Vê-se que Andreia Vale gosta de palavras. É um facto, que se justifica com dois argumentos muito sólidos. Em primeiro lugar, a autora é jornalista e, portanto, tem na base do seu trabalho as histórias, que sem palavras não existem.
Em segundo lugar, depois de lançar "Puxar a Brasa à Nossa Sardinha" e "Cruzes Credo, Bate na Madeira" — o primeiro onde dá sentido a expressões que muitos de nós usamos de forma quase inconsciente, todos os dias, o segundo onde justifica superstições comuns —, a autora junta à sua bibliografia "Da Boca para Fora", onde explica o significado e a origem de mais de 100 palavras. A autora mistura dados factuais (etimologia, evolução e alteração do sentido) com eventos mais emotivos, como aqueles em que nos narra as situações para onde os diferentes vocábulos a remetem.
Da "saudade", ao "beijo", "porra", "fixe" ou "foda-se", a MAGG reuniu nove exemplos de palavras que vêm no livro "Da Boca para Fora".
Saudade
A primeira palavra sobre a qual Andreia Vale fala é a mais portuguesa de todas, “tão intima e única”, tão “melodiosa e meiga”. Não existe uma tradução literal para este termo, porque o termo encerra em si mais do que um significado, ainda que sempre ligado às emoções e sentimentos, aqueles que são desencadeados pela falta que alguma coisa, alguma pessoa, algum momento, algum tempo da vida, nos faz.
Mas, como diz a autora, vamos a “factos e coisas concretas”: “A palavra vem do latim, solitate, que significa ‘solidão’. Das formas arcaicas ‘soidade’ e ‘soudade’, passando pela influência de 'saúde' e 'saudar', chegamos à palavra actual”, explica. “Traduz‑se por um sentimento de mágoa e nostalgia, causado pela ausência, desaparecimento, distância ou privação de pessoas, épocas, lugares ou coisas a que se esteve ligado e que se desejava voltar a ter, ver, ouvir ou sentir.”
Pindérico
Um termo popular, que se aplica várias vezes no momento de fazer apreciações ao sentido estético de alguém.
Sobre a origem da palavra, Andreia Vale explica que o termo é relativo ao poeta grego da Antiguidade Píndaro, de 522 a.C. “No blogue Contra Sereno Desespero, é explicado que a palavra pindérico terá uma relação com o adjetivo pindárico, que significa aquilo que se relaciona com o estilo de Píndaro, i. e., um estilo muito cuidado”, pode ler-se “Outras palavras derivam do mesmo étimo, como pindarizar e pindarista. A primeira significa louvar exageradamente, a segunda aquilo que é parecido com a natureza das poesias pindáricas e depreciativamente bajulador.”
A jornalista conclui, então, que “pindérico pode ter surgido como uma variação, no sentido pejorativo ou burlesco, de pindárico”, afirmando ainda que “aquilo que tinha o sentido de magnífico, excelente, tendo em conta o estilo de Píndaro, ganha um cariz mais trocista e passa a ser usado, de forma popular e corrente, para nos referirmos a alguém ou a alguma coisa que é mais pobre, pirosa, foleira.”
Beijo
Vem do latim ‘basium’. Andreia Vale dá conta da antiguidade da palavra (com significados ligeiramente diferentes), ainda que não se consiga precisar o momento do seu nascimento.“Há textos que remontam até 3000 a. C. que falam de beijar como o ato de inalar a alma um do outro”, começa por explicar. “Na Grécia Antiga beijava‑se e os romanos até tinham três tipos de beijos: o basium, trocado entre conhecidos; o osculum, dado apenas a amigos íntimos; e o suavium, o beijo dos amantes.”
Épico
A festa foi épica. O jogo foi épico. O discurso foi épico. Utilizamos este termo com regularidade. Mas qual é a verdadeira origem desta palavra que adotamos da caracterização de feitos históricos?
“A palavra ‘épico’ vem do grego epikós e, em sentido figurado, significa heróico, grandioso, extraordinário. A palavra é relativa a epopeia, que é um poema épico, heróico, que narra as ações e os feitos de um herói que representa um grupo. As mais conhecidas são a Ilíada e a Odisseia, baseadas na guerra de Tróia”, diz.
Pachorra
“O dicionário diz que pachorra é a capacidade de suportar contrariedades, dificuldades e imprevistos com calma e tranquilidade. O mesmo que paciência, sendo que paciente (aquele que tem paciência) vem do latim patiens, aquele que sofre.”
E de onde vem “pachorra”? “Vem do castelhano pachorra, de pacho, ‘indivíduo lento e fleumático’, significa fleuma, indolência, e também pode ser falta de diligência ou de pressa, vagar, lentidão.”
Prostituta e puta
Entramos no departamento dos palavrões. Andreia Vale refere várias fontes e interpretações. Comecemos pela mais atual: puta, segundo o dicionário, vem do latim prostituta, palavra que, de acordo com Sérgio Luís de Carvalho, no Dicionário de Insultos, "virá do latim pro‑statuare, que quer dizer parado(a) ou exposto(a)”, refere. “Como diz o autor, no caso de prostitutas associadas aos templos, ‘ganharam o termo que as define pela sua postura de espera, paradas, em locais mais ou menos públicos’".
Por outro lado, a palavra 'puta', segundo afirma Rafael Bluteau no Vocabulário Português e Latino, editado em 1712, nem sempre terá tido uma conotação negativa: "O termo ‘puta’ “chegou a ser ‘um vocábulo honestíssimo’, sinónimo de ‘moça puríssima e limpa’”, diz a autora, citando Bluteau.
O significado foi mudando com o tempo, num processo de “corrupção”, como descreve Andreia Vale, que considera que o termo “terá passado a significar prostituta, de modo a ‘encobrir a fealdade do vocábulo meretriz ou de outro igualmente feio’".
Sérgio Luís de Carvalho refere, no entanto, que a etimiologia da palavra é incerta, sendo que poderá vir do latim “putus”, que partindo do puro e brilhante, “dá origem a menino, rapazinho, e do masculino puto passamos ao feminino puta, mas mais não seriam do que rapaz e rapariga. Só mais tarde a última ganha conotação negativa.”
Acrescenta: “Uma outra hipótese, referida por outros autores, é a de que o palavrão se trata de uma derivação do verbo putere, que em latim significa estar deteriorado ou cheirar mal.”
Caralho
É referente a pénis. Porém, a sua origem é incerta. “Apesar de não se saber ao certo de onde terá vindo a palavra caralho, pensa‑se que terá tido origem no espanhol carajo, uma expressão que pode designar um pau ou uma parte específica de um navio — a vigia, o lugar mais elevado de uma embarcação, a cesta no alto dos mastros das caravelas, que para além de postos de vigia eram postos de castigo, logo, ir para o caralho era algo negativo”, escreve a autora.
“A palavra, 'muitíssimo frequente na Península Ibérica', pode ter 'uma origem ainda anterior à romanização', defende João Paulo Silvestre, num artigo do Ciberdúvidas.”
Há mais possibilidades: no mesmo artigo, João Paulo Silvestre refere que o termo poderá ser anterior à romanização.
Foda-se
“A expressão não é uma invenção moderna. José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, uma das poucas obras dedicadas à etimologia portuguesa, refere que o verbo foder — do qual provém a palavra foda‑se — vem do latim futere, que significa ter relações sexuais ou praticar o coito”, explica Andreia Vale.
A palavra é antiquíssima. “Ainda de acordo com José Pedro Machado, o termo aparece em textos desde o século XII, não se sabendo ao certo quando terá sido cunhado.”
Porra
Mais uma espécie de palavrão de origem incerta, mas com hipóteses surpreendentes. E se lhe dissermos que a chegada do termo a Portugal poderá ter vindo com uma família castelhana de apelido Porra?
“Na obra Origem da Lingua Portugueza, publicada no século XVII, o historiador Duarte Nunes de Leão refere que o termo é de origem árabe. Porém, a teoria mais consensual é a de que a palavra terá surgido em Espanha. Segundo Rafael Bluteau, durante o reinado de D. Afonso V (1432‑1481), terá chegado a Portugal uma família de nobres castelhanos de apelido Porra, cujo brasão apresentava cinco maças (armas) com cabos verdes sobre um campo dourado.”
Agora, outra dúvida: o que estamos, objetivamente, a dizer quando proferimos o termo ‘porra’? Mais uma surpresa: “No Vocabulario Portuguez e Latino, Bluteau explica que a palavra porra é nada mais, nada menos do que o diminutivo da palavra cachaporra, uma espécie de pão que é mais grosso numa ponta do que na outra”, diz Andreia Vale.
Há mais sentidos. “De acordo com a definição de Eduardo Nobre, no Dicionário de Calão, na gíria popular porra serve para descrever o órgão sexual masculino, podendo também significar pau ou bastão. A semelhança com o alho‑porro, que é um vegetal com forma fálica, também não é coincidência.”
Meme
Uma palavra que nos chegou ao vocabulário com as redes sociais, porque é por lá que somos confrontados com estas imagens cómicas que satirizam momentos da vida real, com pessoas reais, com bonecos animados ou até vídeos. Quem nunca se sentiu o John Travolta de braços a abanar, desorientado com a vida? Exato. Somos todos John Travolta.
No entanto, o termo é mais antigo do que pensamos. ”O termo vem do grego mimema, que tem a mesma raiz de mimese e que significa imitação, e depois do inglês mimeme, que por aférese ficou meme e que depois levámos por empréstimo para o português”, explica a autora. "Pedro Paulos explicou que os memes são assim. Organismos em propagação e, em muitos casos, mutação. Geralmente surgem por acaso, da criação aleatória de um anónimo. Essa criação solitária não é um meme porque não existe fenómeno. É a continuidade por terceiros e a relação que estes têm com o fenómeno que dá o estatuto ao meme e que o manterá vivo até que deixe de ser pertinente para a comunidade online.”
Fixe
Já em 1933 se ouvia a palavra “fixe”, pelo menos da boca de Vasco Santana, no filme “Canção de Lisboa”: “Já vou beber? Então fixe”, cita Andreia Vale.
A jornalista explica que não há consenso relativamente à origem — ou entendimento — desta palavra. "Por exemplo, o dicionário (Infopédia) diz isto: do francês fixe–, 'fixo, imóvel, invariável' (se bem que o fixe em francês se leia /ks/).”
Fará isto sentido, tendo em conta os contextos em que aplicamos a palavra, associados a satisfação ou entusiasmo? “Com esta explicação não percebo como é que de uma coisa fixa, imóvel, passamos para uma coisa que é boa, agradável, simpática e que quando usada com exclamação 'exprime prazer, entusiasmo, satisfação, alegria' e que significa «excelente!, óptimo!, maravilhoso!'".
Bué
O significado do termo não se alterou. Apenas atravessou mares e fronteiras. “A palavra vem de Angola e é de lá que traz o seu significado (muito), mas também se usa em Cabo Verde e Moçambique, onde significa cumprimento”, diz. “No calão de Luanda (Angola), tem o significado do termo francês beaucoup e é com esse sentido (muito) que a usamos muito hoje em dia. Que é como quem diz, usamos bué."