Assistir à gravação de "A Noite da Má-Língua" é como entrar numa montanha-russa que ninguém sabe quando e como para. Só que esta montanha-russa não provoca enjoos, mas sim gargalhadas. A MAGG esteve nos bastidores do terceiro episódio do regresso do célebre programa de comentário da atualidade, agora em versão áudio e, 27 anos depois da estreia, pôde confirmar: Júlia Pinheiro, 59 anos, Manuel Serrão, 62, Rita Blanco, 58 e Rui Zink, 60, não estão os mesmos da década de 90. Estão melhores.
Quando chegamos ao edifício Impresa, já Rita Blanco lá se encontra, em amena cavaqueira com Joana Beleza, coordenadora e responsável pela área de podcasts do grupo liderado por Francisco Pedro Balsemão.
Depois chega Júlia Pinheiro, a maestra deste reencontro. Manuel Serrão e Rui Zink juntam-se ao grupo e, antes da entrada em estúdio, altura para um café e debate rápido de ideias. Sem imagem, dispensa-se também o tempo com cabelos, maquilhagens e guarda-roupas. Também não há ajustes de luzes nem microfones de lapela. É só sentar e deixar acontecer naturalmente.
E a coisa sucede, como há quase 30 anos, com a leveza cáustica de sempre, cortesia de Serrão e Blanco, entrecortada com as gargalhadas deliciadas de Júlia e os comentários serenos e acertados de Rui Zink.
"A Noite da Má Língua" surge, há 27 anos, da cabeça de Miguel Esteves Cardoso e da jornalista Helena Sanches Osório. Júlia Pinheiro, na altura com 32 anos, foi chamada por Emídio Rangel, à época diretor de programas da SIC, para ser a moderadora do formato. "Achei que me estava a meter na maior confusão da minha vida. E estava (risos)! Achei que era uma coisa muito arrojada, muito complexa. Eu nem sabia muito bem à época quais as consequências. Que as houve mas nada de extraordinário. Fiquei um bocadinho esmagada pela magnitude da tarefa. Mas depois fez-se", explica a apresentadora de 59 anos.
Foi também Júlia que, em 2021, pôs em marcha a reunião dos intervenientes do formato de comentário e análise da atualidade, emitido no canal de Paço de Arcos entre 1994 e 1997. "Há muito tempo que eu tinha o sonho de voltarmos a fazer a 'Noite da Má Língua' com a pureza de intenções e de ideia que tivemos há 27 anos. Mas não se propiciava. Até que, quando se começou a desenvolver a linha de podcasts na Impresa, eu propus", explica Júlia Pinheiro.
Manuel Serrão, Rita Blanco e Rui Zink responderam de imediato à chamada. Ficou a faltar Miguel Esteves Cardoso. "O MEC foi o único que não foi possível. Primeiro porque ele é, de facto, um eremita, gosta de estar no seu canto e, além disso, ele tem uma relação contratual com o grupo RTP. Ele achou que seria complexo estar num grupo e noutro. Declinou, com grande pena nossa. Juntámo-nos os quatro, e a efervescência acontece com um delírio permanente de felicidade", afirma a também diretora dos canais temáticos SIC Mulher e SIC Caras.
Júlia e Manuel Serrão são os únicos elementos da formação inicial d'"A Noite da Má Língua". A equipa que agora se conhece (além de Miguel Esteves Cardoso) "demorou muito" a ser formada. Aliás, só se juntou no último ano de emissão do programa. E Júlia explica porquê. "No início, para arranjarmos as pessoas que dessem corpo a estas manchas ideológicas foi um bocadinho difícil. Nós sabíamos que, quanto mais funcional e disruptiva fosse a conversa — que eram palavras que à época não se usavam muito — melhor, desde que não tivéssemos um pensamento muito alinhado e não estivéssemos a falar para nenhuma capelinha. Não se estava a fazer fretes para ninguém".
A "coloquialidade", algo que Júlia Pinheiro diz ser "muito difícil de fazer, na televisão, na rádio, onde quer que seja", surge mal os quatro entram para estúdio. E nem sequer é preciso dar sinal para a gravação começar. "Nós temos essa capacidade que é, mal nos sentamos, a conversa imediatamente se posiciona nesse tom, como se estivéssemos à mesa do café, sem ninguém a ouvir", salienta ainda a moderadora do programa-de-tv-tornado-podcast.
Questionada sobre o porquê de "A Noite da Má Língua 2021" não voltar ao pequeno ecrã, Júlia Pinheiro não só não põe a hipótese de lado como lança o repto.
"Isto é uma encomenda de podcast. Não tivemos convite para fazer em televisão, isso é uma coisa que eu deixo à consideração dos responsáveis, do Daniel Oliveira [diretor geral de Entretenimento] e, eventualmente, do Ricardo Costa [diretor de Informação], porque estamos neste limbo entre o entretenimento e a informação. Uma coisa que está nos nossos planos é fazer isto ao vivo, não necessariamente na televisão", afiança.
"O facto de se ter mantido viva uma certa antipatia connosco é a prova de que durou"
Sentados no estúdio, em silêncio, tivemos a oportunidade de assistir à gravação do terceiro episódio d'"A Noite da Má Língua". E, embora Júlia Pinheiro tenha abandonado o estúdio logo após a gravação, por imperativos profissionais, houve uma espécie de aftershow (que é como quem diz, a entrevista possível), que reproduzimos abaixo.
Como é que reagiram quando receberam o convite para voltar?
Rui Zink - Muito mal.
Rita Blanco - Eu fiquei consternada mas, depois, pensei ‘olha…’
Manuel Serrão - Eu perguntei quanto pagavam.
RB - Como é que se chama aquela coisa? Era o nosso destino juntar-nos e nós vamos estar juntos para sempre, com tudo o que isso quer dizer (risos)
MS - E ainda estamos à espera que possa, a todo o momento, juntar-se a nós o irmão pródigo [Miguel Esteves Cardoso].
RB - Eu acho que ele vai voltar. Estamos a confiar no Manuel Serrão, pela sua capacidade de persuasão física (risos), para conseguir agarrar no nosso querido mano Miguel Esteves Cardoso para, pelo menos, vir cá de vez em quando dar um arzinho da sua graça.
Rui, já tinha saudades de aturar estas pessoas um bocadinho mais extravagantes?
RZ - Sim, tinha...Tinha saudades porque os meus filhos já cresceram e eu queria voltar a ter aquela desarrumação, ter que mudar fraldas, arrumar os brinquedos, ter birras…
RB - Porque é que estás a falar desse problema do Manel? Eu acho mal, francamente… pode acontecer, é uma coisa chata mas, olha, que nunca te falte o dinheiro para a fralda.
RZ - Os meus filhos, quando o programa estava [no ar] eram pequenos. Eu era o único que tinha, de facto, uma vida complicada. Estes não, iam frescos. Eu ia depois de zangas, discussões, arrumar brinquedos, etc…
MS - Também ninguém te mandou ser do Bloco de Esquerda.
RZ - … e o que aconteceu é que agora os outros já saíram do ninho e estes voltaram ao ninho. Tão fofinhos.
Como é que os vossos filhos reagiram a este podcast?
RB - A minha ainda não tinha nascido mas, atenção, que eu não sei se os nossos filhos já ouviram alguma vez… Tenho algumas dúvidas (risos).
MS - A minha filha, que mente um bocadinho, diz que gostou muito e se riu muito.
RB - A minha filha disse que ia ouvir. É querida.
RZ - Para os meus filhos não mudou nada. Já tinham vergonha do pai.
RB - Vamos dizer a verdade! Nós estamos aqui juntos porque ninguém nos pega e ninguém quer estar connosco. Juntamo-nos aqui e nós até nos conseguimos rir uns com os outros. Mais ninguém consegue. Até eles perceberem que este programa só nos serve a nós, nós vamos vindo. Até porque, em Portugal, os governos têm funcionado assim. Não servem para nada, e continuam, e continuam sempre, e ninguém dá conta! Nós estamos com fé de que vamos ficar muitos anos aqui, sem ninguém perceber que não servimos para nada.
MS - Eu gostava que o programa durasse pelo menos até que o Rendeiro fosse encontrado.
RB - E que eu ficasse com um dos quadros. Dos verdadeiros.
O País está mais divertido para ser analisado e comentado?
MS - Eu acho que está outra vez a ficar no ponto em que estava quando nós começámos, que era o mundo do cavaquismo, e está muito melhor do que quando nós saímos, que era a paz podre entre o [António] Guterres e o [Jorge] Sampaio. Acho que neste momento, com o que se avizinha, estas guerras no governo, nos partidos, está tudo em guerra, dá muito material que hoje até nos atropelámos nos temas.
"A 'Má Língua' volta num registo que nunca teve imitação. Alguém tentou imitar aqui e acolá mas nunca ninguém imitou a 100%", Manuel Serrão
Se o programa voltasse em formato televisivo, teriam o mesmo à vontade?
RB - Isso pergunto-lhe eu! Não se vê que nós somos o que somos? Está à vista! Perguntas para quê, são artistas portugueses…
RZ - Eu até me acho mais bonito agora….
RB - Eu nem tanto mas os teus amigos também acham!
MS - Eu acho mais graça assim porque estamos muito mais à vontade. Agora, não acho que não mudava nada. Mas se me perguntar se acho mais graça, se me divirto mais atualmente a fazer assim a verdade é que me divirto.
RB - Eu também porque não há aquele incómodo de nos arranjarmos e de por não sei quê. Há uma coisa que, nesta fase, não seria nada interessante para nós, que eram aquelas performances que nós fizemos…
MS - Se for ao vivo já acho mais graça do que na televisão.
Qual foi o momento mais antológico da vossa participação n’”A Noite da Má Língua” ?
RZ - Há um momento que foi espontaneamente engraçado, em que o Cavaco recebeu enfim o prémio e fomos todos espontaneamente para debaixo da mesa cheios de medo (risos). Isso foi muito engraçado porque a lógica do programa é nós sermos diferentes. Esse, aliás, é o segredo sem segredo. Nós somos mesmo diferentes e, mesmo assim, conseguimos dar-nos bem. Essa parece-me que é a grande mensagem de paz que, há 40 ou 50 anos, a “Má Língua” deu. E agora é precisa até por uma questão simples: o elefante na sala, que é a pandemia e toda a crise, acho que as pessoas precisam de alguém que consegue dizer disparates e dizer coisas sensatas. Precisam deles, que dizem disparates, e de mim, que digo coisas sensatas.
MS - Quando a “Má Língua” nasceu, o que fez a diferença na altura, é que nós éramos pessoas cultas, estávamos informados… quase todos…
RB - (gargalhada) ahahaha!
RZ - Não digas nada.
MS - Informados sobre a atualidade, que é isso que é importante para poder discutir neste programa. E conseguimos falar sobre essa atualidade a sério e a brincar. Dizer coisas a brincar, até com um tom sério, e dizer coisas a sério com um tom de brincadeira. Acho que isso fez a diferença na altura, nomeadamente a chamada dessacralização dos políticos. Até essa altura - isso disse-nos o Herman, foi um elogio que ele nos fez — depois de termos dito mal do ministro, ele já podia também brincar com isso. Curiosamente, 25 anos depois, acho que já houve vários programas que tentaram ir por esta linha, não se calhar por causa dos próprios mas porque quem os convidou estava a pensar nisso, e acho que nunca aconteceu porque aqueles que eram mais humoristas nunca conseguiram ter coragem para falar a sério e aqueles que estão habituados a falar a sério, que estão ligados à política, nunca tiveram jeito para o humor.
RB - Além de que estão muito comprometidos com o poder.
MS - 25 anos depois, acho que a “Má Língua” volta num registo que nunca teve imitação. Alguém tentou imitar aqui e acolá mas nunca ninguém imitou a 100%.
É falta de cumplicidade ou é também falta de liberdade?
RZ - São as duas coisas. É aquilo que o Manel disse. O autoelogio não é a nossa praia. A nossa praia é precisamente termos exatamente a mesma falta de respeito por toda a gente que por nós mesmos.
RB - É o não nos levarmos a sério. Basicamente é isso.
RZ - É chato dizer sempre ‘nós somos bons e os outros são maus’ mas é dizer que a receita é simples: é raro juntar a uma mesa pessoas que fazem coisas no seu trabalho, que não precisam disto. Não são famosos por serem famosos. E muitas pessoas têm os tais rabos de palha que é uma coisa chata para elas! Sempre o medo, sempre a autoimagem, e sempre o ter uma claque atrás. E essa claque é sempre visível. Vocês vão ficar chocados com o que eu vou dizer mas a pessoa que apareceu, nos últimos 27 anos, mais parecida connosco, ironicamente foi a Joacine Katar-Moreira. E não é por acaso que ela é gaga. A Joacine foi aquela pessoa que foi atacada por todos os lados, inclusive pelo partido pelo qual foi eleita. Não teve uma única defesa.
RB - Posso só dizer uma coisa a favor dela? É que nós somos muitos e ela foi sozinha. Ela é mais corajosa do que nós.
RZ - Mas não é em termos de atitude, é em termos de resultado. Nós não temos uma claque por trás e não somos leais a essa claque. Porque às vezes é isso. Eu posso vir para aqui dizer ‘eu adoro o Sporting’, e passo a ter tipos do Sporting. Mas eu quero ter a liberdade de, na semana seguinte, poder dizer…
MS - Joacine vai em frente, tens aqui a tua gente! Mas a mim não! (risos)
RB - Mas ela diria ‘eu, a ti, também não te quero!’
O facto de, à exceção da Júlia Pinheiro, terem zero dependência das redes sociais, também contribui para a liberdade que aqui se espelha?
RZ - Há 27 anos éramos muito atacados. Éramos incrivelmente atacados, tão atacados que é muito engraçado que, a nível da critica de televisão - e eu acho graça a isso - não houve uma instituição jornalística que reconhecesse o peso que o programa teve naquele tempo. Sai sempre um bocadinho ao lado. E isso é a maior honra. Quando alguém diz bem de mim é porque eu, se calhar, estou já morto. O facto de se ter mantido viva uma certa antipatia, uma certa irritação connosco, é a prova de que durou. Nós estamos aqui até às calendas mas não nos surpreenderá e será para o lado que dormimos melhor se, de repente, formos cancelados.
MS - E espero que, no próximo programa, a Rita comece a retratar-se de se ter retratado da Filomena Cautela!
RB - E vou retratar-me sempre que possa e sempre que ache que é necessário (risos)!
O podcast de "A Noite da Má Língua" é coordenado por Joana Beleza e tem sonoplastia de João Luís Amorim.