Portugal ficou em choque com a morte de Sara Carreira, este passado fim de semana. A jovem cantora morreu na sequência de um aparatoso acidente de viação na A1, este sábado, aos 21 anos. Filha de Tony Carreira, Sara era um fenómeno nas redes sociais, e tinha lançado a sua carreira a solo no mundo da música em 2019. Podendo ser também classificada como influenciadora digital, a jovem tinha acabado de lançar uma marca de roupa em parceria com a estilista Micaela Oliveira, dado que a moda era outra das suas paixões.

A vida de Sara Carreira, que tinha cerca de 350 mil seguidores só no Instagram, era observada de perto por uma numerosa legião de admiradores através das redes sociais, essa janela aberta para o mundo, que nos faz sentir parte integrante do dia a dia de tantas celebridades. A jovem cantora era um ídolo para muitos dos seus fãs, inegavelmente de faixas etárias mais jovens, como crianças e adolescentes, que foram abalados pela notícia da morte de Sara.

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Apesar de esta morte estar a tocar o coração de muitos portugueses, mesmo de quem não seguia a carreira da cantora — não deixa de ser uma jovem de 21 anos, cuja vida foi ceifada num segundo —, pode ser sentida de forma mais dolorosa por estes jovens que a tinham como ídolo, mesmo nunca tendo conhecido pessoalmente Sara Carreira? Podem estas crianças e adolescentes ter necessidade de fazer um luto real, tal e qual como se tivessem perdido uma pessoa da família ou mais próxima?

"Sim, sem dúvida", afirma Sílvia Botelho, psicóloga na Academia de Psicologia da Criança e da Família, à MAGG. "Os mais jovens podem, de facto, sentir estas mortes porque se identificam muito com os ídolos, seguem-nos nas redes sociais, focam-se muito no que estes mostram ao público. Vão sofrer com a perda, e senti-la como uma perda real, é uma perda real, aliás. Mesmo que nunca tenham conhecido essas pessoas, mesmo que nunca tenham estado com elas fisicamente, acompanhavam a vida delas, gostavam da sua forma de estar. É óbvio que não é linear, cada caso pode diferir de outro, mas há crianças e adolescentes que vão sentir esta perda como se fosse a de um familiar."

silvia boteho
Sílvia Botelho é psicóloga clínica na Academia de Psicologia da Criança e da Família - Apsicf

Catarina Graça, psicóloga na Clínica da Mente, também concorda que estas perdas podem ser muito sentidas pelos fãs, e salienta que as redes sociais ajudam — e muito —, para que tenha sido criado um elo de ligação entre ídolo e fãs. "Há muitas celebridades a partilharem muita coisa da sua vida nas redes. Os stories então, são uma partilha próxima, e os mais jovens vivem isso minuto a minuto. É normal que uma morte destas conduza a um processo de luto natural em quem a seguia", explica à MAGG.

"Lembro-me de ter vontade de ir ao funeral dele"

Infelizmente, a morte de Sara Carreira não foi a primeira a chocar as gerações mais jovens. A notícia do acidente da cantora trouxe imediatamente à memória dos portugueses as mortes do ator Francisco Adam e do também cantor Angélico Vieira, ambos ídolos da geração "Morangos com Açúcar", ambos vítimas fatais de acidentes de viação.

Um ídolo para muitos jovens, a morte de Francisco Adam em 2006 chocou esta geração, da qual fazem parte duas jornalistas da equipa da MAGG, ambas com 22 anos. "Tinha oito anos na época, e lembro-me que tinha ido passar a Páscoa ao Alentejo com os meus pais. Cheguei à sala depois de uma sesta e vi que o Dino [personagem de Francisco Adam na série juvenil da TVI] tinha morrido. Fiquei muito triste, tive a perfeita noção do que aconteceu, e lembro-me de ter vontade de ir ao funeral dele porque, enquanto criança, achava que tinha de me despedir de uma pessoa de quem gostava tanto", recorda Mariana Carriço.

Para Mariana, esta é uma morte que a marca até hoje. "Apesar de ser uma pessoa que eu não conhecia, era alguém que eu via todos os dias na televisão, estava presente no meu dia a dia. Foi um choque para a minha geração. Ainda hoje, quando vejo o vídeo do balão, que marcou a despedia na série, fico muito emocionada."

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Rafaela Simões, que também tinha oito anos na altura da morte de Francisco Adam, recorda que o episódio trágico a marcou muito, e realça a pouca importância que os familiares deram ao tema. "Via religiosamente os 'Morangos' sempre que chegava da escola e vivia a série no meu dia a dia e brincadeiras. Lembro-me que estava a brincar com uma amiga em casa da minha avó quando soubemos da notícia. A minha avó também estava presente, mas por não estar familiarizada com o ator deu pouca importância."

A jornalista lembra-se de ficar em silêncio em frente a sua casa, na companhia de uma amiga, e de ambas começarem a chorar. "Cheguei a pensar porque é que estava a chorar por alguém que não conhecia. Logo na altura, recordo-me de refletir no quão jovem ele era para morrer e de assumir na minha cabeça que tinha de aproveitar a vida, porque no caso do Dino, ele não teve essa oportunidade. A notícia chocou na altura, mas o impacto foi maior para nós, jovens, que acompanhávamos a série. Isto porque, além da minha avó, também a minha mãe não me explicou a morte. Viu a notícia como qualquer outra desgraça nas notícias, e não se apercebeu do impacto que isso teve para os mais jovens."

O que podem os pais fazer? Não desvalorizar o sofrimento

Uma morte nunca é fácil de digerir, independentemente das circunstâncias, muito menos quando se tratam de pessoas tão jovens, admiradas também por fãs de tenra idade. No entanto, Catarina Graça, psicóloga, alerta que o maior ou menor sofrimento, ou a maneira como as crianças e jovens reagem a este tipo de tragédias, "não tem necessariamente que ver com a idade".

"Depende muito da bagagem deles, se já existiu uma perda na família, se existiu uma preparação para o tema morte. Aliás, acho mesmo que, mais que a idade dos fãs, importa ter noção se estes jovens já têm consciência do que é a morte", salienta Catarina Graça. Para a psicóloga, "quanto mais cedo os pais tiverem um trabalho de consciencialização dos filhos, de lhes transmitir que a morte é um processo natural, melhor será para estes conseguirem digerir a notícia".

catarina graça
Catarina Graça é psicóloga clínica na Clínica da Mente

Sílvia Botelho, que concorda que mais do que a idade ser fator para a reação à notícia, importa a maturidade de cada jovem, e acrescenta que, caso seja possível, é vital que sejam os pais a transmitir o que se passou. "Não é fácil, porque hoje em dia há acesso a notícias em todo o lado, mas caso os miúdos ainda não saibam, é sempre melhor serem os pais a contar. Para além disso, não devem desvalorizar o sofrimento destes, devem-lhes transmitir que é normal estarem tristes, e mostrarem-se disponíveis para oferecer carinho, um abraço, ou esclarecer dúvidas. Mas é importante que passem aos miúdos que sofrer é natural, e os adultos não podem saltar este passo, ou anular o sofrimento dos filhos", esclarece a especialista.

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A psicóloga Catarina Graça insiste que os adultos têm de perceber que, mesmo que seja difícil de compreender na totalidade, estes ídolos faziam parte da vida dos filhos. "Mesmo que os miúdos não conhecessem o ídolo pessoalmente, esta era uma pessoa que acompanhavam diariamente nas redes sociais, faziam parte da vida deles. Os pais não podem desvalorizar o sucedido, devem conversar sobre o tema, e valorizar a dor dos filhos para esta ser ultrapassada de forma saudável e mais fácil."

É importante "descer os ídolos à terra" — e estar atento a sinais de alarme

Apesar de muitos jovens olharem para estes ídolos como deuses, no processo de assimilar uma morte é importante fazer as crianças e jovens entenderem que se tratavam de seres humanos, tal e qual como todos nós.

"Há que desmistificar aquela ideia de deus e tentar humanizar os ídolos, fazer as crianças entender que não pessoas encantadas que estão na televisão, mas pessoas como nós, que tomam o pequeno-almoço, que têm os seus problemas e que também morrem", descreve a psicóloga Sílvia Botelho.

No entanto, e apesar de uma tristeza inerente e óbvia ser natural e saudável, os pais devem estar atentos a possíveis quadros mais graves. "Os miúdos, por vezes, identificam-se tanto com estes ídolos, vivem as suas vidas, vestem-se de igual, que há que estar muito atento a possíveis mudanças de comportamento no seguimento de um acontecimento trágico, que obviamente os perturba. Se uma criança agitada e muito curiosa perde o interesses nas atividades que sempre gostou, se um miúdo mais fechado de repente está muito extrovertido e agitado, tal pode ser um sinal de alarme, levando a um sofrimento mais pesado do que seria esperado. Nesses casos, pode ser útil procurar ajuda profissional", alerta a especialista.

"É normal estar triste, sentir dor, chorar. Se de repente uma criança entra num estado mais depressivo, só fala em morte, deixa de fazer as coisas que gostava, não quer ir às aulas, não quer comer, tem dificuldades em adormecer e não retira prazer de nada, isso é um estado a que os pais devem estar atentos e agir", conclui Catarina Graça.