“Old news”. Foram as palavras escolhidas em 2014 por Meryl Streep no programa “The Ellen Show". Em causa estava a nomeação para o Óscar de Melhor Atriz pelo papel no filme “August Osage County”. A mulher mais prestigiada do cinema achava que já não era novidade e que, por isso, não havia hipótese de ganhar o prémio.

Nesse ano não ganhou. Mas está longe de ser “old news”, tal como a apresentadora do programa fez questão de frisar. Em 2018 volta a estar nomeada, desta vez pela interpretação de Katherine Graham no filme de Steven Spielberg, “The Post”.

Faz comédias, faz dramas, faz fantasia. Faz magia. Maryl Streep, 69 anos, é das mulheres mais respeitadas de Hollywood e não é por menos: com uma carreira invejável, repleta de personagens fascinantes e sempre diferentes, soma um total de 355 nomeações em diferentes competições. Destas, 21 foram para os Óscares.

Tudo começa com “Kramer vs. Kramer”. Mas nada seria possível sem o marido

O primeiro prémio entregue pela Academia foi pelo papel secundário (um dos poucos que fez) em “Kramer vs. Kramer”. No filme, realizado em 1980 por Robert Benton, a atriz veste a pele de Joanna, a mulher que se separa do marido (Dustin Hoffman), deixando-o com o filho.

O segundo, já como Melhor Atriz, foi com “Sophie’s Choice”, onde interpreta uma polaca a viver em Brooklyn que sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. O galardão foi entregue por Silvester Stallone e no momento em que sobe ao palco, a atriz deixa cair o papel com o discurso.

Era mais tímida. A voz mais calma. Corria o ano de 1983 e a Meryl que subia ao palco naquele dia era muito diferente da que venceu o Óscar pelo papel da britânica Margaret Thatcher com o filme “A Dama de Ferro”, o terceiro e último que conquistou — até agora. Entre os dois prémios passaram 29 anos.

Mas há coisas que não mudam, como o casamento com o escultor Dom Grammar, o homem que conheceu em 1978 — a propósito da morte do ator John Cazale ("O Padrinho"), amigo e companheiro de casa da atriz — com quem teve três filhos. Em 2011, em entrevista ao “The Talks”, revela que o marido é essencial para conseguir gerir a vida familiar com uma carreira de 45 anos sem interrupções.

“A primeira coisa é um grande marido, que encontrei há muitos anos e tenho muita sorte por isso. Depois, é preciso muita ‘estamina’. E boas competências de organização. Eu sinto que giro um negócio, apesar de não ter nenhum. É planear, planear e planear.”

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De cheerleader a rainha de Hollywood

A história de Meryl Streep (ou Mary Louise Streep) começa em Summit, Nova Jérsia, a 22 de junho de 1949. É filha de Mary Wilkinson Streep, uma artista comercial e editora de arte, e de Harry William Streep Jr, um farmacêutico executivo.

Frequentou o Bernardsville High School, onde interpretou aquele que, muitos anos depois, encara como o seu primeiro papel. Com 15 anos, “quando era uma miúda mais nervosa e contida”, como referiu no programa “The Ellen Show”, decidiu pintar o cabelo de loiro e transformar-se numa cheerleader. No final do secundário foi eleita a rainha da turma.

Daqui seguiu para a Vassar College, com o objetivo de integrar a Universidade de Direito. De acordo com a “Vanity Fair”, adormeceu para os exames de admissão. Mas não se sentiu mal — por esta altura já sabia que queria ser atriz. Trocou o Direito pela Yale Drama School e em 1975 estreia-se nos palcos de Nova Iorque, pela Broadway, onde participou em várias produções, incluindo a adaptação de “The Cherry Orchard”, o drama do dramaturgo Anton Chekhov.

Em 1998, numa entrevista com Harry Smith da CBS News, a atriz conta que “deixar o teatro foi um grande sacrifício que fez pelos filhos.” Mas a mulher conhecida por conseguir imitar qualquer pronúncia adora o que faz.

“A personagem é completamente sua. A voz fica diferente. O corpo fica diferente. A pronuncia fica diferente. Como é que consegue?”, pergunta Harry Smith. A resposta de Meryl Streep é curta e simples: “Isso é ser atriz”. Na mesma conversa, conta que nunca poderia aceitar dar aulas de teatro porque não consegue construir um “método lógico” para o seu trabalho. O talento é nato e nasce de uma “grande e profunda crença” nas personagens que veste. Interpretar outras pessoas é “como voar”.

É logo na década de 70 que faz a transição para o cinema. Não demorou muito para ser reconhecida: em 1978 recebe o primeiro prémio da sua carreira, um Emmy de Melhor Atriz na série “Holocaust”. O primeiro filme veio um ano antes, com o papel de Anne Marie, no filme “Julia”. Seguiram-se “O Caçador”, “Manhattan” e mais duas interpretações até ao grande boom da sua carreira (e primeiro Óscar), ao lado de Dustin Hoffman, em "Kramer vs. Kramer". Aqui a atriz interpreta Joanna Kramer, uma mulher infeliz com o seu casamento que decide sair de casa e deixar o marido com o filho.

Já fez 82 filmes. É quase sempre a protagonista e nunca é igual: tanto pode interpretar uma figura real (como foi o caso de Margeret Tatcher, Miranda Priestly ou a chef Julia Childs),  como pode ser uma bruxa num filme de ficção (aconteceu em "Caminhos da Floresta") ou uma rock star como em "Ricki e os Flash".

É a rainha de Hollywood. Foi Karen em “África Minha” (1985). Já na década de 90 foi Madeline Ashton na comédia “A Morte Fica-vos Tão Bem” (1992) ou Francesca Johnson em “As Pontes de Madison County”, de 1995. Quando chega aos 40 — uma idade perigosa para as mulheres na indústria — está mais ocupada do que nunca. Em 2002 é Clarissa Vaughan em “As Horas”. Em 2008 é a freira Aloysius Beauvier no filme que fala sobre o assédio sexual na igreja, “Dúvida”. Seguiram outros papéis como Dona em “Mamma Mia!” ou Emmeline Pankhurst em “As Sufragistas”. Podíamos ficar o aqui o dia todo.

O currículo é extenso, sem pausas e está longe de estar fechado — vai integrar os filmes “Mary Poppins Returns” e “Mamma Mia! Here I Go Again”, que estão em fase de pós-produção. A atriz vai ainda fazer parte do elenco da segunda temporada da série “Big Little Lies”, ao lado de Reese Witherspoon e Nicole Kidman.

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Uma atriz com uma “vida privada”

Em 1981, depois de fazer a primeira capa na revista “Time”, foi descrita pelo jornalista da "Today", Gene Shalit, como uma atriz “muito privada”. Na altura com 37 anos, Meryl admitiu que gostaria de ser uma “grande atriz em segredo” e deixou claro o desconforto que sentia por uma indústria de cinema repleta de lutas de ego.

O casamento com o escultor Don Gummer fazia, nesta altura, quatro anos. Começaram por viver em Los Angeles, mas optaram por mudar: “Em LA eu era sempre ‘a Meryl Streep’. Sentia sempre a obrigação de estar no meu melhor, até para deixar os miúdos na escola. As pessoas olhavam para mim e eu sentia-me com péssimo ar e estava sempre a pensar que tinha de treinar mais ou de tirar o ponto negro que tinha na cara, ou então não arranjava trabalho”, conta. “Não consegui lidar com isso”.

Na conversa com Gene Shalit revelou que mesmo de peruca, e de costas, era reconhecida na rua. Disse que não podia sentar-se num “banco para observar pessoas” porque não se “podem observar pessoas que nos observam”.

Mudaram-se para Connecticut, local onde os quatro filhos cresceram: Henry, Mamie (também é atriz), Grace e Louise.

A revolta de Trump e a igualdade de género

A idade neste negócio “é cruel”, como disse em entrevista à apresentadora Oprah Winfrey em 2002, ao lado de Nicole Kidman e Julianne Moore. A atriz considerou, nesta altura, que o problema tinha duas faces: tanto vinha de Hollywood, como das próprias mulheres que se “desvalorizavam”. “Temos de parar isso”, disse. Sobre a omissão da idade, deixou claro que não devia acontecer: “ É uma forma respeitarmos quem somos.”

Em 1998 a "Times Magazine" publicou uma edição especial com os 100 artistas e entretainers do século. Da lista não fazia parte nenhuma mulher. Streep lamentou: “Eu gostava que houvesse pelo menos uma mulher”, disse a Harry Smith. “A Katherine Hepburn não viveu? Ou a Betty Davis?”.

Meryl Streep. A atriz mais privada de Hollywood bateu o recorde de nomeações para os Óscares

Em conversa com o “The Talks”, a propósito dos realizadores com quem já trabalhou, a rainha de Hollywood referiu que “gostaria que Martin Scorsese se interessasse numa personagem feminina”, apesar de achar que “não vai viver tempo suficiente para isso.”

Meryl Streep sempre falou da igualdade de géneros numa indústria onde as diferenças são flagrantes. Em 2017, interpreta um filme que volta a tocar na ferida com o filme de Steven Spielberg “The Post”, que relata a tensão vivida na decisão do jornal “The Washington Post” em publicar os documentos secretos do Pentágono que denunciavam o fracasso da Guerra do Vietname. Ela é Katherine Graham, a publisher do jornal, e uma das “poucas mulheres nessa posição”, numa altura em que se vivia “num mundo de homens.”

O filme toca noutra causa que Streep tem estado a defender: “Algumas das coisas que ouvimos o Presidente Nixon [no filme] dizer é o que ouvimos o atual presidente dos EUA dizer agora”, diz a jornalista do canal NBC, numa entrevista em que recebe a atriz e Tom Hanks. “Quando o Estado vai atrás da imprensa, pomos a democracia num lugar muito perigoso”, responde Meryl Streep.

Na cerimónia dos Globos de Ouro, em 2017, a atriz fez um discurso poderoso e emotivo: “Todos nós nesta sala pertencemos ao segmento mais vilificado da sociedade neste momento. Pensem bem: Hollywood, estrangeiros e a imprensa”, disse numa alusão aos ataques do presidente Donald Trump que tinha acabado de ser eleito. “Desrespeito convida o desrespeito. E violência só gera mais violência."

A atriz — que mais recentemente discursou no 27.º Prémio Internacional de Liberdade de Imprensa do Comité de Proteção aos Jornalistas em Nova Iorque — apelou nesta edição dos Globos de Ouro ao papel fundamental da imprensa: “Precisamos que a imprensa responsabilize o poder por todos os ultrajes”, disse. “E peço a Hollywood que se junte a mim para apoiar o Comité para a Protecção dos Jornalistas.”

Maryl Streep luta pela igualdade e pela liberdade. Tem sido uma voz ativa nas causas que têm marcado a atualidade, como a igualdade de género ou o assédio sexual em Hollywood — foi acusada de conhecer o historial de assédio Harvey Weinstein sem nunca ter dito nada, mas a atriz já veio desmentir.

Para a rainha de Hollywood, são muito básicas as coisas que de facto nos fazem felizes: amor, sexo e comida: “Tudo o resto — poder, influência, força — pode subjugar o que é importante na vida. Mas desde que haja comida, um teto em cima das nossas cabeças, se as nossas necessidades básicas forem respondidas, aquilo que nos faz feliz é na verdade muito simples.”