Em tempos de pandemia e confinamento, a experiência de comer num restaurante foi trocada pelo conforto de uma refeição no sofá de casa. Assim foi com a "A Última Ceia" — ementa preparada no âmbito da nona edição do programa que assinala a Semana Santa no canal História — que o chef Bertílio Gomes nos deu a provar. Os desafios de apresentar um menu cuidado em forma de caixas é grande, ainda para mais quando deste lado há quem seja distraído e se tenha esquecido de colocar o sorvete no congelador mal foi recebido em casa. Spoiler alert: quando nos apercebemos foi diretamente para o frio e na hora de provar estava no ponto.

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Tudo isto é uma novidade para nós e a alternativa possível para o chef Bertílio Gomes nesta iniciativa, bem como no dia a dia do seu restaurante: a Taberna Albricoque, que leva para Santa Apolónia sabores do Mediterrâneo e especialidades algarvias, dado que as raízes do chef estão em Albufeira.

"Todo este processo é um bocadinho um retrocesso, mas não há nada a fazer. Obviamente, preferíamos que a comida fosse servida num prato de porcelana ou cerâmica do que numa caixa de cartão. Mas não há nada a fazer e também não me choca nada. É o que é", refere o chef à MAGG numa conversa sobre o menu que preparou para o programa "A Última Ceia" e ainda sobre o estado atual e o futuro da restauração em Portugal.

A ementa que retrata a ceia que Jesus Cristo partilhou com os apóstolos antes de ser crucificado tem sido modernizada ao longo dos últimos nove anos pelas mãos de prestigiosos chefs portugueses como Nuno Bergonse, Rui Paula, Diogo Noronha, Vítor Sobral e Henrique Sá Pessoa. Este ano foi recriada pelo chef Bertílio Gomes, que assina uma carta pautada por três palavras: simplicidade, autenticidade e sustentabilidade.

"Este menu tem a particularidade de ser praticamente de base vegetal, porque era assim também que naquela altura as pessoas se alimentavam. Com pouca proteína animal e muito mais leguminosas, cereais, legumes silvestres. Acho que é um ensinamento para os dias de hoje também. Não andar para trás, mas andar para a frente aprendendo com a história, com esses momentos e formas de alimentação", explicou o chef Bertílio durante a apresentação do menu, que não deixou de contar com uma morcela, embora vegetal.

Os seis pratos preparados pelo chef simbolizam então alguns passos neste caminho evolutivo de uma alimentação que deve ser cada vez mais vegetal. As escolhas do chef Bertílio Gomes também lhe podem chegar a casa, uma vez que os pratos d'"A Última Ceia" vão estar disponíveis para entrega ao domicílio. Antes disso, fomos perceber como é que o chef chegou a este menu e qual o significado deste desafio.

"Acho que uma grande parte do público vai querer voltar a sentar-se numa mesa"

Tal como todos os restaurantes, também o do chef Bertílio Gomes teve de se reinventar com a pandemia. Primeiro, implementaram o take away e, no segundo confinamento, que obrigou a Taberna Albricoque a fechar novamente as portas do espaço, várias outras se abriram em casa dos lisboetas.

As entregas ao domicílio marcam então mais uma fase de reinvenção do restaurante em tempo de pandemia, que por momentos foi esquecida com a iniciativa do canal de cabo. O chef contou-nos tudo sobre estes períodos de baixos, com as mesas vazias no restaurante, e altos, como a oportunidade de levar até sua casa os sabores que vai poder ver no ecrã do programa "A Última Ceia".

Como é que foi receber este desafio do canal História?
Foi bom. Nos tempos que correm, tudo o que sejam temas que não têm que ver com a COVID-19 são uma lufada de ar fresco. Conseguirmos pensar noutras coisas que não em problemas.

Levou quanto tempo a preparar o menu?
A idealizar foi cerca de uma semana. Tive de fazer alguma pesquisa também, para perceber o que era ou não credível. É sempre um exercício. E não há muita cosia que retrate este episódio. Há mais ao nível da parte religiosa do que propriamente dos detalhes do que se comeu ou não se comeu. Mas parte-se do princípio que terá sido uma alimentação com base no que era a alimentação das pessoas naquela época.

Tinha uma forte ligação à religião ou o desafio foi como um processo de aprendizagem?
Eu sou católico, sempre fui praticante, porque pertenci a grupos de escoteiros católicos, então tinha também essa responsabilidade de cumprir com os meus deveres com a igreja e sempre fui acompanhando de perto as práticas religiosas. Depois quando comecei na vida profissional, deixei de acompanhar e deixei de ter essa disponibilidade.

Alguns dos chefs das edições anteriores foram para si uma inspiração ou inspirou-se apenas na própria história?
Sim, todos são ótimos profissionais e são referências. Cada um seguiu as coisas com base na sua experiência pessoal, religiosa e profissional e há coisas que até são comuns. Porque realmente há aspetos marcantes em termos daquilo que são as referências dos alimentos que se usavam ou usam naquela região do globo, então era inevitável que toda a gente fosse bater no vinho e no pão.

Agora, o que tentei foi ir um bocadinho ao encontro do que eram os costumes daquele povo naquela altura no que diz respeito a hábitos alimentares. E encontrei várias referências que fazem todo o sentido. Mesmo as ervas amargas já são referenciadas nos textos bíblicos que relatam a fuga do povo hebraico do Egipto. E o pão ázimo vem daí. Conta-se que não tiveram tempo de deixar o pão levedar e tiveram de o fazer sem fermentar e as ervas amargas eram já um recurso.

E há bem pouco tempo era assim. Não se forçava a criação de qualquer alimento para consumo, como se faz hoje em dia para ter morangos em dezembro, por exemplo. As coisas não são assim, nós é que insistimos em forçar a natureza a dar coisas fora do tempo delas. Voltando à inspiração, foi baseada na própria história e em factos daquilo que eram os hábitos alimentares das pessoas naquela época.

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Algo muito seu e da Taberna Albrincoque que trouxe para este menu são as especialidades algarvias. Isso era algo inevitável nesta criação?
Sim. Até porque esta particularidade de Israel e daquele território, o Médio Oriente e os países que são banhados pelo Mar Mediterrâneo onde se passaram estes acontecimentos, têm muita coisa em comum. Porque os povos circulavam por aqui e nós tivemos essa influência muito marcada no Algarve e encontram-se semelhanças, mesmo de confeções. Esta salada de cenoura com cominhos (da morcela vegetal) é uma coisa que se faz muito em Marrocos, na Argélia e por aí fora.

Por isso, a cultura gastronómica é uma coisa que é feita com base na história e foram centenas de anos de influências deles cá e de nós lá. As árvores de frutos, como figueiras e amendoeiras, foram trazidas também nesta circulação dos povos e obviamente que os hábitos alimentares acabam por ser semelhantes. Depois, a particularidade da forma como se come: a partilha, os petiscos, acho que isso é muito também do sul e hoje em dia faz sentido também puxar por isso com esta falta de convívio que todos temos.

Quando apresenta, por exemplo, uma morcela vegetal aos clientes da Taberna Albrincoque, qual é a reação?
É um prato que está desde o início da abertura do restaurante e a resposta é muito positiva. As pessoas ficam surpreendidas, porque pensam que estão a comer morcela. Quando eu digo que não tem nada de morcela, que é só azeitonas e cenoura, ficam surpreendidas. E isto acontece regularmente. Realmente é uma coisa com muito sabor e que normalmente as pessoas não associam aos vegetais.

O menu teve uma forte base vegetal e foco na sustentabilidade, até pelos produtos de época. É esta a nova tendência da gastronomia?
Acho que sim, acho que é inevitável. O caminho é esse, talvez mais lento do que era desejável, mas acho que o futuro passa por aí. Não é sustentável continuar a forçar a natureza a ter animais com esta escala que temos hoje em dia, porque é impossível produzir tantos animais de forma natural para alimentar a humanidade.

Como é que a pandemia afetou o seu restaurante?
Afetou muitíssimo. Estamos com uma quebra de faturação na ordem dos 50% ou mais com estes meses de confinamento. Num período do ano tivemos oportunidade de trabalhar durante seis meses, durante os outros seis meses praticamente estivemos fechados. É muito difícil. Tivemos aqui de nos adaptar um bocadinho aos take aways e aos deliverys, mas é uma coisa mais para alimentar o nome da Taberna e o nosso nome, para continuarmos a dizer que estamos cá, estamos vivos, do que para outra coisa. O facto de abrir só para take away e para delivery não é sustentável.

Do primeiro para o segundo confinamento houve algum reforço a nível de reinvenção?
Sim. Nós só começámos a fazer delivery neste segundo confinamento. No primeiro não tivemos essa capacidade de reação, porque não estávamos preparados para isso. Não era o nosso conceito, não tínhamos essa estrutura. Agora neste segundo já estávamos um bocadinho mais preparados e decidimos fazer delivery e take away.

Ainda assim, é um desafio fazer com que a comida chegue em condições.
É, porque depois nem todos os pratos se adaptam. As pessoas comerem a comida passado uma ou duas horas é diferente do que ser acabada de confecionar e ir para a mesa. Perde-se sempre qualquer coisa. Aliás, uma grande parte dos pratos perdem, mas há pratos que ganham. Se for uma feijoada ou um cozido são pratos que se adaptam perfeitamente e até melhoram e apuram mais passado algum tempo. Mas o que temos feito é escolher os pratos que se adaptam melhor a este formato para que corra tudo bem.

Acha que os serviços de take away e delivery vieram para ficar?
Sim. Eventualmente vai ficar. O take away sempre existiu, hoje em dia tem mais expressão. Acho que quando as coisas passarem vai haver uma quebra outra vez do take away. Agora, é normal que fidelize algum público que realmente acha vantajoso receber a comida em casa e que se habituou a este conceito e que vai continuar, isso sem dúvida. Mas acho que uma grande parte do público vai querer voltar a sentar-se numa mesa e comer num prato de porcelana ou cerâmica e ter outra apreciação dos produtos e não só. Do atendimento, da sociabilização, onde as pessoas conhecem outras pessoas.

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De que é que sente mais falta de ter as portas abertas?
É o conjunto. É ter uma equipa mais estável, com as portas abertas é possível ter uma equipa mais estável. É tudo. Ter portas abertas é o ponto chave, é fundamental para ter o ecossistema a funcionar. Hoje em dia está debilitado, não funciona, porque sem clientes não há empregados, sem empregados não há clientes, as coisas dependem todas umas das outras e para isso é preciso ter a porta aberta.

Acredito que também tenha saudades da azáfama.
Claro, isso é a nossa vida. Foi a profissão e a área que escolhemos. E, obviamente, ao fim de um ano de perder muito dinheiro — porque estamos a delapidar poupanças, património pessoal, para conseguir sustentar os espaços e as equipas até uma reabertura —, só faz isto quem realmente gosta disto e está nisto por paixão. Quem está nisto só numa perspetiva de negócio, desde o momento em que se fechou no primeiro confinamento, fecha-se definitivamente e não se volta, ou volta-se quando houver outra vez condições de normalidade para fazer negócio. Agora, quem vê isto numa perspetiva de vida e não só mercantilista... não é sustentável por muito mais tempo. Ou as coisas realmente voltam à normalidade ou não é possível aguentar as equipas, os espaços, os compromissos que se têm.

Nesse sentido, como é que projeta o futuro da Taberna Albrincoque e da restauração em geral em Portugal?
Depende tudo do problema sanitário. Se se resolver durante este ano, as coisas obviamente vão retomar e a vida vai voltar à normalidade, obviamente com muitas sequelas e nos próximos anos vamos andar a pagar isto tudo, mas sabemos que há de melhorar. Agora, se o problema sanitário não estabilizar e houver uma nova vaga que obrigue a encerrar novamente, não vejo um cenário nada positivo. Não é possível aguentar muito tempo com estas limitações. Isto do canal História veio trazer também um balãozinho de oxigénio e estamos esperançosos que nos possa dar algum conforto. Não só na parte de podermos fazer coisas, de dar ânimo, como também em termos de sustentabilidade financeira.

Na Última Ceia não faltou pão, nem vinho — agora em forma de sorvete

Para "A Última Ceia" do canal História, o chef da Taberna Albricoque escolheu ingredientes que retratam a base alimentar naquela altura, como as leguminosas, os cereais, as proteínas vegetais, refletidas num menu com seis petiscos — número inspirado na Estrela de Davi, símbolo do povo hebraico. Já para simbolizar a igreja Católica, o chef escolheu um prato de peixe, dos poucos que inclui um alimento de origem animal.

Todos os pratos foram pensados para comer à mão, começando pelo pão ázimo, não fermentado, que acompanha toda a refeição, que começa com uma morcela vegetal — com cenoura roxa tradicional no Algarve e que "quase desapareceu", refere o chef —, passa pelo tártaro de carapau com figos secos e amêndoas, "dois ingredientes muito referenciados na Bíblia", e inclui ainda um tártaro de beterraba com grão e ervas amargas. Já nos pratos quentes, o chef preparou favas e trigo em pétalas de cebola assada e numa cataplana juntou lentilhas com queijo de cabra, tomate confitado e kale (o outro prato com um ingrediente animal).

Tudo isto só podia terminar com mais um dos elementos que sabemos que fizeram parte da Última Ceia: o vinho, transformado pelo chef num sorvete de vinho tinto com especiarias e frutos vermelhos, para acompanhar uma rabanada de folar da Páscoa.

O menu dedicado à semana Semana Santa vai ser apresentado no canal História a 26 de março às 22h10 (com repetições até à Páscoa, 4 de abril), mas também vai poder prová-lo. A sugestão d'"A Última Ceia" do chef Bertílio Gomes vai estar disponível na Taberna Albricoque, localizada mesmo ao lado da Estação de Santa Apolónia, em modo take away de 26 de março a 4 de abril.

A última de muitas ceias que pode degustar no futuro quando a Taberna Albricoque voltar a abrir portas com as medidas de desconfinamento custa 40€ para duas pessoas (vinho de Talha Sátiro Clandestino por mais 15€). Os pedidos devem ser feitos por telefone ou e-mail no dia anterior (entre as 12h e as 20h) àquele em que pretende receber a refeição.

Morada: Rua caminhos de ferro, nº98 1100-108 Lisboa
Contactos: 962 922 338/218 861 182/reservas@albricoque.pt
Horário de take away: das 12h às 20h