Além da falta de referências femininas na cozinha que sirvam de inspiração, há uma expectativa culturalmente enraizada na sociedade portuguesa que espera que sejam as mulheres a abdicar de uma eventual carreira em prol da família. A isso junta-se também o facto de, por vezes, haver uma tendência para que as mulheres se vejam obrigadas a anular-se de modo a serem levadas a sério num meio tipicamente masculino.

São estas as razões que, para as chefs Lúcia Ribeiro, Natalie Castro e Ana Moura, ajudam a explicar o número reduzido de mulheres na alta cozinha portuguesa — e o facto de, atualmente, não haver nenhuma detentora de uma estrela Michelin.

"Quantas mulheres temos em Portugal com estrelas Michelin? Zero"
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Embora haja muitas a iniciar-se nesta área e tantas outras se encontrem no ativo, a verdade é que não são tão visíveis quanto os homens num meio que ainda é visto como de bad boys. Para piorar, não ajuda que programas como o "Hell's Kitchen", a nova aposta da SIC com Ljubomir Stanisic como rosto, transmitam uma imagem datada daquele que é um ambiente vivido numa cozinha e que, além disso, perpetuem estereótipos de género.

É esta a opinião de Natalie Castro, chef do Isco, que, à MAGG, diz não servir de nada "apostar-se em campanhas de sensibilização contra o bullying se, depois, é isto [referindo-se ao programa] que temos para mostrar a Portugal num canal generalista e em horário nobre."

Um programa que representa o ambiente de uma cozinha do passado

Sobre os momentos que considera críticos na nova aposta da SIC para as noites de domingo, denota alguns: a divisão de equipas entre homens e mulheres, a violência dos comentários e os estereótipos que saem reforçados.

"O facto de dizer à equipa das mulheres que a cozinha delas está um nojo e que até os homens a têm mais arrumada... O que é que isto quer dizer? Depois há, também, a violência com que se fala com as pessoas. A frase "já defequei melhor do que isto" [dita por Ljubomir ao analisar um prato], por exemplo. Entristece-me e envergonha-me que, em 2021, ainda se façam programas destes. Parece que damos três passos para a frente e outros cinco para trás. Assim é muito complicado mudarmos mentalidades", diz.

Natalie Castro
Natalie Castro é chef do Isco e lamenta que da mulher se espere tudo, menos a capacidade de assumir um cargo de liderança

Foi neste contexto, aliás, que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) diz ter recebido várias queixas por comentários sexistas e misóginos que terão sido proferidos durante o programa, segundo escreve a "N-TV". Embora não refira a natureza das queixas, o regulador diz que "o número de participações rececionadas sobre alegados comentários ou observações de pendor sexista" tem sido regular sobre programas de televisão, no qual este novo "Hell's Kitchen" também se inclui.

Ana Moura, que se encontra a preparar a abertura do seu novo restaurante, o Lamelas, que espera que aconteça antes do verão, partilha da mesma visão de Natalie Castro e acredita que "este programa já não representa a 100% a realidade da cozinha de hoje."

"Este programa é uma cópia de outro que existiu e que representa o ambiente de uma cozinha que existiu no passado. Ainda haverá algumas assim, mas cada vez menos há esta toxicidade e este clima de machismo. Fala-se cada vez mais da saúde mental dos cozinheiros e já se começa a dissipar esta ideia datada que um chef tem de aguentar 20 horas de trabalho e ser um super-herói, porque os cozinheiros já não são só um número. São pessoas, têm famílias, vidas fora do trabalho, hobbies e cada vez há mais formação na cozinha."

Chefs portuguesas que vale a pena conhecer?

Há cada vez mais chefs portuguesas no ativo que servem de exemplo para que outras possam sentir-se inspiradas a iniciar-se na cozinha profissional. Estas são só algumas das chefs portuguesas que vale a pena conhecer e seguir no Instagram para acompanhar o seu trabalho.

É por isso que, atualmente, não lhe faz sentido associar traços de personalidade a um género. "Tanto é mau perpetuar a ideia de que as mulheres têm de ser arrumadas, organizadas e limpinhas, como é mau achar que os homens são sujos e porcos."

Embora Lúcia Ribeiro, chef do Pine Cliffs Resort, no Algarve, admita não poder falar por todas as cozinhas portuguesas, diz conhecer chefs que "hoje em dia, não precisam de maus-tratos nem de tanta gritaria para gerir uma cozinha."

"Ele tinha muitos problemas com o facto de lhe dar indicações, e num dos serviços agarrou-me pelo pescoço enquanto na outra mão tinha uma faca"

Ainda assim, tem ideia de que em países como o Reino Unido ainda é "um bocadinho normal ser-se assim mais agressivo", embora ache que "as pessoas estão a mudar e que, no futuro, haverá um maior equilíbrio entre o trabalho e a pressão" que dele advém.

Outra ideia que tem de ser desconstruída, diz Ana Moura, é a de que há falta de camaradagem entre as equipas femininas na cozinha que pareceu, aliás, ser aludido com a estreia do programa. A chef apoia-se nos anos de experiência que acumula no currículo para falar com propriedade, dizendo que, atualmente, "há cada vez mais mulheres a puxar umas pelas outras e a fazer por chegarem, juntas, mais longe".

"As mulheres estão a proteger-se umas às outras, como os homens já o fazem entre si, e cada vez menos interessa se é homem ou mulher, mas sim se é ou não competente", refere.

Porque há mais homens na alta cozinha? Porque as mulheres "nunca lá chegam"

Ainda que haja cada vez mais mulheres na cozinha, as estrelas Michelin são, para já, exclusivas dos homens. Uma das explicações possíveis, diz Lúcia Ribeiro, passa por "talvez não haver mulheres que se dediquem à alta gastronomia da mesma maneira que os homens se têm dedicado em Portugal."

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E isso nada tem que ver com a falta de capacidade, mas sim com a ideia culturalmente enraizada, e tipicamente conservadora, de que cabe à mulher abdicar da carreira em prol da família. "Em Portugal, há muito a cultura da família e aquela mulher que é casada e tem filhos não quer trabalhar à noite nem aos fins de semana", porque isso implica estar longe dos filhos.

Ribeiro falta com experiência: é que além de chef, é mãe de dois filhos que não vê tantas vezes quanto gostaria porque, lamenta, isso simplesmente não se coaduna com o seu trabalho.

Sobre porque é que há mais homens na cozinha, a chef algarvia é assertiva. "Porque as mulheres nunca lá chegam. Tiram um ano para uma gravidez, outro ano para outra e vão perdendo aquele ritmo, porque é preciso um ritmo e uma organização suprema na cozinha, para se atingir os níveis mais altos da gastronomia."

lúcia ribeiro
Lúcia Ribeiro, chef do Pine Cliffs Resort, diz que se espera da mulher que abdique da carreira em prol da família

E enquanto na Europa não faltam exemplos de mulheres com estrelas Michelin, em Portugal são "puxadas para trás". "Somos postas a limpar bancadas, a tratar dos frigoríficos e das ervinhas enquanto os homens cozinham. Tive várias lutas em Portugal porque queria estar no fogão a cozinhar e não apenas a limpar frigoríficos, que também faço. Temos de nos impor enquanto mulheres e, às vezes, temos de nos pôr em situações não muitos confortáveis."

Uma dessas situações, recorda-se bem, aconteceu quando Lúcia Ribeiro trabalhava na cozinha de um restaurante no Reino Unido. Embora estivesse há muito tempo a gerir uma secção específica, acabou por não ser escolhida para uma promoção e o restaurante contratou um cozinheiro italiano.

Na estrutura hierárquica da empresa, o cozinheiro recém-chegado estava acima de Ribeiro, mas era dela que recebia as instruções — até porque era Lúcia quem conhecia o método de trabalho daquela cozinha.

"Ele tinha muitos problemas com o facto de lhe dar indicações, e num dos serviços agarrou-me pelo pescoço enquanto na outra mão tinha uma faca". E embora recorde como toda a cozinha "saltou em peso" em sua defesa, e o cozinheiro tenha acabado despedido, só o facto de ter sido tomado esse passo foi "muito assustador".

A falta de referências na alta cozinha e a anulação feminina

Ana Moura, que está prestes a abrir o seu novo restaurante em Porto Covo, apoia-se na História para afirmar que "o mundo das cozinhas sempre foi liderado por mulheres". O facto de a alta gastronomia portuguesa continuar associada aos homens decorre, na sua opinião, da falta de exemplos — ou referências — que possam inspirar "outras mulheres a seguir uma carreira nesta profissão."

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E embora admita que, atualmente, "há cada vez mais referências", diz que, "por se tratar de um meio muito masculino, era frequente as mulheres não se encaixarem tão bem na cozinha por sentirem que, para o fazerem, tinham de ser mais masculinas." E esta foi uma sensação que a própria chef sentiu na pele, tal como conta à MAGG. "Cheguei a trabalhar numa cozinha só de homens e, para pertencer ao grupo, tentei ser um deles e não uma mulher."

Se não o fizesse, não a levariam tão a sério? "É por aí, sim. Tinha de ser mais um deles, mas isto é transversal a todas as profissões e, atualmente, já houve muitas mudanças alavancadas pelos movimentos feministas. No passado, havia uma maior discriminação e a mulher era muito associada à posição de ajudante de cozinha. As coisas, felizmente, mudaram", refere.

ana moura
Ana Moura prepara-se para a abrir o seu novo restaurante em Porto Covo, e diz que a falta de representativade feminina é transversal a qualquer profissão, mas que, felizmente, as coisas estão a mudar

É que, quando se começou a formar em cozinha, da sua turma faziam parte apenas quatro mulheres. Atualmente, as turmas com quem vai lidando são compostas por "50% de homens e 50% de mulheres", numa mudança de paradigma que começou a ser sentida há cerca de cinco anos, refere.

Para Natalie Castro, há cozinheiras muito boas em Portugal. A falta de representatividade, diz, tem que ver com o "número muito reduzido" de mulheres no ativo em comparação com os homens. É por isso, refere, que "tem de começar a ser dado o devido destaque, e de igual modo". Não apenas por serem mulheres, mas porque "são competentes e realmente boas naquilo que fazem."

Para explicar a falta de visibilidade, vê-se a concordar com as opiniões de Lúcia Ribeiro e de Ana Moura, por considerar que a expectativa de travar a carreira em prol da família conduz, posteriormente, à falta de referências que sirvam de inspiração a outras mulheres.

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É que Natalie é mãe de três filhos e diz que, caso os tivesse tido antes de iniciar-se na cozinha, a história teria sido muito diferente. "É tão simples quanto isto: se tivesse começado uma carreira na cozinha antes de ser mãe, dificilmente teria tido os três. Apesar de ter tido muita sorte nas chefias que fui encontrando nos vários sítios em que trabalhei, porque nunca senti que o facto de ser mãe era um impedimento ao meu crescimento, creio que a nossa sociedade não está preparada para ter mulheres a liderar."

"Também acontece muito acharmos que, para sermos respeitadas, temos de entrar nas brincadeiras dos homens e achar piada ao que eles dizem. Demorei a perceber que, ao fazer isso, não estava a dignificar o facto de ser mulher porque era só mais um dos rapazes. E isso não tem de ser assim. Podemos ser mulheres sensíveis, empenhadas, preocupadas, responsáveis e extremamente trabalhadoras para singrar."

"Mas é muito complicado porque essa é uma ideia que está extremamente enraizada. Espera-se da mulher que seja mãe, esposa e cuidadora. Não se espera que esteja preparada para um cargo de liderança", lamenta.