Voo às 17h30 para os Açores. Espera, afinal é às 19 horas, avisa-nos uma mensagem da SATA. Já no aeroporto, percebemos que, se calhar, só lá mais para as 20h15. Resultado, são 23 horas quando aterrámos em São Miguel e 23h30 quando chegámos ao hotel.
Hotel não será bem o termo e o nome La Maison sugere isso mesmo. Aqui não há receção, pequenos-almoços buffet ou serviço despertar. Mas há roupões daqueles que só vestimos nos hotéis, camas onde cabíamos três vezes e uma lareira acesa à nossa espera.
Digamos que nesta moradia na zona de Lagoa misturam-se todos os apaparicanços que esperamos quando pagamos para dormir fora, sem que para isso seja preciso sentir que não estamos em casa. É que foi nesta moradia que viveram, durante 12 anos, João e Catarina Reis, os proprietários deste espaço agora aberto a todos. Esta nova unidade hoteleira junta-se assim ao White, que fica a uns 50 metros de distância e é um dos mais exclusivos hotéis dos Açores, não só pelo preço, mas pelas comodidades e a vista que, às vezes, nos faz questionar se aquele pôr do sol sob o mar será uma espécie de holograma incluído no pacote da dormida.
Já no La Maison, a ideia é encher a casa com amigos e família, sabendo que não faltam os detalhes que procuramos num hotel. No total existem quatro quartos, dois deles com acesso direto à piscina aquecida. Sim, há uma piscina aquecida. Mas já lá iremos, talvez amanhã de manhã. É que estamos nos Açores, são 23h30 e ainda zero bolos lêvedos no papo.
Jantar servido em casa
Não estranhem se ao chegar ao La Maison, tenham a cozinha ocupada. Nós, pelo menos, não estranhámos, até porque o cheiro a caldeirada deu-nos logo confiança em quem nos está a orientar este jantar já bastante tardio.
Manel Dias e André Fragoeiro formam a dupla que domina os tachos do restaurante do hotel White mas, quando o La Maison tem hóspedes, também podem ser chamados a preparar as refeições. O cliente apresenta algumas sugestões do que pretende comer e o chef cria o menu de três pratos com os produtos da época ou, para quem como eles trabalha diretamente com o que vem do mar e da terra, com os produtos do dia.
"Aqui têm um ceviche de veja, uma salada russa de lagosta e ali na panela está acabar de apurar a caldeirada de mero. No fim, ali na outra mesa está um cheesecake de forno com queijo creme da ilha, figos e granola caseira".
Manel diz isto com um tom tão calmo e em gestos tão subtis que nem damos conta dos seus quase dois metros. André e as suas mil e uma tatuagens e o chapéu a dizer "Deus ex machina" também passam despercebidos. Mas quando metemos a primeira garfada à boca, deixamos os sabores misturarem-se, pousamos os talheres e sai-nos um: "Quem são estes dois?". Ninguém à mesa sabe responder e ainda bem. Acho que acabámos de descobrir uma das pérolas mais bem guardadas dos Açores.
De horários de 16 horas para o paraíso
Não vale a pena ir pesquisar "chef Manel Dias" no Google. Nós fizemos isso e os resultados são poucos e todos relativos a uma "cozinha vanguardista" que começou a fazer nas Caldas da Rainha, de onde é natural.
Mas a verdade é que a pessoa por detrás da caldeirada é, na verdade, programador de formação. "Nunca fiz escola de cozinha e, durante muitos anos, cozinhava o suficiente para não ter que comer massa com atum e salsichas todos os dias", conta à MAGG.
Quando percebeu que os computadores não eram para si, decidiu viajar para Itália, para fotografar e comer, duas das suas grandes paixões e que se complementam no seu feed do Instagram.
Quando voltou a Portugal, já bem longe dos softwares, trabalhou com uns amigos que geriam a cafetaria do Convento de Cristo, em Tomar. "Fui lá só fazer uns bolos e cinco meses depois estava à frente da cozinha", conta. Voltou a Itália para mais estágios, mais fotografias e mais pratos de massa. Passou também por Barcelona e Copenhaga, onde esteve três semanas no Noma, considerado três anos consecutivos como melhor restaurante do mundo. "Se tivesse ido como cozinheiro tinha passado essas semanas a separar ervas, como fui como fotógrafo e curioso, deixaram-me andar por todo o lado. Foi brutal".
Pelo meio ainda ajudou a abrir o restaurante Maratona, nas Caldas da Rainha, conheceu André na cozinha do Surfer Lodge, no Baleal, e acabou por abrir o seu próprio negócio também nas Caldas, o Raízes, o tal onde se faz uma "cozinha vanguardista".
Neste vai e volta, havia sempre tempo para umas férias de verão nos Açores e a vontade de ficar mais do que umas semanas crescia a cada ano. "Quando o hotel Santa Barbara abriu, enviei curriculum mas nem tive resposta. Fiz o mesmo quando abriu o White e, desta vez, tive sorte". Esteve três dias a cozinhar para João e Catarina Reis, que já não o deixaram voltar ao continente.
No White, cozinha apenas para os hóspedes, com o tempo que nunca teve em mais nenhum outro restaurante e com uma matéria prima do mais puro que existe. "Ainda ontem estávamos aqui e apareceram uns miúdos com um polvo acabado de sair do mar", acrescenta André, que se juntou à equipa sem nunca sequer ter ido aos Açores.
Trabalhava com Ljubomir Stanisic no Bistro, estavam prestes a abrir o novo 100 Maneiras e ainda participava nas gravações do "Pesadelo na Cozinha".
"Chegava a trabalhar 16 horas por dia. É um ritmo que nos dá estaleca mas que não é possível manter eternamente", garante.
Agora, na cozinha do White, há tempo para tudo, principalmente para imaginar novos pratos com produtos, alguns deles, que está a ver pela primeira vez.
"Quando cheguei e provei a manteiga da ilha das Flores, nunca mais consegui comer outra coisa", conta. Manel lembra que, durante as primeiras semanas já em dupla nos Açores, o pequeno-almoço era, religiosamente, bolo lêvedo, manteiga das Flores e pé de torresmo.
Talvez por isso estes três itens façam parte do pequeno-almoço que todos os dias preparam para os hóspedes do White e que nós, no La Maison, também tivemos direito a provar, num banquete que fica completo com o sumo é de goiaba, a massa sovada, o queijo do Faial, o iogurte de produção açoriana e a compota de ananás.
Um espaço de criatividade
O facto de todos os dias saberem para quantas pessoas têm que cozinhar, dá-lhes tempo para focar toda a atenção em cada prato. E essa atenção dá-se ainda longe da cozinha, quando desbravam a ilha de moto4 à procura dos melhores temperos naturais que encontram pelos campos. "Encontrei uma coisa a que chamo de 'cebalho', porque para mim é a mistura perfeita entre a cebola e alho", brinca André. Com isso já fez de tudo, desde pickles a puré.
"É como o leite", interrompe Manel, "quando fui a uma quinta de produção de cabras, trouxe leite e com ele fiz queijo, fiz manteiga, fiz gelado", enumera, com o fascínio de quem tem finalmente liberdade para trabalhar o produto como nunca imaginou poder fazer.
Explica-nos que a famosa carne dos Açores é, na verdade, um pouco seca. "As vacas passam o dia a subir e a descer o monte e, por isso, quase não têm gordura". Conseguiu convencer um produtor a guardar uma vaca, alimentá-la segundo as suas indicações e outro dia receberam o animal de 400 quilos, inteiro, pronto a ser matéria prima da sua cozinha. "Eu fiz caldos, fiz sopa, assei, grelhei, fiz tudo", lembra. Guardou alguma para o processo de maturação, outra das aventuras que estão a desbravar no restaurante, não só de carne de vaca mas também de porco, algo menos comum.
Trazem o mel do mesmo produtor onde vão buscar o leite de cabra para os queijos que fazem também na cozinha, fazem moreia fumada com o peixe que pescam no próprio dia e até aguardentes com fruta local servem no final da refeição. Manel aponta para o bar. "Queremos tirar aquelas garrafas de vodkas e uísques dali e substituir por coisas feitas por nós".
Para já — e até porque tanta criatividade não pode ter muitas barreiras — só os hóspedes do White e do La Maison podem provar os pratos que todos os dias saem da cabeça e das mãos destes dois. E ainda a descobrir sabores e produtos novos todos os dias, começam a ter noção da "aura de exclusividade", como lhe chama Manel, criada à volta do restaurante. "Toda a gente quer vir cá comer e são poucos os que podem. É brutal".