Não existiam dúvidas de que o espetáculo sobre a vida de Jean-Paul Gaultier iria ser, realmente, um espetáculo. Ao olhar para a carreira do estilista francês, a diversidade e extravagância já seriam esperadas. No entanto, do que não estávamos à espera era de ver um espetáculo onde as danças eróticas e as mulheres seminuas roubassem (quase) todas as atenções.
A verdade é que “Fashion Freak Show” é um espetáculo não só sobre a vida do estilista, como também da sua relação com a moda. Numa primeira parte é contado o percurso de Jean-Paul Gaultier, com muita música, luzes e dança. O seu urso Nana aparece como o primeiro narrador da história, que nos diz que somos bem-vindos “à mente de Jean-Paul Gaultier”. Aqui, entramos em todas as partes do corpo do estilista: cabeça, mente, mãos, barriga, tudo o que existe para explorar — e exploraram mesmo TODAS as suas partes.
Que Jean-Paul Gaultier sempre foi um homem da moda, é conhecido. Desde os 9 anos que preferia ficar com a avó a descobrir mais sobre o mundo feminino, e passava o tempo na escola a desenhar. Foi o filme “Falbalas”, de 1945, que conta uma história de amor passada numa casa de alta-costura, que o fez apaixonar por este mundo.
Este início da sua vida contada num palco com painéis tecnológicos que se moviam de um lado para o outro como se fossem pop-ups do computador, pode descrever-se como um vómito de unicórnio arco-íris cheio de amor, cores e vontade de ser feliz. As roupas, onde algumas são originais do tempo em que Jean-Paul Gaultier as desenhou e outras criadas de propósito para o desfiles, são maioritariamente corpetes, a primeira grande inspiração do estilista.
Ao som de Madonna, Blondie, CHIC e muitos outros, a dança é, sem dúvida, a grande protagonista do espetáculo. Os momentos de diálogo são raros (só existem mesmo três), e quando existem trazem ou o primeiro urso transgénero ou a famosa polícia da moda: Anna Wintour.
A diretora da edição norte-americana da "Vogue", que é interpretada pela artista Anouk Viale, faz o público chorar de rir de mil e uma maneiras — e chega mesmo a ligar ao segundo famoso polícia da moda, Karl Lagerfeld, interpretado pelo comediante Kody Kim, para falar mal de Jean-Paul. A coesão e veracidade entre aquilo que foi a vida do estilista francês e o espetáculo criado por ele andam juntas de mão dada, e ninguém se perde naquilo que está a ver.
Dividido por cenas, o que facilita a navegação pela história de Jean-Paul Gaultier, encontramos presente a confusão do seu primeiro desfile, em 1976, e a chegada a Londres graças ao investimento de um grupo japonês. A playlist continua a tocar (aliás, nunca parou) com Frankie Goes to Hollywood e CHIC nas colunas, com dançarinos e artistas de circo a fazerem as suas piruetas e mortais de um lado para o outro. No entanto, de um momento para o outro, a sala fica escura, os painéis tornam-se pretos e não há música: começou o espetáculo erótico.
Uma coisa que, pelo menos aqui deste lado, nunca tínhamos experienciado. Eram mulheres em topless, simulação de posições sexuais e músicas provocadoras que deixavam o ambiente tenso. Uma cena claramente para maiores de 18 anos.
É claramente visível o à vontade de Jean-Paul Gaultier com a sexualidade e com o erotismo, portanto não é um show aconselhável a quem fique constrangido facilmente.
E não, não acaba por aí. Há mesmo toda uma parte dedicada a uma mulher a despir-se lentamente no palco completamente sozinha, como forma de demonstração de beleza. Tira desde as luvas à camisa, não tendo nada por baixo, vangloriando-se a si e ao seu corpo enquanto Demi Mondaine canta ao vivo.
No entanto, o espetáculo não é só feito de nudez e de posições sexuais. O apelo à beleza diferente de cada um começado por Jean-Paul logo nos primórdios da sua carreira é transcrito para o espetáculo, tanto na peça como nos próprios bailarinos. A diversidade encheu o palco do “Fashion Freak Show” desde o primeiro ao último minuto, com artistas altos, baixos, magros, com curvas, novos ou mais velhos, sempre com o objetivo de fazer o espectador perceber que cada um tem a sua própria beleza.
Aliás, essa diversidade é vista em, literalmente, toda a produção do espetáculo. Não é por acaso que Jean-Paul Gaultier ficou conhecido como “l'enfant terrible” (a criança terrível), pois em vez de entrar na moda com criações ditas tradicionais, mudou o rumo do jogo e apresentou homens de saia e mulher com roupa mais masculina.
O seu sentido de diferença e de espelhar nas suas roupas o mundo real sempre esteve bem presente, e o espetáculo soube transportar isso para palco da melhor maneira — não tivesse sido ele próprio o criador do projeto. É bem possível que, se tivesse sido feito um filme ou se se tivesse escrito um livro por alguém que não fosse Jean-Paul, a história não iria ser tão autêntica como no espetáculo. Aliás, certamente, com a extravagância toda do estilista francês, nem sequer poderia ter sido feito de outra forma.
Claro que, para além das partes mais bonitas da vida de Jean-Paul, como a sua entrada no mundo da moda e os seus primeiros desfiles, nem tudo é um mar de rosas. É também encenado o momento em que o estilista perdeu Francis Menuge, o seu namorado, que morreu vítima de SIDA.
Logo no início existe uma cena que relata como é que os dois se conheceram, com os dois bailarinos a dançarem juntos dentro de uma camisola branca com riscas azuis (outro símbolo icónico da moda de Gaultier) com duas mangas. Francis vai aparecendo ao longo do espetáculo perto do estilista francês, encorajando-o nos desfiles e beijando-o em várias danças.
Ainda assim, toda uma cena é dedicada a Francis e à sua morte. Um palco totalmente preto, só com o bailarino a dançar, sendo levantado no final da dança por duas fitas vermelhas, como se estivesse a ir para o céu. É uma cena que, depois de tanto espetáculo, riso e dança, acaba por fazer descer o espectador à terra. O que entristeceu ainda mais? Ver Jean-Paul Gaultier a viver o momento, lá sentado, como de certeza que já viveu nas outras tantas vezes em que o espetáculo foi apresentado.
“Fashion Freak Show” é um must na lista de espetáculos a ver daqueles que têm uma paixão pela moda como Jean-Paul Gaultier, apesar de reformado de fazer criações, ainda tem.
E, claro, não faltaram famosos no recinto. Todos vestidos a rigor para marcar presença no primeiro dia de uma semana cheia de espetáculos, quem lá esteve presente não se deixou intimidar, mesmo sabendo que o próprio Jean-Paul Gaultier estaria presente.
“Fashion Freak Show” vai estar em Lisboa, no Sagres Campo Pequeno, até 12 de novembro. No Porto, no Super Bock Arena - Pavilhão Rosa Mota, estará entre os dias 16 e 18 de novembro. Os bilhetes podem ser comprados no site da Ticketline, com valores a partir dos 20€.