No mais recente episódio de "Hell's Kitchen", os concorrentes tiveram de executar a temida prova do ovo estrelado. Houve de tudo para todos os gostos, dos mal passados aos esturricados, mas só Lucas recebeu elogios de Ljubomir Stanisic. O empresário usou manteiga para confecionar o ovo, o que deixou o temido chef encantado da vida.

Ljubomir Stanisic elogiou o ovo confecionado por Lucas
Ljubomir Stanisic elogiou o ovo confecionado por Lucas créditos: SIC

Mas, afinal, só de manteiga vive um ovo estrelado? Qual é a gordura certa para confecionar este aparentemente simples prato? E os ovos, devem ser guardados no frigorífico? A MAGG falou com os chefs Lúcia Ribeiro e Samuel Mota e esclareceram todas as dúvidas. Mas (spoiler alert), se acha que vai encontrar uma fórmula infalível, desengane-se.

Para começar, Samuel Mota lança um alerta sobre higiene. O chef do restaurante Casa Tradição salienta a importância de partir o ovo não numa esquina, mas numa superfície lisa, para não contaminar o ovo. "É um erro comum, que muita gente faz. A casca do ovo não está 100% limpa. Não é que nos vá fazer mal mas pode poluir o ovo". O melhor, diz, é mesmo bater o ovo na bancada da cozinha e tentar abri-lo sem que os dedos toquem no conteúdo.

Lúcia Ribeiro, sous chef do hotel algarvio Pine Cliffs Resort, salienta que o resultado final de um ovo estrelado está sempre relacionado com o gosto de cada um. "Há pessoas que gostam do ovo com a gema dura, há quem goste mais líquida, há quem goste dele mais frito por baixo. Para fazer um ovo estrelado perfeito, misturo um bocadinho de azeite com óleo, como por exemplo Becel, para não ficar a saber tanto a azeite. Quando está quente ponho o ovo mas não deixo borbulhar muito. Faço a baixa temperatura para a parte da clara ficar igual e a gema ficar bastante líquida", começa por dizer.

Não havendo, ao contrário de outras receitas cuja base são os ovos (como, por exemplo, as omeletes), uma regra histórica para a confeção do ovo estrelado, Samuel Mota salienta que "há toda uma abertura para se interpretar o ovo estrelado de uma maneira completamente diferente de pessoa para pessoa".

O chef natural de Leiria, que viu o episódio de "Hell's Kitchen" defende que "o ovo tem que grelhar, tem de ganhar uma crosta crocante por baixo, para que tenha diferentes texturas". "Depois, a questão divide-se: queremos um ovo bonito ou queremos um ovo saboroso? Um ovo bonito tem a clara na perfeição e a gema no ponto mas eu já vi chefs franceses e professores da escola em que eu andava que nos obrigavam a que o ovo entrasse na frigideira bem quente para ganhar uma crosta por baixo", explica.

Ao contrário da execução de Lucas em "Hell's Kitchen", Lúcia Ribeiro alerta para o facto de a manteiga "começar logo a queimar". "Ao fazer um ovo estrelado na manteiga, as pontas do ovo começam logo a ficar mais estaladiças", explica.

Lúcia Ribeiro, executive sous chef no Pine Cliffs
Lúcia Ribeiro, executive sous chef no Pine Cliffs créditos: Instagram

A chef recorda a passagem por um restaurante com estrela Michelin, em Londres, onde tinha de fazer "o ovo estrelado perfeito". "Tinha sempre pequenas frigideiras em cima do fogão, mas só com a pontinha a tocar no fogão. Estavam sempre quentes. Punha ali o ovo a estrelar devagarinho e ele ficava perfeito para ir para o prato".

Manteiga, azeite, óleo ou banha?

Lúcia Ribeiro aconselha a não confecionar ovos com manteiga. "O ovo estrelado com manteiga vai ter um outro sabor.  O que se faz muito na alta cozinha é usar a manteiga clarificada [manteiga derretida e da qual foram retirados os sólidos lácteos, restando apenas a gordura]. Essa gordura é fantástica, podemos fritar o que quer que seja, à temperatura que quisermos, que aquilo não queima", explica a executive sous chef do hotel de 5 estrelas do Algarve.

Samuel Mota dá uma explicação que está relacionada com geografia. "Se fôssemos para o Norte, se calhar as pessoas faziam ovos com banha. No Alentejo, faziam-se ovos com azeite. Isto no passado, tinha a ver com a gordura mais abundante que havia em casa", relembra.

Samuel Mota, chef do Casa Tradição
Samuel Mota, chef do Casa Tradição créditos: DR

"Se nos regermos pela cozinha francesa, e a cozinha profissional segue as regras francesas, há chefs que metem a manteiga mais cedo e ela queima um pouco. Dá um sabor mais a avelã, é a chamada noisette e há chefs mais conservadores que também metem manteiga no final para que o ovo fique só brilhante", explica o responsável pela cozinha do Casa Tradição.

O chef salienta, no entanto, que todas as gorduras funcionam. "Eu gosto de pôr manteiga, porque tem a parte do soro, que fica guloso e fica com outro brilho, outro sabor".

A execução e a questão da frigideira

Nas cozinhas profissionais, são muitas vezes usados aros de metal, que são colocados dentro das frigideiras e para onde se parte o ovo. O objetivo é conseguir um ovo estrelado redondinho. "Se quisermos um ovo estrelado mais rústico, podemos abri-lo diretamente na frigideira. Mas claro, como é para um restaurante, num programa de televisão, o aspecto conta, é importante estar no aro para ter uma forma mais bonita", explica Samuel Mota. "No meu restaurante, como é mais tradicional, faço uma coisa mais rústica".

E quanto à frigideira, deve ou não ser antiaderente? "Se for tudo feito com amor e carinho, qualquer panela serve. Mas é melhor que esteja numa panela antiaderente", salienta Lúcia Ribeiro. Samuel Mota também defende a utilização de loiça antiaderente. "Se nós tivermos um bife numa frigideira antiaderente, a caramelização fica no bife. Se fizermos numa frigideira que não seja antiaderente, fica na frigideira. Nenhuma está errada mas a crosta fica no ovo e não agarrada à frigideira".

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E devem banhar-se os ovos com a gordura para que a clara cozinhe mais rapidamente? O chef do Casa Tradição diz que não é necessário, "a não ser no final com manteiga". "Se fizer diretamente na frigideira, a temperatura é suficiente para a clara ficar cozinhada e não bater na gema, para que esta fique cremosa". 

Tempero. Sal, pimenta, flor de sal?

"Eu ponho sal fino quando estou a estrelar, mas muito pouco e, depois, termino na gema com flor de sal", explica Lúcia Ribeiro. A chef não usa pimenta porque "tira o sabor da comida".

Samuel Mota defende que, tal como foi feito em "Hell's Kitchen", se deve colocar "flor de sal na clara e a pimenta moída ao momento na gema".

E os ovos?

Devem ou não guardar-se no frigorífico? "É mais fácil se estiverem à temperatura ambiente. A clara estrela de maneira diferente. Um ovo que esteja muito frio, a clara parece que se concentra muito, não se espalha. Eu prefiro ter os ovos fora do frigorífico", explica a chef Lúcia Ribeiro, acrescentando que é "um mito" a obrigatoriedade de guardar ovos no frio. "Aqui em Portugal, quando compramos os ovos, eles nem sequer estão refrigerados. Porque é que em casa temos de os pôr no frigorífico? Claro que no Algarve, no mês de agosto, não deixo os ovos cá fora porque está muito quente".

Samuel Mota tem uma opinião um pouco diferente. "Para estrelar até é importante estar no frio umas horas antes. Se estrelarmos sem o aro, a clara fica mais líquida e abre muito. Se o ovo estiver frio, a clara fica mais fria e fica perfeito".

O chef do restaurante Casa Tradição (a funcionar em take away e com encomendas na plataforma online) defende que vale a pena investir em ovos de boa qualidade. "Eu tenho o restaurante em Lisboa mas os meus pais são de Leiria. A minha mãe manda-me muitos ovos de uma vizinha que tem galinhas de campo e não tem nada a ver".

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"Já se conseguem encontrar ovos biológicos, de galinhas criadas ao ar livre, sem ser nos supermercados. Existem empresas e fornecedores só de ovos e faz toda a diferença. Os ovos cozidos a baixa temperatura durante 48 horas, que estão muito na moda, têm mesmo de ser feitos com ovos biológicos para, depois, quando se abre o ovo no prato, a clara não fugir e ficar redondinho e perfeito. Compensa sempre usar ovos mais frescos e biológicos", finaliza Samuel Mota.

Se tal como nós, ficou confuso mas com uma vontade danada de mergulhar um pedaço de pão numa gema molengona, tem bom remédio. Pegue nos ovos, na gordura à sua escolha e ala para o fogão. A prática faz a perfeição.