Uma das memórias mais vivas que o americano Alexandre Rockwell guarda da infância, tem que ver com as inúmeras vezes em que o ser criança lhe foi negado à força de cada vez que assumia a responsabilidade de cuidar do pai e de o levar para a cama quando o encontrava caído, inconsciente e perdido num abismo potenciado pelo vício do álcool. Essa memória — que devido à dureza, o tempo não deixa apagar — está agora vincada no seu mais recente filme independente "Sweet Thing", estreado esta quinta-feira, 22 de julho, em Portugal, ao abordar a vida de dois irmãos que, profundamente afetados pelo alcoolismo do pai e a negligência da mãe, fogem para se permitirem ser crianças outra vez.
"Viver num universo destes faz uma criança crescer demasiado depressa porque, de repente, e sem se estar preparado para isso, a criança passa a assumir o papel de um pai", explica-me Rockwell em entrevista.
Falamos de personagens que não existem fora do ecrã, mas que, na verdade, nos representam. A mim, a Rockwell e a tantos outros que direta ou indiretamente lidaram ou lidam com casos de alcoolismo severo na família.
"Quando vemos filmes sobre alcoólicos, o abuso e a violência são palpáveis, mas nem sempre é compreendida a complexidade da doença"
Em 27 anos de existência, tornou-se rotineiro acordar de madrugada com uma chamada que terminava sempre da mesma forma: com a frase "encontramo-la assim, caída" e com a certeza de que, depois disso, mais ninguém pregaria olho. Rotineiro passou, também, a ser a assimilação e algumas das artimanhas que pessoas alcóolicas usam para beber à vista de todos, mesmo que às escondidas.
Os pacotes de leite guardados no frigorífico escondem vinho no interior. As garrafas de água, mesmo as transparentes, não têm água. O lixo é deitado fora inúmeras vezes ao dia. Vale tudo para manter uma suposta normalidade que vai sendo dilacerada, às vezes durante anos, até culminar num pedido de ajuda ou em tragédia. Por isso, quando o realizador e argumentista Alexandre Rockwell, 64 anos, entrou na sala de Zoom que criei para a nossa conversa, a entrevista resultou numa estranha comunhão de uma dor comum que fez a distância — física, mas não só — encurtar-se.
"Quando vemos filmes sobre alcoólicos, o abuso e a violência são palpáveis, mas nem sempre é compreendida a complexidade da doença e a forma como as crianças conseguem amar alguém" que sistematicamente sucumbe àquele estado. É isso que vemos logo no arranque de "Sweet Thing", apresentado numa paleta de cores maioritariamente limitada ao preto e branco (com alguma cor irradiando aqui e ali), quando duas crianças são obrigadas a lidar com o pai (Will Patton) em mais um daqueles dias maus.
A forma como Rockwell filma o alcoolismo, e o abismo que engole todos os que lidam com a adição de perto, deambula entre o registo visceral e honesto, sem exacerbar ou julgar algo já de si horrendo. "O filme não julga nem dá nenhum glamour à doença. Quando aquele pai diz que os dois filhos foram a melhor coisa que ele alguma vez fez, o espectador sabe que está a dizer a verdade." A afirmação é bonita, mas há nela uma tristeza latente, porque marca os não raros momentos em que um alcoólico sabe do estrago que fez e que, muito provavelmente continuará a fazer.
"Há uma cena no filme em que os miúdos veem o pai a ser espancado no parque de estacionamento e lembro-me bastante bem de ser criança e sentir-me envergonhado e profundamente triste pelo meu pai." Uma criança que cresce neste caos já tem, ela própria, "uma dor muito sua, mas que ainda não compreendeu" porque tem de lidar com a da pessoa que é ou deveria ser o seu norte.
Fazer filmes como "uma espécie de terapia"
A ideia de fazer este filme, conta Rockwell, passou sempre por "transpor para o ecrã a inocência e a magia da infância, aquela altura da vida em que tudo é novo e mágico". Mas, continua, "queria contrastar isso com algum conformismo" e uma dura realidade. Quando os miúdos da história — que, na verdade, são os filhos de Rockwell — fogem e andam sozinhos pelas ruas, "voltam a encontrar esta sensação de felicidade e liberdade" que não encontravam em casa, De repente, veem-se livres do peso cada vez mais denso "de ter de cuidar do pai".
Tal como estas personagens, também o realizador arranjou forma de escape. Não fugiu de casa, não partiu à descoberta de nada, porque já sabia onde se reencontrar: na arte e no cinema.
"Entrava nos cinemas pela porta das traseiras, muitas vezes sozinho, e sentava-me nas salas a ver os filmes que iam passando. Às vezes adormecia e, quando acordava, começava a ver o que estava a passar na altura. Foi esse o meu mundo encantado ao qual sabia que podia recorrer e foi no cinema que encontrei a minha liberdade", explica. Por tudo isso, não tem pudor em admitir que fazer este filme (assim como outros) também foi uma "espécie de terapia" ainda que, assim que o começou a escrever, não soubesse exatamente de que forma iria acabar.
"Queria experimentar, mas não sabia o final. O guião estava mapeado, mas não totalmente escrito. A cada cena levantava uma questão que me permitisse explorá-la, mas não me interessava a resposta. Se a soubesse, não quereria fazer esse caminho." E o caminho é moroso.
Há cenas belíssimas, mas também muito duras, como quando o pai, alcoolizado, corta o cabelo à filha depois de uma discussão com a mãe. Na sua cabeça, é um ato de amor, mas o espectador sabe melhor do que isso.
"Foi uma cena muito difícil e tive de convencer o próprio Will Patton [o ator que faz de pai] a fazê-la. E a maneira que encontrei foi explicar-lhe que ia cortar o cabelo à filha [a personagem Billie] porque a amava, porque queria protegê-la da idade adulta". No entanto, também há nesse corte uma negação à feminilidade da filha. "O cabelo representa a beleza da mãe", que negligenciou os filhos, o próprio marido e apaixonou-se por um agressor.
Apesar da dureza da história, há resquícios de esperança em vários pontos do filme. Os dois irmãos, ao Deus dará entre a vida boémia e a tristeza de se acharem profundamente sozinhos, descobrem-se nessa nova oportunidade de ser crianças, com todos os riscos, desilusões e obstáculos a que uma vida sem rede obriga.
"Sweet Thing", nas salas de cinema portuguesas desde quinta-feira, 22 de julho, conta com um elenco composto por nomes como Lana Rockwell, Nico Rockwell, Jabari Watkins e Will Patton.