Em 2014, Ana Matos Fernandes, mais conhecida como Capicua, preparava-se para subir àquele que seria o terceiro palco de destaque do Super Bock Super Rock. Tinha apenas dois álbuns e duas mixtapes em carteira, chovia desalmadamente e, assim que pisou o palco, achava que as centenas de pessoas que enchiam a tenda estavam ali apenas para se abrigar da chuva. Alerta, spoiler: não estavam.

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Gritaram "CA-PI-CU-A" em uníssono durante todo o concerto e fizeram daquele momento um dos mais especiais da carreira da artista. Esta sexta-feira, 15 de julho, não no Meco, mas na Sala Tejo da Altice Arena, no Parque das Nações, a história repete-se. Ou melhor: continua. Já que a artista já soma várias atuações no festival e muita coisa aconteceu entretanto.

Não só em termos de portfólio (que já conta com duas mixtapes, três álbuns a título próprio, vários projetos infantis (como um disco-livro para crianças em parceria com Pedro Geraldes, "Mão Verde", em 2016) e uma vasta panóplia de letras escritas para artistas como Gisela João, Aline Frazão, Ana Bacalhau, Camané ou Clã, mas no que à luta pela representatividade feminina na indústria diz respeito. Se o cenário melhorou? Sim. Se as oportunidades (e salários) entre artistas masculinos e femininas já são iguais? Ainda não. 

À MAGG, Capicua recorda aquele que foi "um dos melhores concertos" da sua vida, explica o que a levou a convidar cinco mulheres para atuar consigo no Super Bock Super Rock, em 2016, e frisa a importância de lutar pela paridade e igualdade feminina na indústria. Até porque, diz, trata-se de "direitos humanos" e não de um "Porto-Benfica".

"Foi um dos melhores da minha vida"

Agora, Capicua já conta com mais de dez anos de carreira e uma vasta panóplia de êxitos, mas em 2014 pisava o palco do Super Bock Super Rock com apenas duas mixtapes — "Capicua Goes Preemo" (2008) e "Capicua Goes West" (2013) —, e dois álbuns   "Capicua" (2012) e "Sereia Louca" (2014) —, em carteira.

A estreia da artista no Super Bock Super Rock permanece bem viva na memória de Capicua, mas a rapper do Porto faz questão de recordar não só essa primeira atuação no festival, mas também o ano em quando chamou cinco mulheres a palco para atuar consigo. Mas já lá vamos.

Em 2014? "Foi mágico"

Apesar da chuva lá fora e da lama nos ténis, segundo Capicua, neste ano, foi a emoção que ficou. "Esse concerto de 2014, no Meco, foi um dos melhores da minha vida. Foi mágico. Estava a chover torrencialmente e o meu palco era o terceiro palco em termos de grandeza. Estava no meu segundo disco, mas estava num momento importante da minha carreira, em que estava a chegar a muitos públicos", começa por contar à MAGG.

"E quando cheguei à tenda em que ia tocar, depois de ultrapassar um lamaçal imenso, com tudo molhado, até brinquei com o senhor da produção, porque estava com os ténis cheios de lama. E disse: 'nenhum outro rapper ia entrar em palco com os ténis neste estado'", completa, entre risos.

"Entrei em palco e a tenda estava cheia, cheia, cheia. E pensei: estas pessoas devem estar aqui para se abrigar da chuva, não é para mim, de certeza. Aquilo era uma multidão que ultrapassava a tenda. E, de repente, comecei a tocar e as pessoas cantavam as letras todas, chamavam por mim e mostraram tanto amor que o DJ estava emocionado, de lágrima no olho. E eu também. Houve alturas em que nem conseguimos começar as músicas, porque as pessoas gritavam tanto e chamavam por CA-PI-CU-A", conta, acrescentando que nem a imprensa ficou indiferente ao que se viveu naquele palco.

"Na imprensa, as gordas sobre o festival tinham o meu nome. E eu fiquei toda contente, porque estava a tocar no terceiro palco e nas gordas estava ali taco a taco com o Eddie Vedder. Claro que ele é o Eddie Vedder, mas fiquei muito feliz. De facto, não só o concerto foi muito bonito como nos media (...) ficou sempre como muito especial", disse.

A carreira é vasta, mas há três (vá, quatro) momentos especiais

À MAGG, a artista admite que o ano de 2014 ficou não só marcado por este concerto "mágico", mas pela forma como o disco "Sereia Louca" catapultou o trabalho da artista para outros horizontes.

"Acho que às vezes o público até acarinha mais artistas quando estão a começar do que propriamente quando explodem. Acho que depende de um cruzamento de factos. Não é tanto, às vezes, o sucesso mainstream, mas a forma como o público nos acarinha em cada momento e a cada disco, mesmo que não tenha muito sucesso comercial, porque tocou em algum sítio. Acho que tem mais que ver com isso do que propriamente com os números", começou por dizer, antes de avançar aquele que diz ser o seu pódio de momentos importantes na carreira. Por ordem cronológica.

"Acho que há três momentos importantes:

  1. a minha primeira mixtape ["Capicua Goes Preemo"], que foi o meu primeiro trabalho a solo, em 2008, em que eu saí do hip hop do Porto para o hip hop nacional. Ainda dentro do nicho mais underground;
  2. depois, em 2012 [ano de lançamento do álbum "Capicua"], em que saí desse nicho do hip hop underground para um público mais alternativo, que gostava de música portuguesa, não necessariamente de hip hop;
  3. e, por fim, em 2014, com o [álbum] "Sereia Louca", em que cheguei a um público mais variado em termos de idades, de crianças a pessoas mais velhas;

Estes três marcos são assim de expansão de público, mas acho que teria que acrescentar sempre o meu último disco, "Madrepérola", que saiu em 2020, o ano fatídico, um mês e pouco antes da pandemia. Porque, para mim, é o melhor disco de sempre", disse.

Em 2016? Celebrou-se o talento feminino em palco

Em 2016, Capicua atuou no mesmo dia do que Kendrick Lamar, 16 de julho. A noite tinha hip-hop e rap como estrelas da festa, mas a representatividade feminina ficou fora da guest list. Capicua era a única mulher a marcar presença no cartaz do último dia de Super Bock Super Rock — mas não foi a única a pisar o Palco EDP do festival.

"A segunda vez que toquei no Super Bock Super Rock, foi em Lisboa, na edição em que o Kendrick Lamar tocou, era uma noite toda dedicada ao hip hop, imensos concertos poderosos e ao mais alto nível e eu era a única mulher no cartaz, como aliás é habitual", começou por explicar. "O que fiz foi convidar cinco rappers para virem comigo para o palco. (...) fiz questão de mostrar que havia muitas mulheres talentosas para programar e que elas estavam ali".

"A liberdade não é uma coisa que se festeja apenas no 25 de Abril, mas sim uma conquista quotidiana". Foi com esta frase que Capicua se despediu do público, antes de dar voz ao tema "Vayorken" para encerrar o espetáculo. O momento não passou despercebido e, à data, o jornal "Público" chegou a avançar que durante o concerto o hip-hop andou sempre "a par da realidade social e política", com nomes como MC M7 (Beatriz Gosta) ou Blaya como parte do espetáculo.

"Poucos festivais respeitam a paridade"

Seja através da escrita (com músicas como "Maria Capaz") ou ações como a de 2016, no Super Bock Super Rock, Capicua tem vindo a lutar pela representatividade feminina na indústria. Confessa que há progressos, mas admite: "podíamos estar ainda melhor".

"Claro que cada vez há mais mulheres a comandar as suas próprias carreiras, a escrever as suas músicas, a compor. Isso é uma coisa super importante, e que é recente, porque havia mulheres antes, mas os compositores, os letristas, os editores, os managers eram todos homens. Agora, está a começar a haver uma transformação a esse nível. Não estou a dizer que não estamos melhores. Estamos. Mas ainda há muita coisa para fazer. Podíamos estar ainda melhor", explica.

"Acho que se nós repararmos, de facto, nos cartazes, pouco festivais respeitam a paridade. Se olharmos para os managers, para os editores, para os programadores, para os músicos, para as equipas técnicas, ainda há uma grande desigualdade. Acho que a razão é porque nós vivemos numa cultura em Portugal que é machista", acrescenta a artista de 40 anos.

Segundo a artista, apesar de "vivermos num País em que o grau de escolaridade das mulheres é elevado com "mais mulheres licenciadas do que homens", a percentagem de mulheres nas "grandes empresas" é "mínima". "Se virmos a diferença salarial ainda é absurda em Portugal", frisa.

"É uma questão de direitos humanos. Não é um Porto-Benfica"

Segundo a cantora, "esferas mais competitivas, como desportos de alta competição, defesas de grandes empresas, política ou muitas áreas da música continuam a ser eminentemente masculinas e  "boys clubs", pelas palavras de Capicua, que admite que as mulheres já partem em desvantagem, porque não são "socializadas" e "culturalmente educadas" para "ter as características que são valorizadas nessas esferas".

"Espírito de liderança, sermos competitivas, darmos uma opinião, acreditarmos no nosso talento", explica. "Nós temos sempre uma insegurança e um síndrome da impostora, que são alimentados culturalmente. Temos que ter essa capacidade de ultrapassar isso tudo para competir e investir no nosso talento", acrescenta.

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"Basta ver a forma como nós vemos os adolescentes. Os rapazes muito mais estimulados a cultivar os seus talentos, no desporto, na música, nos seus hobbies, e as miúdas sempre muito mais estimuladas a captar a atenção e validação masculina. Acho que isso ainda é muito óbvio, e enquanto a nossa cultura for tão sexista e desigual nesse aspeto, não vamos poder esperar milagres. (...) Por isso, temos de continuar a mostrar que é preciso igualdade, que igualdade é boa para toda a gente, que é uma questão de direitos humanos. Não é um Porto- Benfica", remata.

Capicua
créditos: Miguel Refresco

Mais do que talentosas, a indústria espera que as mulheres sejam "decorativas", diz Capicua

A artista admite que já sentiu "olhares de desconfiança" por ser mulher na indústria da música, mas garante que mais do que apontar a sua "experiência individual", é preciso avaliar o contexto como um todo e perceber que se trata de um problema coletivo. "Isto é uma questão coletiva. "Todas nós vamos ter uma história para contar. Portanto, aquilo que me interessa mais é falar sobre o coletivo e como é que podemos contribuir para identificar os problemas e resolvê-los", diz.

"Obviamente as mulheres na indústria já passaram, mesmo que não tenham consciência, por este tipo de experiências. Exatamente porque é uma indústria que nos instiga a competir entre nós, como se tivéssemos uma liga à parte pelas pouquinhas vagas que sobram. É quase como se houvesse uma cota para as mulheres do rap, ou outro estilo de música qualquer, porque ainda há uma expectativa de que sejamos decorativas", começa por explicar.

"Não temos só de ser talentosas, de conseguir ultrapassar as dificuldades que as assimetrias já impõem, mas ainda temos de ser isso tudo   e muito mais incríveis do que a média dos homens para conseguir sobressair —, e ainda assim ser decorativas e cumprir com a expectativa da própria indústria, que no entretenimento ou na música sempre se alimentou do corpo das mulheres para vender discos. E isso continua a acontecer", frisa.

"É muito frustrante para tantas mulheres talentosas em Portugal, por exemplo, não terem espaço na programação das salas, dos festivais. E não é que haja falta de talento, há imensas mulheres talentosas em Portugal e nem todas têm um lugar ao sol. E se eu consigo estar na programação, tenho o dever de falar sobre isso".

Este ano, Capicua é (novamente) uma das poucas mulheres no cartaz do Super Bock Super Rock

A artista prepara-se para regressar ao festival que lhe serve de palco há já vários anos  com concerto marcado, às 23h15, na Sala Tejo —, mas há fãs que já ouviram a artista, em primeira mão, num showcase exclusivo, esta quinta-feira, 14. Os vencedores do passatempo Like a Bus, da Prio, estiverem "em trânsito" com a artista, num autocarro especial, que fez o trajeto dos estúdios da Universal e percorreu a capital, com uma paragem no parque Tejo para uma sessão de fotos e um concerto inédito da artista. 

O trajeto inicial seria Lisboa-Meco, mas o último destino manteve-se intacto, apesar das alterações provocadas pela situação de contingência. Os vencedores tiveram a oportunidade de explorar o mundo encantado do backstage do festival, cujo acesso foi conferido pela vitório no passatempo.

Dias antes deste "dia D", Capicua revelou à MAGG que decidiu entrar a bordo deste passatempo, que se estendeu a vários festivais nacionais, não só porque o conceito "engraçado" e "interessante", mas porque, desta forma, teve oportunidade de entrar em contacto direto com os fãs que podem (ou não) ter influenciado a setlist desta sexta-feira. 

"Eu cultivo sempre uma naturalidade e espontaneidade em palco e fora de palco, que faz com que não seja fácil distinguir a pessoa do artista. Até porque eu não me considero uma performer propriamente e tenho uma forma de estar bastante simples. Não tenho roupa de palco, não me transformo. No máximo, ponho um batomzinho. As pessoas já me conhecem de certa forma, porque eu sou aquilo que veem no palco. Mas, de facto, este tipo de experiência permite destruir qualquer tipo de barreira, já que quando estou em palco não consigo muitas vezes comunicar diretamente e há aquele fosso, que nos festivais até é bastante grande", começou por explicar Capicua.

"E neste caso é fixe, porque não só eu estarei como sempre me apresento, mas eles também poderão dar feedback mais direto, trocar umas ideias e conversar. Também vai ser bom para perceber o que esperam do meu concerto no dia seguinte, algumas dicas de setlist, alguns discos pedidos", acrescentou. Pode espreitar a experiência através dos stories disponíveis no Instagram da Prio.

O que esperar do concerto desta sexta-feira?

"Quando as pessoas nos vão ver a um auditório ou a um concerto em nome próprio, já sabemos que estão ali e compraram bilhetes para nos ver. Estão sentadas, mais disponíveis e é toda uma experiência mais imersiva e de maior concentração. Mas nos festivais tens uma oportunidade única, que é cruzar muitos públicos e tocar para pessoas que, se calhar, estão ali à espera do concerto da banda seguinte ou que estão ali só porque curtem e vão beber umas cervejas, mas acabam por ser apanhadas num concerto que acaba por vencer a atenção", explica.

"Acabas por angariar muito público nesse tipo de experiências, até porque normalmente os festivais como o Super Bock Super Rock têm um cartaz interessante e  pessoas sabem que está garantida uma certa programação de qualidade. As pessoas que vão [ao festival] normalmente são pessoas que gostam de música e mesmo que não vão para me ver, sei que há ali pessoas que podem chegar perto. E depois há aquele público que é fã e que está nos festivais e que apoia", acrescenta.

Para a artista, o índice de atenção do público num festival até pode ser menor, mas a intensidade é diferente. "Por estarem no festival, que é uma experiência em que as pessoas não estão com o mesmo grau de concentração que se calhar estaria numa sala fechada e com lugares sentados, estão muito mais em celebração. Corpo a corpo. É uma experiência imersiva também por isso: o público contagia-se e nós também nos contagiamos uns aos outros. E, nesse sentido, é tudo muito mais festivo, intenso e à flor da pele do que, às vezes, em salas fechadas", diz.

"Num festival, queremos mover uma massa de público. Não é tocar cada uma das pessoas individualmente. Aliás, não é só. Também queremos isso, mas queremos fazer mover a multidão e isso implica às vezes - como é um público misturado, que nem todos conhecem o trabalho e há muitos estímulos - que tenhamos um magnetismo e uma capacidade de mobilização muito mais forte", conta.

"E nesse aspeto é óbvio que aproveitamos os festivais para fazer uma setlist mais dançável, com alguns medleys, clássicos e coisas mais recentes misturas, porque as pessoas querem ouvir músicas que já conhecem e que se calhar até já têm dez anos. Portanto, é preciso misturar muito mais o repertório dos vários discos, apostar em temas mais dançáveis e ter uma capacidade de mobilização mais imediata e coletiva. É um desafio", acrescenta.

Não é certo, mas é provável que letras como "virei abelha rainha", "faço mossa, faço história", se façam ouvir em uníssono esta sexta-feira, 15.