Atenção: este artigo contém spoilers sobre a segunda parte da sexta e última temporada de "The Crown".
É altura de dizermos adeus a "The Crown". Os últimos sete episódios da sexta temporada chegam esta quinta-feira, 14 de dezembro à Netflix. A MAGG já viu todos (exceto o décimo) e é seguro afirmar que a mega-produção sobre a família real britânica se redime, na recta final, do tédio que foi a primeira parte desta última temporada.
A ação dos últimos episódios centra-se no período imediatamente após a morte da princesa Diana, em 1997 e vai até 2005, ano que o príncipe Carlos e Camilla Parker-Bowles se casaram.
A chegada dos príncipes William e Harry à idade adulta, a consolidação de Tony Blair no poder, o Jubileu de Ouro de Isabel II, as mortes da rainha-mãe e da princesa Margarida, separadas por menos de dois meses, e o romance de William com Kate Middleton são os temas abordados nestes episódios finais. No último episódio, a avaliar pelo que ainda falta acontecer, a trama vai ter de enfiar o Rossio na Betesga. Sempre são três anos, entre 2002 e 2005, em que muito acontece.
Kate Middleton (Meg Bellamy) e William (Ed McVey) acabam por ser os protagonistas menos interessantes desta saga inspirada em factos reais. Há um esforço notório da trama em proteger as figuras verdadeiras, criando para a ficção uma espécie de versão esvaziada de alma das pessoas que (achamos que) conhecemos.
Carole Middleton (Eve Best), mãe da atual princesa de Gales, é, no entanto, retratada como uma aspirante a sogra real, maquiavélica e ambiciosa, que faz tudo para que a sua primogénita se cruze com o herdeiro do trono. E consegue, por vezes até a contra a vontade da filha. Uma espécie de feminismo ao contrário num discurso estranho, em que Carole diz a uma jovem Kate que esta merece melhor do que um colega de faculdade (uma faculdade, note-se, onde só estuda a elite britânica).
E é precisamente em St. Andrews, onde Kate vai parar graças ao trabalho de detetive da mãe Middleton, que se dá o diálogo mais ridículo da história de "The Crown". A tentação de introduzir o politicamente correto na ficção é grande, mas não faz qualquer sentido quando estamos a falar de ações que se passaram no passado. Ora atentem nisto.
Em conversa com a atual namorada, Lola (que deduzimos que seja o nome que a ficção arranjou para Olivia Hunt, com quem William namorou durante um breve período antes de Kate), e Kate, uma jovem interrompe para pedir um autógrafo ao príncipe. William reage de forma agressiva, manda a rapariga ir embora e é admoestado pela atual e futura namoradas. "Não entendem, isto acontece-me muito. Não sabem como é viver com tanta atenção", queixa-se o príncipe.
E eis que os guionistas têm uma paragem cerebral e decidem inserir um diálogo que até fazia sentido em 2023 mas, em 2001, quando ninguém falava de feminismo e empoderamento, é só ridículo. "Não sabemos?", diz Kate, rindo-se para Lola. "Ser miradas, olhadas e julgadas constantemente? Tenta ser uma rapariga", diz Kate. "Uma jeitosa", responde William. "Não, qualquer rapariga. Ou, pelo menos, tenta ser humano, sem reduzir as mulheres apenas ao seu aspecto", diz Lola. E vão-se embora. #woke #feminism #thefutureisfemale
A morte da princesa Margarida e o retrato simplista de Harry
A relação fria entre Carlos e os filhos, profundamente danificada pela morte repentina da princesa Diana, tem aqui os seus momentos de tensão, o acumular de mágoas, ressentimentos e silêncios que, na vida real, desembocariam no total desastre que foi a saída de Harry do cargo de membro sénior da família real britânica.
E se William é retratado como um boneco loirinho e tímido, saído da capa da "Bravo", a antipatia de "The Crown" por Harry (Luther Ford) é notória. O enfant terrible é retratado exatamente assim: rebelde, aborrecido com tudo, sempre em busca da próxima festa, do próximo copo. "Tenho ciúmes. Na História da humanidade, nunca ninguém gritou por um ruivo", diz o eterno nº2 ao irmão.
O lado espirituoso de Harry, o verdadeiro, o sentido de humor que herdou da mãe, é completamente esquecido em "The Crown". E é pena. Mas também aqui a ficção consegue, embora de forma subtil, retratar as sementes que, anos mais tarde, conduziriam à tensão crescente - e posteriormente à rutura - dos dois irmãos.
O fim de "The Crown" tem guerra, reconciliação e volta a ter grandiosidade. E a cena inicial, em que Tony Blair (Bertie Carvel) é entronizado, que tem tanto de surrealista como de fantástico, dita o tom do que aí vem. Embora com alguns soluços pelo meio. Voltamos a ter vontade, quando Tony Blair entra em cena, de ir ao Google pesquisar sobre o conflito no Kosovo, sobre a relação entre o então primeiro-ministro britânico e Isabel II (Imelda Staunton). Voltamos a testemunhar grandes diálogos, cuidadosamente tecidos. "A monarquia não é racional. Nem democrática, lógica ou justa. Ainda não aprendemos isso?", questiona Isabel II, perante a necessidade de reformar a instituição, desacreditada e em desfavor junto da opinião pública.
A última rainha de "The Crown" é endurecida e fria. Na realidade como foi em maior parte do seu reinado, até ao rejuvenescimento (e intensa operação de relações públicas) desencadeado pelo casamento de William e Kate, em 2011, que a transformou de figura austera em avozinha querida. E se Isabel II tem razões para se refugiar emocionalmente, uma vez que, nas vésperas do seu Jubileu de Ouro, perde a mãe e a irmã mais nova, a princesa Margarida (magistralmente interpretada por Lesley Manville).
Se não fosse por mais nada, valeria sempre a pena ver "The Crown" para ver o fim trágico, triste e magnífico da princesa Margarida. Estrela pop à sua época, figura incontornável da vida social do século XX, morreria vítima dos seus excessos.
No final de agosto de 2023 morreu Mohamed Al-Fayed, pai do último namorado da princesa Diana. O empresário egípcio, que também aparece nos episódios finais de "The Crown", viveria até ao último dia da sua vida assombrado pelo acidente que lhe roubou o filho, pelo ódio à família real britânica, pelas teorias da conspiração que ele próprio ajudou a congeminar e a divulgar.
O melhor
- a despedida, lenta e dolorosa, da princesa Margarida, a sua teimosia em descurar a saúde, em viver intensamente até ao último dia;
- a relação entre Tony Blair e a rainha Isabel II;
- 'aquela' cena do vestido semitransparente de Kate no desfile em St. Andrews.
O pior
- William é retratado como um jovem amorfo, sem qualquer traço de personalidade definido que não as óbvias parecenças físicas com a mãe e a obsessão quase patética com Kate Middleton;
- a interpretação caricatural, a roçar o circense, que Bertie Carvel faz de Tony Blair.