com o correr dos dias, cada vez mais difícil de baixar. De volta às urgências, mais um possível diagnóstico: infecção respiratória. No dia seguinte, Ana entra em trabalho de parto, mas antes de ir dar à luz passa pelo quarto do filho para lhe entregar um brinquedos especial. “É um boneco — o Tomás chama-lhe Kiki — em que tudo nele é disforme”, conta. “Fazemos a questão de dar a todos os meninos da nossa família, para eles perceberem a dinâmica do boneco e respeitarem a diferença e perceberem que é nisso que somos bonitos.”

Ricardo ficou com Tomás e Ana com a sua mãe, Joaquina, de 65 anos. “Às 10h57 nasce a Constança já com o pai no quarto. Eles [Ricardo e Joaquina ] trocaram.”

Entretanto, Tomás já está em casa e Ana continua no hospital. Mas a febre não dá tréguas e a criança volta a ser internada, no momento em que a mãe tem alta e vai para casa com a bebé. “Não podia ficar com ele no internamento porque a Constança mamava de meia em meia hora”, lembra. Ainda assim, conseguiu ir visitar o filho: “Achei-o magro, não o achei bem. Mas achava que era a infecção respiratória e que iam trocar o antibiótico.”

Na terça-feira da semana seguinte faz exame à tuberculose e na sexta-feira é contactada pela pediatra: deu negativo. Mas as temperaturas persistiam. Pôs-se a hipótese de ser psicossomático, fruto da chegada do novo membro da família. Ana Vilaça nunca acreditou: “A mim custava-me a acreditar que era por ter ciúmes da irmã.”

Por esta altura, Tomás vomitava tudo o que comia. Estava cada vez mais magro. “Ele não comia, só vomitava e só suplicava em choro para não lhe darmos de comer”, conta. “Por isso, alertei a pediatra para se valorizar a parte gástrica.”

Foi prescrita uma ecografia, apesar de ele não encaixar nos parâmetros, e o diagnostico certo começa a ver a luz do dia. “Estava uma massa de 11 centímetros por 6,7 na supra-renal esquerda.” Quem estava no hospital era Ricardo: “Disseram ao meu marido que estávamos perante um tumor que parecia ter configurações malignas.”

O mundo parou. Ao telefone, a voz de Ana não esconde a dureza desta memória. “É como se nos esfaqueassem. É muito primitivo o que se sente. É claramente a dor do instinto de protecção maternal”, diz. Os pais souberam, então, que se tratava do neuroblastoma, com a mutação mais agressiva de todas. “Todo o quadro era negativo”, conta. “Quando entrei no IPO pensei que nunca na minha vida ia ter de estar estar ali, muito menos pelo meu filho. Nos dias seguintes andava e espetava as unhas na mão. Ainda tenho marcas. Precisava de ter a certeza de que isto estava mesmo a acontecer.”

Só tinham um caminho possível, aquele em que ainda hoje se mantêm: ligar o modo prático, percorrer um passo, uma etapa, de cada vez e, assim, fazer os possíveis e impossíveis pelo filho.

“Ninguém fala do papel dos avós nestes processos. É terrível. Ficam a segurar a família inteira"

Quando Tomás foi diagnosticado, Constança tinha dias de vida. Ana estava em pleno pós-parto, mas com tudo a acontecer, esquecia-se de si. Faltava às consultas, andava quilómetros por dia, não atentava às suas dores físicas. “Andei a ignorar as dores no fundo da barriga e tinha de ser a médica a andar em cima de mim, porque eu faltava às consultas. Fazia quilómetros todos os dias, num pós-parto com um stress emocional gigante. Eu tinha de estar perto do meu filho.”

Também no IPO, as médicas tentavam cuidar de Ana. “Não me deixaram ficar com ele durante a noite. Mandaram-me ir dar de mamar e voltar de manhã. Disseram-me ‘não há problema, o Tomás vai ser bem cuidado, o pai está aqui com ele.”

E assim foi. Durante o dia Ana estava com Tomás e durante a noite estava com Constança. Joaquina, a avó das duas crianças, teve — e tem — um papel fundamental nesta nova gestão dos dias. Tem sido um pilar imprescindível: “Ninguém fala do papel dos avós nestes processos. É terrível. Ficam a segurar a família inteira, a ver a filha e o neto a sofrer. Eles sofrem por todos. E ainda têm de dar suporte”, conta Ana. “Sem o apoio da minha mãe não sabia como teria sido.”

Agora, é do apoio de todos que esta família precisa. Sobre a campanha de angariação de fundos que lançaram, Ana é clara: “Não estamos nesta exposição pública porque queremos. Não temos alternativa. Quem nos dera a nós não estar.”, diz.

Correndo tudo bem, fazendo os novos ciclos de quimioterapia e a nova cirurgia, Tomás precisa então de seguir para Espanha ou para os Estados Unidos para o tal tratamento de um ensaio clínico, cujos custos são extremamente dispendiosos. A história da criança gerou uma onda de solidariedade tão grande que, dos 400 mil euros necessários, já foram angariados 200 mil.

Ricardo está em teletrabalho e Ana Vilaça meteu uma baixa médica de assistência à família. Tem saudades da sua vida anterior a setembro de 2019. Sente falta das suas rotinas. Sente falta de ir buscar o filho ao colégio, de levá-lo ao parque, de chegar a casa, dar-lhe banho, de dar-lhe de comer e de pô-lo a dormir. Vê os profissionais de saúde no hospital e sente saudades de também ela ter colegas. Sente saudades de lhes dizer “até amanhã” ou “bom fim de semana.” “Era a minha vida normal", descreve-nos.

Tomás também tem planos para a sua vida. Descrito como sendo um "menino cheio de sonhos", quer ser jogador de futebol, aprender artes marciais e ensiná-las à sua irmã Constança. Até lá, é um guerreiro.

IBAN para ajudar o Tomás: PT50 0007 0000 0051 0803 9412 3