Com 20 anos de carreira televisiva e mais uns quantos de palco, César Mourão estreia-se agora como realizador de cinema, com a longa-metragem "Podia Ter Esperado Por Agosto". A comédia romântica, protagonizada por Mourão, Júlia Palha e o lusodescendente Kevin Dias chega às salas de cinema portuguesas esta quinta-feira, 18 de julho.
O ator de 45 anos é não só protagonista e realizador como também criador e produtor executivo. O filme é uma obra da 313 Features, produtora fundada por César Mourão e Diogo Brito, responsável também pelo documentário "Futre" e pelas séries "Santiago", "Volto Já" e "Esperança", todos da OPTO SIC.
"Os Espíritos de Inisherin", que arrecadou 9 nomeações para os Óscares em 2023, uma tragicomédia passada nos anos 1920 numa ilha fictícia ao largo da Irlanda, serviu de inspiração para "Podia Ter Esperado Por Agosto". E os cenários de tormenta e inverno da mega produção de Hollywood também foram mote para a comédia romântica, que César Mourão não quis, propositadamente, que se passasse no Verão.
Por isso, o Soajo, no Gerês, foi o local escolhido para a rodagem do filme, que aconteceu ao longo de cinco semanas em pleno inverno, entre fevereiro e março de 2024. Um tempo considerado normal para uma produção portuguesa, mas uma verdadeira corrida de 100 metros, quando comparado com as maratonas que são as rodagens de filmes internacionais, cujo orçamento mais generoso permite esse prolongamento no tempo.
Em entrevista à MAGG, César Mourão conta como foi o caminho de "Podia Ter Esperado Por Agosto", desde a ideia até à edição final. O humorista, ator e estrela da SIC reflete ainda sobre o peso que a televisão tem na transversalidade da sua popularidade.
Como surge esta história na sua cabeça?
Ao ver "Os Espíritos de Inisherin" fiquei a pensar: 'não se passa nenhum filme de comédia em Portugal que seja neste tom'. As comédias são todas ao sol, com cores mais primárias. E não há uma comédia que se passe neste tom de inverno, que também existe no País. Então começo por ter gosto em fazer uma comédia com aquela fotografia. Daí surge-me o norte de Portugal, o Gerês. Aquele género de fotografia ou seria no Norte ou nos Açores. Por uma questão de orçamento, penso no Norte do País. A seguir a história surge naturalmente. Podia ser uma comédia mas, ao mesmo tempo, um drama e também uma tragédia. Que é um bocadinho o nosso filme. Não é só uma comédia romântica, é mais do que isso.
É quase uma comédia negra.
Não diria que é porque acaba tudo bem. Nós quisemos respeitar os cânones da comédia romântica e surge a ideia desta coisa muito portuguesa de tudo parecer longe e depois, quando fazemos falta a alguém, percebemos que afinal 4 horas não é tanto tempo assim.
A aldeia do Soajo surge por terem achado que o sítio era o mais adequado?
Já tinha pensado que tinha sido aquele porque, no programa "Terra Nossa", eu fiz um dos programas sobre Arcos de Valdevez, ao qual o Soajo pertence. Uma das convidadas era de lá e nós fomos lá filmar. Quando chego lá, "espera lá, isto é uma cidade cenográfica! Esta vila não existe!". E pensei que gostaria de fazer um filme ali. Quando surgiu a ideia do filme disse que tinha de ser no Soajo. Debatemos a distância, os custos de produção, levar a equipa para lá mas eu estava já muito convencido que era o Soajo. Eu gosto muito do que está no filme, tudo o que está ali respeita a verdade. O café é o café, a agência funerária é onde, é, tudo aquilo é verdade.
Não pensou duas vezes antes de decidir que ia ser o realizador? É sua primeira longa-metragem.
Eu costumo dizer que foi uma questão de orçamento mas não estou a mentir muito. Quando tenho a ideia, não pensei que poderia ser eu a realizar. Mas também não pensei que podia ser eu a protagonizar. Depois vem de uma escolhida da NOS [distribuidora do filme] e da SIC [canal parceiro de produção], disseram-me 'mas tens de ser tu o protagonista'. Ok, está bem, mas quem é que chamamos para realizar? Os meus sócios sugeriram que fosse eu, 'é tua, tu é que escreveste'. Ok, aceito. Então fui levando assim a história e fui-me deixando ser empurrado até tocar estas cordas todas.
Neste filme, nota-se um rigor na fotografia, edição e na banda sonora, que fazem a diferença no produto final. Quando o idealizou, já tinha pensado no cuidado com estes três elementos?
Eu sou fascinado pelo rigor. Sou obcecado pelo rigor. Eu disse isto várias vezes ao elenco e à equipa técnica. "Podem sair do cinema a dizer 'não adoro a história' mas não podem dizer que está mal feito". Não é possível. Este era o meu ponto de partida. Tinha de ser muito rigoroso, desde o guarda-roupa à banda sonora, aos locais, a tudo. A banda sonora foi uma das primeiras coisas em que pensei. Sabia quem queria que fizesse o score, que foi o João Martins, e depois algumas músicas, como a Ana Lua Caiano, eu sabia que ela tinha de entrar ali. Depois, novos valores como o Diogo Zambujo, a Mimi Froes... eu pensei, muito antes da escrita.. aliás, no primeiro guião, já estava 'entra a música X'.
Nós já tínhamos até uma lista fechada no Spotify do que sabíamos que ia entrar no filme. Quando eu dizia ao elenco 'o filme é assim e assim, a dada altura tem esta música', as pessoas diziam que conseguiam ver até que ponto é que eu queria ser disruptivo. Não queria só um filme tradicional e um filme comercial, que não tenho medo dessa palavra. É um filme comercial, sem medo de o ser, mas queria que tivesse ali alguma disrupção, alguma modernidade na escolha dos temas musicais. Houve muito cuidado com isso, com a edição, eu tive o mesmo cuidado com a equipa técnica que tive com os atores. Para mim, tinha de ter um bom elenco, no qual eu acreditasse muito, mas tinha de ter uma equipa técnica que eu soubesse que não há melhor.
Como surge a escolha tanto da Júlia Palha como do Kevin Dias para coprotagonistas?
A Júlia é uma escolha natural. Eu já a tinha visto aqui e ali nas novelas da SIC e fiquei com uma ideia que não tinha antes. Confesso que há algum preconceito associado a uma miúda bonita, loira, de olhos azuis, há sempre aquelas conversas de 'ah, não é boa atriz'. Eu acho o oposto, acho-a uma belíssima atriz. E, depois, a personagem dela, não vive da beleza dela. É uma personagem que é verdade, que existe, e que não está ali só porque a Júlia é bonita. No "Vale Tudo" contracenámos, e embora fosse de improviso e num programa de entretenimento, deu para perceber ali um rigor da parte da Júlia. Ela vinha muitas vezes ter comigo, no fim ou no intervalo dos programas, a dizer 'achas que fiz aquilo bem, a abordagem é esta?', muito preocupada com o rigor. E eu a isso dou muito valor.
Eu não conhecia muito bem o trabalho do Kevin, tirando o que tinha visto no "Emily in Paris", e achava mesmo que ele não iria ter tempo para fazer o nosso filme. Até foi a Júlia que insiste comigo 'mas porque é que não dizes ao Kevin?'. Nós queríamos um luso-francês porque, no Soajo, há muitos emigrantes que estiveram em França, mas não queríamos por um português com sotaque. O Kevin, para minha surpresa, ficou muito agradado com o convite. Tivemos a sorte de bater no mês em que ele não tinha absolutamente nada, ou tinha só uma publicidade e um dia de gravações de "Emily in Paris". Fui ter com ele a Paris, falei-lhe do guião, mostrei-lhe as coisas e ele aceitou de imediato. Fomos muito felizes no filme e hoje somos grandes amigos.
"Temos atores e técnicos tão bons quanto lá fora. Temos é menos tempo porque temos menos orçamento"
Este filme vai estar nas salas de cinema e, depois, nas plataformas de streaming OPTO SIC e Prime Video. Sente que esse é o caminho para o cinema chegar a toda a gente?
Estamos a levantar um véu que eu gostava que não se levantasse, porque assim menos gente vai ao cinema. E isso é um papel que nós temos de fazer, todos. Porque, senão, a pessoa deixa-se estar confortavelmente em casa e não é bom para nenhum segmento. A televisão só vai ter um bom sucesso se o filme tiver um bom resultado em cinema. É importante que, em cinema, seja um sucesso para, depois, a televisão alavancar e nós continuarmos todos a ter trabalho.
"Confesso que há algum preconceito associado a uma miúda bonita, loira, de olhos azuis, há sempre aquelas conversas de 'ah, não é boa atriz'. Eu acho o oposto, acho-a [Júlia Palha] uma belíssima atriz."
Mas o streaming dá uma longevidade a um produto que, dantes, não existia.
Depende do contrato. Eu acho que não tem nada a ver. Uma coisa é fazer um filme para cinema, outra é fazer um filme para streaming. A abordagem da câmara, o pensamento dos planos, o rigor é completamente diferente. Há planos que fizemos porque sabemos que eles vão resultar numa tela de cinema. Não funciona num ecrã de televisão da mesma maneira. É como mergulhar no mar ou mergulhar num alguidar. Até posso lá por peixes e água salgada, não é igual. E aqui é um bocado a mesma coisa. O cinema tem outro respeito, outra abordagem e outra leitura. Há amigos meus que me perguntam: 'então com mais dinheiro os atores eram melhores?'. Não. Tínhamos mais tempo. Nós temos atores e técnicos tão bons quanto lá fora. Temos é menos tempo porque temos menos orçamento. Nós tivemos cinco semanas o que, em Portugal, nem é pouco tempo. Há filmes com três, duas semanas. Se calhar, o que seria certo seria mais do dobro. E não há orçamento para isso.
Enquanto as pessoas não perceberem que a decisão delas de ir ou não ir determina a qualidade dos produtos que temos, vai ser mais difícil em Portugal ombrearmos com outros. Vou fazer esta comparação: Portugal só estar a ombrear hoje em dia com clubes de futebol europeus e outros campeonatos porque as pessoas vão ao futebol e compram a Sport TV. Tem de se passar a mesma coisa com o cinema. Se as pessoas querem criticar - e com toda a legitimidade e direito - então têm de ir ao cinema.
Sente que o capital de credibilidade que construiu ao longo de 20 anos na televisão é um factor indispensável para levar pessoas ao cinema?
Quer queiramos quer não, a televisão ainda é o meio mais fácil de vender bilhetes, de ter essa popularidade no País. Talvez seja a única hipótese, através do meu trabalho na televisão, de eu conseguir, em vez de gastar esse dinheiro mal gasto, eu tenho-me esforçado para investi-lo. Seja num álbum de música, seja em séries como "Esperança" ou "Santiago", como agora um filme, como Commedia a la Carte. Tenho-me esforçado para reinvestir esse dinheiro e dizer assim 'agora vou dar outro tipo de cultura às pessoas'. Não sei se boa se má, haverá quem goste, haverá quem não goste. Mas eu faço esse trabalho.
Claro que eu me aproveito do facto de ter popularidade para encher uma sala de cinema, para encher o Tivoli com Commedia a la Carte. Mas há uma coisa pela qual eu luto em todas as minhas equipas: ninguém se pode sentir defraudado com o que vê. Eu tenho essa facilidade de encher salas mas as pessoas não chegam lá e dizem 'para pagar por isto não venho mais'. Mas podem dizer 'não adorei, não me ri'. Mas preocupação com os figurinos, com a música, com os cenários. Nós temos inclusive um perfume nosso, que borrifamos antes de nós entrarmos. As pessoas, quando se sentam para ver Commedia a la Carte, têm de sentir que há alguma coisa diferente.
Às vezes, nós enganamo-nos e pensamos 'é só o bilhete de cinema'. Não é, é tudo o que está à volta. Gasolina, estacionamento, um jantar ou um almoço, babysitter, é muita coisa que está à volta. A pessoa, quando sai de casa, tem de chegar ali e dizer 'sim, senhora'. 'Mas gostaste?'. ? 'Não adorei mas não fui enganado. O meu valor está ali'. Nós fazemos com que isso seja conseguido e neste filme também.
"Uma coisa é fazer um filme para cinema, outra é fazer um filme para streaming. É como mergulhar no mar ou mergulhar num alguidar."
Acha que alcançou um lugar no entretenimento em que não há mais ninguém no seu patamar? No sentido da abrangência de públicos a que chega.
Eu pago esse estudo de mercado na minha empresa, tenho noção desse estudo e falo cada vez mais com a SIC sobre isso. A SIC tem noção, eu também tenho. E muito me honra e lisonjeia isso. Felizmente, vou da classe A à classe D e dos 8 aos 80 anos. Eu não sei se isto é bom, se é mau, nunca pensei nisso e não trabalho para que assim seja. O meu ADN é um bocadinho esse. Quando fiz este filme não pensei se ia agradar às classes todas. O que é certo é que eu acho que ele agrada. E não pensei nas faixas etárias. Mas o que é certo é que ele fala para jovens de 20 anos e fala para pessoas de 80. A minha contracena com o Julião, ele malandro, de 20 e poucos anos, apanha o telefone do amigo, 'tens de ir ter com ela'... há muitos jovens que se reveem naquilo, mas também há muitas mães que se reveem na minha mãe, a Luísa Cruz, nos conselhos ao filho, depois uma história de amor e, no fim, uma história de um senhor que vive isolado numa aldeia e que a família só lá vai no verão. E até que ponto não temos de pensar nas nossas prioridades. O filme, sem eu ter pensado, abrange essa faixa etária. É um trabalho que eu faço sem querer, não muito pensado mas o que é facto é que acontece eu ter essa abrangência, quer de faixas etárias, quer de classes sociais.