Vamos diretos à (triste) realidade: em Portugal, os hábitos de leitura das crianças e jovens roçam o inexistente, o que leva a consequências tão preocupantes como a dificuldade em interpretar o texto de um teste, ter um vocabulário vasto e perceber que o português do Brasil não é o utilizado no nosso País (obrigada, YouTube, só que não).
Numa era em que os jovens são engolidos na facilidade de redes sociais, ecrãs, jogos de computador, Netflix e que tais, como é que os livros e a leitura conseguem ganhá-los para uma atividade, à partida, muito menos dinâmica? "A lutar com as mesmas armas", diz Nuno Caravela, 55 anos, autor e ilustrador da coleção "O Bando das Cavernas", um projeto infantil com mais de um milhão de livros vendidos em Portugal, cujo 42.º livro chegou recentemente às livrarias, "O Bando das Cavernas: Com Garras e Dentes" (editado pela Booksmile, 11,95€).
Foi em 2012 que tudo começou, com um convite da editora. "Edito desde 1992, comecei com 25 anos, altura em que editei os meus primeiros trabalhos. Em 2012, fui desafiado a escrever uma coleção infantil com uma premissa principal: pôr os miúdos a ler com gosto", conta Nuno Caravela à MAGG. "A partir daí, tive carta branca", recorda o autor sobre o projeto direcionado para crianças entre os 7 e os 12 anos (embora possa falar para miúdos mais novos e mais velhos).
O objetivo daquilo que viria a ser a coleção "O Bando das Cavernas" era estimular a imaginação das crianças e tornar o projeto o mais intemporal possível. "Não queria que tivesse um marco temporal muito presente e perdesse a relevância daqui a uns tempos. Assim, só tinha duas hipóteses: ou ia muito para o futuro ou muito para o passado, daí a questão da pré-História", refere o autor, justificando a escolha desta época onde se passa toda a ação da coleção.
"É uma forma de ir ao encontro dos miúdos, mas também dos pais"
Apesar de a pré-História ser a época escolhida para este projeto, esta é uma era muito diferente daquela a que estamos habituados. Afinal, os personagens têm computadores de pedra, navegam no Facepedra e usam um iPedra — e nada disto é ao acaso.
"Achei giro fazer esta dualidade entre a pré-História e os objetos de atualidade, dado que é uma forma de ir ao encontro dos miúdos, mas também dos pais. Foi também a forma que encontrei para transmitir o que queria, jogando com os interesses deles", salienta Nuno Caravela.
O "bando" não é só uma coleção, mas sim uma forma de transmitir conhecimento e valores aos mais jovens. "Cada personagem tem a sua maneira de ser, e isto é algo de fundamental no bando, eles têm muito pouco de pré-histórico na sua atitude. A coleção é pautada por valores de cidadania, comportamentais, que todos os miúdos devem ter, que são transmitidos não de uma forma direta, mas através de uma aventura, de uma história, sem se falar diretamente no assunto", diz o autor, que acredita que essa forma mais discreta é a chave.
"Acho que é esse um dos segredos, os leitores aprendem sem ser uma obrigação. através das personagens e de um jogo linguístico. Quero que eles se esqueçam de mim, que esqueçam que sou eu a escrever. O objetivo é que sejam as personagens a falar com eles, numa linguagem muito próxima da deles, no mundo deles, e através do relato de uma aventura", refere Nuno Caravela.
E os pais não são esquecidos. "Gosto sempre de piscar o olho aos pais, para existir aqui uma ligação entre gerações quando adultos e crianças leem juntos. Já fiz referências a personagens históricas como Fernando Pessoa e Almada Negreiros, para dar aqui dois exemplos, e apesar de o livro explicar quem foram aquelas pessoas, o objetivo é que os pais estejam lá para responder a essas questões, para estimular o diálogo. Sem esquecer que, daqui a uns anos, inevitavelmente, as crianças vão aprender sobre essas personagens e vão conseguir fazer uma ligação, algo como 'espera lá, que li isto quando era miúdo'. E acho isso fantástico."
Como é que ajudamos os miúdos a escolherem livros em vez de ecrãs? "A lutar com as mesmas armas"
Em 1982, Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada lançavam o primeiro volume da coleção infanto-juvenil "Uma Aventura", um projeto que existe até aos dias de hoje, com 66 livros editados. Quem cresceu nos anos 80 e 90 tinha, com quase toda a certeza, pelo menos um livro destes em casa. No entanto, os tempos eram outros, e os livros — estes e outros — não tinham os ecrãs como adversários.
"Quem me dera a mim que o bando conseguisse chegar a essa longevidade, que já ultrapassou os 40 anos. E pode ser que consiga lá chegar, vamos ver. Mas, na altura, não existiam distrações. Hoje em dia, os livros têm de lutar com as mesmas armas que os jogos de computador, filmes, séries, etc. Os livros não têm movimento nem som, e têm de jogar com a imaginação de quem lê", salienta Nuno Caravela.
E é por isso mesmo que nada n' "O Bando das Cavernas" é ao acaso. "É tudo muito colorido, muito animado. Os livros têm dinâmica, são expressivos, há imagens vivas, textos inesperados, jogos de palavras. É esse inesperado que vai conseguir deixar os miúdos na dúvida, e levá-los a pensar algo como 'jogar consola é giro, mas este livro também é muito giro'. Também tento [para além de autor, Nuno Caravela é também o ilustrador dos livros] contar uma história paralela nas imagens, e colocar lá umas que não têm rigorosamente nada que ver com a história. E assim há crianças a ler os livros duas e três vezes para descobrir a história escondida. "
Esses regressos aos livros ajudam a que os hábitos de leitura fiquem mais intrínsecos nos mais novos. "As segundas leituras demoram mais um bocadinho e não tem de ser tudo a correr, tal como acontece com os ecrãs. O livro é ao nosso ritmo, e é isso que tento transmitir, que ler não é uma corrida", refere o autor.
No entanto, Nuno Caravela salienta que os ecrãs e os livros não têm de ser obrigatoriamente inimigos. "Temos de nos aproximar o mais possível das coisas que os miúdos gostam e complementar. É isso que o 'bando' está a fazer e acho que é por aí que é o caminho. Não vale a pena lutar contra a maré, mas sim juntar as coisas. Por exemplo, temos um livro da coleção chamado 'A Lenda dos Pixels', onde a capa é um Minecraft das cavernas, e as crianças identificam logo o jogo. O truque é atrai-los com coisas que conhecem, com capas e títulos apelativos, mas que depois, com a aventura, transmitir-lhes mensagens, valores", conclui.
"O Bando das Cavernas 42 - Garras e Dentes" já está à venda. A coleção, da autoria de Nuno Caravela, conta com mais de 50 de títulos publicados (42 na coleção principal, 11 na série "Heróis do Mundo" e duas novelas gráficas).