Facto curioso. "Senhora do Mar", canção do genérico da nova novela da SIC, que se passa nos Açores, é cantada por uma madeirense. Vânia Fernandes venceu, em 2008, a terceira edição da "Operação Triunfo" e, depois, o Festival da Canção. Representou Portugal na Eurovisão, conquistando um honroso 13.º lugar em Belgrado, Sérvia.
Depois deste momento Trivial Pursuit, vamos ao primeiro episódio da trama escrita por Raquel Palermo e João Matos. Sofia Ribeiro volta aos papéis de protagonista na pele de Joana Pedrosa (a.k.a. Senhora do Mar), uma mulher que foge de um marido mau como as cobras (Alexandre Borges, interpretado por Pedro Hossi) e vai parar à Terceira e aos braços do dono de uma vacaria que parece pobrezinho, mas é da família mais abastada da ilha (Manuel Bettencourt, interpretado por Afonso Pimentel).
O realismo mágico, a presença do sobrenatural, do fantástico no mundano, um recurso muito em voga nas novelas brasileiras dos anos 90 (quem não se lembra da flor do Jorge Tadeu, da novela "Pedra sobre Pedra" ou da mulher de branco de "Tieta") ressurge em "Senhora do Mar", quando um salvamento e um equívoco transformam uma fugitiva em objeto de devoção. Mas estamos a divagar quando devíamos estar a naufragar.
Quem ainda não tinha pensado marcar uma viagem à Terceira, fica convencido logo com os segundos iniciais do primeiro episódio. E se o postal ilustrado, onde o verde e o azul se cruza, encanta, a visão de um corpo inerte, vestido de branco, nos seixos escuros da praia, perturba.
A SIC usa e abusa das imagens captadas com recurso a drone neste primeiro episódio, não só para mostrar paisagens mas também para posicionar Joana, a heroína da história, como mais um elemento da natureza, ao mesmo tempo hospitaleira e hostil. Vítima de violência doméstica, aparece pequena, frágil e abandonada, e é preciso ir desfiando o episódio para perceber a história. Isto porque a estratégia narrativa — pelo menos neste arranque de "Senhora do Mar" — não é linear. A história tem constantes avanços e recuos, uma estratégia mais comum nas séries de ficção do que nas telenovelas.
Mas, para efeitos práticos, vamos começar pelo início. Joana Pedrosa vive em Lisboa, trabalha na Faculdade de Veterinária, estuda coisas ligadas com gado bovino (pelo menos foi o que conseguimos perceber, assim de relance, quando estava a passar os olhos por um slide show). Tem um marido mau como as cobras, Alex (Pedro Hossi), que não só lhe bate, mas também a agride emocionalmente e faz outras coisas simpáticas como colocar-lhe um localizador no telemóvel.
A pobre da Joana é amiga de Paula (Vera Kolodzig), que já deu para perceber que é uma megera do piorio. Não só lhe cata o teste de gravidez da carteira como, na festa de aniversário da amiga, revela a toda a gente que esta está de esperanças. #majorbitchalert.
A cena mais impactante, e que nos deixou com um nó na garganta, é protagonizada por Joana e Alex. Este agride-a, rapta-a, insulta-a e, numa escalada de violência, quase embate noutro carro. Mesmo quem nunca foi vítima de violência física ou emocional não consegue deixar de sentir um medo quase irracional de Alex, interpretado de forma magistral por Pedro Hossi. Que arrepia não só pela calma gélida com que a ameaça a mulher, mas também nas assustadoras mudanças de humor e capacidade de manipular a narrativa a seu favor.
E o que se passa na cena seguinte devia ser exibido em todas as escolas de condução como parte do protocolo de segurança rodoviária. O condutor do carro que ia chocando contra Joana e Alex sai do veículo de taco de basebol na mão. MEDO. Alex não vai de modas e sai do carro de pistola na mão. MAIS MEDO AINDA. Um alerta para os espertinhos que adoram pegar-se no trânsito com desconhecidos: vocês nunca sabem que maluco está no carro da frente (ou de trás, ou do lado).
Joana aproveita o momento para fugir do marido e comete um erro difícil de compreender para quem conhece minimamente Lisboa, quanto mais para quem vive na cidade. Então a moça está ao pé do Centro Cultural de Belém e do Mosteiro dos Jerónimos, que têm sempre seguranças, está ao pé do palácio de Belém, que tem sempre polícias à porta, e desata a fugir em direção ao Tejo? Pior.Ainda pára no túnel para tirar as botas? E não estamos a falar de um salto agulha, não senhora. Estamos a falar de uma bota perfeitamente capaz de correr uns bons dois, três quilómetros, sem dar chatices.
A verdade é que, se não fosse esta escolha, e o facto de o veleiro de Vanessa (Inês Curado) e Rúben (Luís Lourenço) estar mais aberto do que uma farmácia de serviço, Joana nunca tinha ido parar à Terceira e salvado o Chiquinho.
O Chiquinho é filho de Flávia (Mariana Pacheco), uma jovem beata lá do sítio, que rivaliza com Genoveva (Rita Blanco) pelo título da Rainha da Beatice. Flávia é tão beata, tão beata, que deixa o filho aos cuidados de Anabela (Francisca Salgado) para ir agarrar-se ao terço. O que sucede é que o Chiquinho, que deve ter aí uns 2, 3 anos, não mais, dá corda aos sapatos (tanto que até perde um) e, embora não consigamos perceber como, desce até à praia de calhaus onde Joana está, de vestido branco, desacordada. A criança lá consegue despertar a continental que, embora fraca, pega no miúdo e ala ravina acima.
Enquanto tudo isto não sucede, as boas gentes da terra dividem-se em dois grupos: as mulheres vão rezar pelo Chiquinho, os homens desatam aos berros no penhasco à procura do Chiquinho. Se alguém ligou para a polícia, ninguém deu por ela. Mas também não foi preciso porque, enquanto o diabo esfrega um olho, lá vem Joana com o Chiquinho ao colo.
"Isto é milagre!", exclama Genoveva. "É milagre!", gritam as beatas. O êxtase religioso é tanto que Joana desfalece nos braços do padre Filipe (Albano Jerónimo). Este, bom marketeer do sagrado, já tinha na sacristia, pronto a usar, uma manta azul celeste para Joana se embrulhar. E veio mesmo a calhar o vestido de algodão branco para completar o look da Nossa Senhora dos Socorros a Náufragos.
E se Joana e Manuel Bettencourt (Afonso Pimentel) vão protagonizar um amor mais maduro, Maria Silva Castro (Júlia Palha) e Pedro Bettencourt (João Jesus) serão o romance jovem, apaixonado e também proibido. A química entre os dois atores é perfeita desde a primeira troca de olhares, e ficámos particularmente fãs da cena em que o parzinho, saído da piscina (que Maria e as amigas invadiram e que pertence à família de Pedro), conversa de forma dengosa. A escolha de não maquilhar Júlia Palha, deixando-a de rosto limpo (como qualquer pessoa que sai de uma piscina), tornou o momento ainda mais verosímil. E, aqui para nós que somos uns românticos, mega fofo.
De volta a Joana / santinha / Senhora do Mar que, segundo Flávia, "cheira a mar e a incenso" (calma, jovem). Para quem recusou uma carbonara com ar de que levava natas no barco de Ruben e Vanessa, nadou não sei quantos quilómetros em alto mar e já não come há umas horas valentes, Joana tem uma energia inesgotável.
Mesmo a desmaiar aqui e ali, ainda conseguir zarpar de casa do padre e ir parar ao meio de um prado verdejante, onde é interceptada por dois touros que, convenhamos, também não tinham um ar assim muito ameaçador. Depois, acaba por desfalecer novamente, desta vez nos braços daquele que vai ser o seu amor ao longo de — esperemos — muitos episódios: Manuel Bettencourt (Afonso Pimentel), o rebelde criador de gado bovino (olhem que coincidência, logo a especialidade de Joana) com o todo-o-terreno mais estiloso da Terceira e arredores.
Altos
- a forma não-linear de contar a história, com avanços e recuos, e sem recurso ao flashback, torna o visionamento do episódio mais desafiante e também mais refrescante;
- "os homens, quando ficam sozinhos, esquecem-se que são bons e deixam o demónio entrar dentro deles". A frase é de Luísa Cordeiro (Manuela Couto), dita à filha Susana (Ana Marta Ferreira) e é a melhor tirada deste episódio;
- a química entre Maria (Júlia Palha) e Pedro (João Jesus);
- Rita Blanco, sempre e em tudo. Até podia estar a interpretar uma batata frita ou uma folha de papel.
Baixos
- a fuga de Joana (Sofia Ribeiro) em direção à marina de Belém onde, no mundo real, para se aceder às embarcações, é necessário ter um cartão para abrir as portas de passagem;
- o ar nada surpreendido de Vanessa (Inês Curado) e Rúben (Luís Lourenço) quando veem Joana (Sofia Ribeiro) surgir, do nada, da cabine do veleiro, como se esta não fosse uma desconhecida, mas sim uma amiga que tivesse estado a dormir para curar a ressaca;
- "eu só não durmo à noite porque a Francisca não me dá descanso", diz Artur (João Reis) ao irmão Manuel (Afonso Pimentel), referindo-se à namorada, interpretada por Cláudia Vieira. A frase é tão má, tão gosma colada à pele, que se torna boa.