
Depois do enorme sucesso de "A Cicatriz", livro que emocionou milhares de leitores pela forma íntima e corajosa com que abordava temas como a dor, a superação e a saúde mental, Maria Francisca Gama regressou às livrarias no passado mês de maio com uma nova obra que promete repetir o impacto. Jovem autora e agora mãe de uma menina, a escritora portuguesa tem vindo a conquistar um público fiel que se revê nas suas palavras e na forma desarmante como transforma sentimentos em literatura, e não quer parar por aqui.
Agora, em "Filha da Louca", Maria Francisca Gama leva os leitores a mergulhar numa narrativa marcada pela intensidade emocional e pela procura de identidade, explorando as relações familiares, os silêncios e as feridas que moldam quem somos. Um livro profundo, honesto e provocador, que já está a conquistar leitores e que, segundo a própria autora, nasce da necessidade de dar voz a realidades tantas vezes escondidas. "Eu tento ao máximo que as personagens se assemelhem a pessoas, e portanto aquilo que as personagens vivem e sentem é o que me parece que os outros e eu vivemos e sentimos", começou por dizer à MAGG.
"Tenho essa preocupação de garantir ao máximo que cada personagem sinta as coisas de forma tão intensa que elas passem para o leitor e também o leitor as consiga sentir", acrescentou. No novo livro, a narrativa segue Matilde, uma jovem que viveu com os pais, Clara e António, até aos 18 anos, altura em que a mãe morreu. Sete anos depois, vê-se também sem o pai e é então, dois dias depois desta mudança abrupta, que descobre algo que vai mudar toda a sua vida. Mas há um outro grande foco ao longo de toda a história (que, na verdade, se interliga com o resto), que tem que ver diretamente com o título do livro.
Isto porque Matilde, é, para muitos, a "Filha da Louca". Sabe-se logo desde o início que Clara tem uma doença, e a parte arrebatadora do livro é que o leitor, se não chegar lá sozinho, também só vai descobrir nos agradecimentos, onde Maria Francisca Gama revela o nome da doença. No entanto, foi propositado, pois um dos objetivos da autora era mesmo fazer os leitores entenderem que "não somos os diagnósticos que vamos recebendo ao longo da vida", sejam eles de que área da saúde forem. "Ninguém se caracteriza por ter uma perna partida ou por ter um braço maior do que o outro e, portanto, as pessoas também não são a perturbação de personalidade que têm", explicou.
"Ainda que este diagnóstico tenha impacto na forma como se comporta, eu queria que a Clara fosse muito mais do que essa representação. Os meus livros não são feitos de personagens tipo, isso é o que aprendemos na escola e há obras que se adequam mais para esse conhecimento. E, para mim, o que eu queria era, por um lado, construir uma personagem que tem atitudes que as pessoas podem não compreender, que podem julgar, que podem achar erradas, mas, por outro lado, que sentissem empatia e percebessem que tudo aquilo é feito de um lugar de amor. E, às vezes, as pessoas que amam muito outras também fazem coisas erradas", acrescentou Maria Francisca Gama.
No entanto, este diagnóstico à mãe de Matilde não passou despercebido na vida da filha. No livro, há um momento específico em que o leitor percebe que a doença de Clara afetou profundamente a relação de Matilde com outras crianças, uma vez que todos os pequenos tinham a necessidade de se afastar dela por ser a "Filha da Louca". Integrar este tipo de comportamento das crianças numa obra repleta de emoções e tensão não foi fácil, mas se há coisa com que Maria Francisca Gama trabalha é com a verdade. E a verdade é que as crianças conseguem, por vezes, ser más, mesmo que ingenuamente.
"Nós somos pequenos e depois adolescentes, uma das coisas que mais queremos é ser o mais parecido possível aos outros. Porque na diferença, muitas vezes, está a exclusão, está o ser afastado, e nós crescemos com uma ideia daquilo que deve ser uma família e do que deve acontecer dentro de uma casa. Mas a verdade é que há milhares de crianças, por este País fora, que dentro de casa não têm um lar feliz, e fora aquilo que essas crianças vivem dentro de casa, têm ainda esta questão de, na escola, se os outros se apercebem disso, infelizmente muitas vezes é utilizado contra eles. É mais um motivo para serem excluídos. E eu queria um bocadinho aqui mostrar que realmente é muito duro para quem vive com alguém que tem uma perturbação", explicou.
Mas não é só isso que o leitor percebe no novo livro da escritora. Algo que muitas vezes os adolescentes começam a fazer é tirar os pais do pedestal que os meteram quando eram crianças, uma vez que se começam a aperceber de que também os seus pais são só seres humanos que estão a viver pela primeira vez. Erros são cometidos, mentiras são contadas e sonhos são rapidamente trazidos até à realidade, e nem tudo é um mar de rosas. "Quando escrevia algumas das coisas do livro, aquilo que eu pensava sempre era que eu estava de alguma maneira a descrever muitas casas em que as mães ou os pais não estão tão bem", começou por Maria Francisca Gama.
"Que não conseguem providenciar aquilo que os filhos esperam deles e que a sociedade espera que eles deem aos filhos. E isso não é porque nós não queremos ver que deixa de acontecer", continuou, acrescentando que a figura do pai na narrativa é um exemplo perfeito de que, numa casa, nem tudo é aquilo que idealizamos ser. "Acho que a dúvida que fica no leitor é se este pai não amava mais a mulher do que a filha. E isso também tem uma camada de de doloroso. Nós crescemos a ouvir que os nossos pais nos amam mais do que tudo no mundo, e depois, às vezes as coisas não são bem assim", disse. No entanto, como explicou a escritora lá atrás, "as pessoas que amam muito outras também fazem coisas erradas".
Desta forma, "Filha da Louca" não se limita apenas a explorar a dor e os dilemas familiares, conduzindo o leitor até um desfecho que, em vez de dar respostas fáceis, abre espaço para a reflexão. A escolha final de Matilde é um daqueles momentos que dividem opiniões e que prolongam a história para além da última página porque, de certa forma, obriga cada leitor a pensar no que faria no lugar dela. "Uma coisa boa da decisão que a Matilde tomou é que é reversível. E eu gosto dessa incerteza que fica no leitor, de nós pensarmos 'e se a personagem tivesse feito o contrário?'. Acho que muitos leitores gostariam que a personagem tivesse dito que sim, mas também acho engraçado que depois o leitor tende a pensar que se fosse ele, será que dizia mesmo que sim?", questionou a escritora.
Mas, para que fique claro, o principal objetivo do livro é só um: ser uma mensagem de esperança. "Ainda que o livro possa não parecer esperançoso, é preciso saber que o diagnóstico não é nenhuma sentença. Nós muitas das vezes na pressa dos dias, nas nossas vidas egoístas, não temos tempo para olhar para o outro e ao ver que qualquer coisa não está bem dar-lhe a mão perceber de que forma podemos ajudá-lo. Uma das piores coisas do mundo é nós acharmos que estamos sozinhos na nossa dor e que não há nenhuma família que seja como a nossa, porque isso não é verdade", rematou.
"Filha da Louca" foi publicado pela Suma de Letras, chancela da Penguin Random House Grupo Editorial, e está à venda por um custo de 15,08€.