No dia em que a MAGG foi conhecer a nova carta do Pesca, Diogo Noronha relatava-nos a situação em que ficou sem morangos, por culpa de um erro no seu cultivo. Quando a produção não é em massa e tão automatizada, este é um dos perigos que se correm. Mas não é isto que lhe troca as voltas. Há muitos anos que o chef defende os princípios que incute no restaurante de cozinha de autor que abriu portas há quase um ano: a sustentabilidade ambiental, mas também a responsabilidade social, dois universos que não se podem desassociar, porque que se tocam, porque dependem e porque interferem diretamente um no outro.
O mindset da equipa é um e reflete-se em vários aspetos do Pesca. E foi isso que fomos perceber. Como é que o caminho da sustentabilidade ambiental, económica e social se materializa num restaurante que promete fazer o que está ao seu alcance para seguir estes princípios?
Apoiar o comércio local
Há copos da ceramista Cátia Pessoa. Há azulejos da Viúva Lamego. Há a cerveja artesanal Dois Corvos, criada de propósito para o restaurante, em parceria com Susana Cascais. E há o café Flor da Selva, de uma torrefacção no bairro da Madragoa, agora nas mãos do neto do fundador, que utiliza o mesmo método de há 50 anos. Foi desta colaboração que nasceu o lote colonial que aqui é servido, que é entregue todas as semanas e que dispensa açúcar ou caramelo para torrar o grão, que se apresenta na sua forma mais pura. Foi também deste esforço em trabalhar com quem está perto que se criou uma cerveja própria e única, que tem em conta aquilo que se serve e come neste restaurante de cozinha de autor, virado para o mar e para o peixe.
"A sustentabilidade é um sistema complexo: há a parte económica, social e ambiental”, diz Fernão Gonçalves. “Pode ser mais tentador trabalhar com as grandes [marcas] porque são mais baratos — espremem as margens [de lucro] a um ritmo que uma pequena não consegue porque não tem pulmão para isso —, mas a nível de conceito e de produto não é. Quando queremos criar um negócio diferenciador temos de ir à procura de coisas diferentes na vizinhança. Fizemos isto em vários patamares.”
Estou preocupado com as estações. Este ano não houve primavera. Os fornecedores e as pessoas agarradas à terra estiveram muito aflitas."
Colaborar com produtores nacionais significa várias coisas, entre elas, entrar num sistema de comércio justo, em que se valoriza a história e a tradição. A sustentabilidade também é isto. Na verdade, este pode muito bem ser o início do caminho. Porque quanto mais perto estiver o produto, menos meios se desperdiçam e mais sinergias se criam.
“Ao valorizarmos estes pequenos pormenores, contribuímos para o mundo ser um sítio melhor. O grande problema da sustentabilidade é o grande capitalismo, é o grande consumo, em que se espreme até não haver mais. As grandes marcas fazem isto. Esse é o grande cerne da questão”, diz Fernão Gonçalves, chef de bar.
Na cozinha, o mesmo acontece. Uma das regras do chef é que o produtor seja local e de confiança. Há critérios: têm de ter anos de trabalho e têm de entender a cabeça de quem comanda a cozinha e cria as cartas. Têm de respeitar a sazonalidade, um dos fatores mais importantes. “A forma como o produto é cultivado também é importantíssimo”, explica Diogo Noronha. “Não sou muito rigoroso com a certificação biológica porque a linha entre ser e não ser bio é muito ténue. Mas visito, faço perguntas, sinto o sabor.”
Mas para a relação funcionar, tem de haver consistência e quantidade porque dificilmente uma carta sobrevive ao défice destes fatores. Os ingredientes além de serem produzidos de forma sustentável, têm de ser suficientes e têm de ser entregues a tempo. “Preciso de vários quilos de várias coisas durante a semana”, diz. Um dos grandes desafios de trabalhar com fornecedores locais é a distribuição, porque nem sempre a arquitetura da rede está suficientemente consolidada para que os produtos cheguem a tempo e horas.
“Eu adorava trabalhar só com produtos locais e biológicos, adorava que houvesse quantidades suficientes de tudo, mas eu não vou ser ingénuo e achar que em Portugal há cobertura e produção suficiente para isso”, explica Diogo Noronha.
“Nós vamos agarrando aquilo que podemos", explica. E vão acompanhando de perto os produtos na construção deste caminho: "Quando queremos dar passos sérios e sólidos, precisamos de tempo e precisamos de apoiar, de trocar ideias, de pensar em conjunto.”
Utilizar aquilo que o planeta oferece
Um dos grandes desequilíbrios do mundo é este: usar em excesso aquilo que não existe em abundância. Usar fora de época aquilo que existe numa determinada época. Para o planeta funcionar, é preciso respeitar os ecossistemas e os seus ritmos. É preciso entender a cadeia alimentar e não ir muito além daquilo que se está a oferecer.
"Não há tamarindo [uma das suas frutas preferidas], espera-se até que haja”, diz Fernão Gonçalves. “Isto faz com que sejamos muito mais criativos. Esse é um dos maiores e melhores desafios de trabalhar com a sazonalidade.”
A sazonalidade será uma das palavras chave desta casa e é um dos aspetos a que o chef está mais atento. “A escolha de peixes e espécies é sempre o mais sazonal possível e tentamos sempre optar pelos que têm estações mais compridas”, explica. ”Também trabalhamos com peixe de abundância — como a garoupa da pedra dos Açores, que está na carta de verão.”
Antes de espremer limões, retiro-lhes sempre primeiro as cascas. Consigo aproveitar as cascas numas coisas e o sumo noutras.”
Mas é também aquilo que mais o preocupa, porque o clima está diferente, porque não há meias estações e tudo isto mexe com a produção. "Nós temos de nos adaptar à estação e à sazonalidade o que muitas vezes dificulta a tarefa conceptual e criativa", explica. "Estou preocupado com as estações. Este ano não houve primavera. Os fornecedores e as pessoas agarradas à terra estiveram muito aflitas. Recebi os primeiros tomates há uma semana. Às vezes tenho de retirar um produto que estava planeado. Na abertura do restaurante, por exemplo, queria coisas particulares que me tinham garantido e, de repente, umas semanas antes, houve uma amplitude térmica, uma geada durante a noite, que levou tudo. Às vezes vai tudo ao ar."
É importante habituar as pessoas a comerem outro tipo de peixe. As sardinhas entram na nova carta, mas quando houver pouca, terá de se pensar numa alternativa, porque “quando não há, não há” e esse é um dos aspetos que se trabalham com os fornecedores.
Na composição dos cocktails ou amuse bouches, como explicou Fernão Gonçalves, utilizam espécies de plantas invasoras ou plantas halófitas (são terrestres, mas adaptam-se ao mar e toleram o sal), que vão conhecendo e recolhendo em sessões de foreging, expressão que designa esta mesma ação de sair para explorar e conhecer.
Aproveitar ao máximo os alimentos e diminuir a pegada ecológica
"Já que o animal foi sacrificado, vamos utiizá-lo e aproveitá-lo o máximo possível”, explica Diogo Noronha. Há bases de cozinha que já os levam por esse caminho: “Eu faço caldos de tudo. No caso dos salmonetes, fazemos o molho dos fígados e usamos todas as espinhas, carcaças e cabeças. Usamos as aparas do bacalhau para fazer os amuse bouche.”
Uma das regras é “aproveitar a comida e evitar o desperdício”, como diz Fernão Gonçalves. À semelhança da cozinha, o mesmo acontece no bar, seja no daiquiri de abacaxi e amendoim ou no julep de banana e caju, dois cocktails em que cada parte dos frutos que utilizam têm uma função, seja decorativa ou para a criação do sabor.
Tentamos ao máximo que haja mínimo desperdício, o que é uma aprendizagem constante e que exige mais técnica, desafio e nos faz sair da zona de conforto.”
“No Dry Martini de Citrinos usamos as cascas dos citrinos durante o dia na cozinha e no bar para fazer os cocktails”, explica. “Antes de espremer limões, retiro-lhes sempre primeiro as cascas. Consigo aproveitar as cascas numas coisas e o sumo noutras.”
“Temos já processos completamente assumidos de utilização constante daquilo que estamos a fazer. Tentamos ao máximo que haja o mínimo desperdício, o que é uma aprendizagem constante e que exige mais técnica, desafio e nos faz sair da zona de conforto.”
Fazem-se esforços para que a quantidade de viagens, de plásticos, de gasolina e de pneus necessários para fazer chegar um produto ao seu destino final seja a menor possível, seja pela opção de ter uma cerveja e café próprios, ou utilizar alguns copos desenhados à unidade por artesãos locais. O mesmo se aplica aos produtos da cozinha, que fazem uma viagem menos extensa para chegar ao restaurante do Príncipe Real, dispensando comboios, barcos ou aviões.
“Mandar vir dos Estados Unidos ou do castelo de São Jorge é diferente para a diminuição da pegada biológica”, explica Fernão Gonçalves, numa alusão ao impacto negativo e consumo excessivo de recursos associado ao transporte de mercadorias que vêm de longe.
Soma-se a isto a decisão de não haver carne. Na carta anterior ainda se utilizava o caldo de frango, mas este desapareceu por completo. “Andava a pensar em retirar para usar só caldos vegetais e de peixe. E um dia uma cozinheira disse: ‘Porque é que não tiramos o de frango?’ E pronto, assim foi. Estava à espera que alguém dissesse isso”, relata Diogo Noronha.
Não há palhinhas de plástico. Há de bambu e de vidro
O plástico existe no restaurante, mas é utilizado de forma consciente, apenas onde é preciso e sai sempre direto para a reciclagem. Mas esforços são feitos para que haja uma diminuição na sua utilização, tal como provam as palhinhas de bambu e de vidro que nos chegaram à mesa com os cocktails. “E as das crianças trocámos por palhinhas de gelatina”, explica Fernão Gonçalves. O chef de bar alinha no desafio e, sempre que faz a prova de uma bebida, utiliza uma palhinha de metal, que vai lavando conforme precisa.
Reaproveitar das paredes ao chão
Mas há mais pormenores do espaço que materializam os princípios que o regem. Na casa de banho não há papel para secar as mãos, mas antes toalhas. O chão é de mosaico hidráulico e há madeiras reutilizadas, aproveitadas da demolição de um prédio pombalino. Os guardanapos do bar são reciclados e há separações para todos os lixos.
"Este foi o caminho a que nos propusemos e ao qual eu já me propus há alguns anos”, diz Diogo Noronha. “Como todos os caminhos, tem os seus desafios.”
Evoluir em passos pequenos
"A refeição do staff ou da família é muito importante", diz o chef. São 14 bocas que precisam de alimento consistente e nutricionalmente equilibrado, porque o dia exige força e concentração.
"Estou a tentar a convencer a equipa a fazer um almoço vegetariano por semana", conta. "Talvez depois passar para dois."
Além disso, há os refrigerantes. Já são poucos os que o restaurante disponibiliza mas o ideal é que desapareçam. "A médio longo prazo quero abolir os refrigerantes. Não podemos ser muito radicais, mas são coisas para onde se pode evoluir, passo a passo, com calma."