Quando pensa nas brincadeiras que tinha em criança, que memórias lhe vêm à cabeça? Provavelmente tardes a brincar num parque infantil ou a correr pela rua, sem preocupações da hora de voltar para casa porque, mais cedo ou mais tarde, a mãe haveria de ir até à janela para avisar que o jantar estava na mesa. Mas este cenário tem vindo a desaparecer com o passar dos anos e as brincadeiras na rua foram substituídas por horas na escola, a jogar consola ou a ver televisão.

Hoje em dia, os miúdos têm rotinas pré-estabelecidas, horários para tudo, atividades a todas as horas — sendo, muitas delas, dentro de quatro paredes —, e o tempo que passam na rua, a brincar ao ar livre, é cada vez mais reduzido. De acordo com uma investigação publicada em 2018 pela Escola Superior de Educação de Coimbra, apenas 2% das crianças com menos de dez anos têm o privilégio de brincar ao ar livre. Contudo, é algo que, de acordo com os especialistas, os pais parecem querer mudar.

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“Os pais parecem estar cada vez mais conscientes desta mudança [de que as brincadeiras não fazem parte do quotidiano das crianças] e, assim, 41,2% afirma que gostaria de mudar esta realidade e que a rua fosse o principal local de brincadeira.”

Se assim o é, então porque é que as crianças continuam a não brincar na rua e se limitam, tal como comprovado pela investigação, a brincar apenas na escola (53,8%), ou em casa (30,4%)? De acordo com Carlos Neto, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa (UL) e autor de vários livros sobre o tema, incluindo o recente “Libertem as Crianças” (Contraponto Editores), existem várias razões que justificam esta mudança. Uma delas prende-se com a industrialização das grandes cidades.

“Por outro lado, houve um urbanismo progressivamente caótico que aglomerou seres humanos em grandes cidades o que, de algum modo, foi afetando as transições e as conexões, entre os espaços naturais e verdes. Além disso, aumentou também o tráfego automóvel”, começa por explicar o professor, falando também numa questão que preocupa os pais: os perigos de brincar na rua. “Não há mais perigos do que há quarenta anos. Existem é mais automóveis e as cidades tornaram-se quase impossíveis de serem habitadas por crianças.

O especialista explica também que, nos dias de hoje, os pais têm cada vez mais medo de tudo o que se passa fora do ambiente escolar e de casa. Segundo Carlos Neto, os pais temem pelo que possa acontecer aos filhos caso lhes dêem alguma independência.

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“Há uma progressiva situação de medo parental, de superproteção parental, que surge devido à ideia e à representação mental que os pais têm de que há muitos perigos em relação à autonomia que os filhos possam ter na sua independência, de poderem ir a pé para a escola, ou descerem à rua para poderem estar com os amigos”, explica, e vai ainda mais longe dizendo que este medo veio para ficar, especialmente com a pandemia. “O medo veio para ficar em relação à habitação, à escola, à rua, existe medo em todo o lado e, com a pandemia, agravou-se.

A importância de brincar na rua.

Este receio, garante, é ainda mais exacerbado pelo excesso de informação que chega aos pais através dos orgãos de comunicação social e das redes sociais. Tudo isto leva os pais a impedirem que os filhos andem livremente e tenham a oportunidade de experienciar tudo o que está à sua volta. Isto, garante, leva a que as crianças deixem de se identificar com o local onde vivem, já que não o podem explorar nem conhecer livremente.

Contudo, Carlos Neto garante à MAGG que nada disto implica que tenhamos piores pais, professores ou escolas, mas sim que, cada vez mais, as crianças estão limitadas a atividades completamente organizadas e estruturadas, o que lhes retira a possibilidade de aproveitarem os seus tempos livres, idealmente, ao ar livre.

“O número de horas de atividades completamente organizadas e estruturadas aumentou significativamente em relação às horas não formais, isto é, às horas de tempo livre, por isso as crianças têm pouco tempo para brincarem e viverem a sua infância de forma plena”, diz o autor. “Há uma urgência de brincar e ser ativo e precisamos de devolver a rua às crianças e de lhes dar mais possibilidade de terem contacto com a natureza.”

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O que há, então, a fazer? Carlos Neto começa por dizer que é preciso dar tempo às crianças para, nas suas palavras, “serem crianças”. Quer isto dizer que as crianças precisam de ter tempo para aprender a descobrir, experienciar e assimilar o conhecimento fora da escola. “O conhecimento não se faz apenas sentado e quieto, até porque o estar sentado é uma das piores pandemias deste século”, garante o professor. “O conhecimento adquire-se de uma forma ativa, através de um corpo, experimentando coisas, observando aquilo que a natureza oferece de forma natural.”

Ao estarem em contacto com a natureza e ao ar livre, as crianças conseguem desenvolver capacidades que, fechadas dentro de quatro paredes, tendem a adquirir de uma forma mais mecânica. “Termos crianças que sabem pensar, resolver problemas, que sabem comunicar em grupo e que até podem ir buscar conhecimentos aos dispositivos digitais, porque eles vieram para ficar, mas não devem estar dependentes deles”, acrescenta Carlos Neto.

Além disso, o professor destaca ainda um outro grande benefício de brincar ao ar livre: incentivar a mobilidade. As crianças, garante, precisam de restaurar o corpo, especialmente após a pandemia, que as obrigou a passar mais tempo em casa. Para isso, precisam de utilizar os espaços exteriores, estar mais tempo em contacto com a natureza e terem oportunidade para brincar e estarem mais ativos, ao mesmo tempo que têm oportunidade de assimilar e contemplar tudo o que está à sua volta, sem medos.

"Vivemos numa sociedade exausta, cansada, em fadiga e no limite, uma vida à pressa, com corpos muitas vezes esquecidos e num lugar incerto em que se valoriza excessivamente tudo aquilo que são as aquisições escolares das crianças e esquece-se que o cérebro não vive sem o corpo”, diz o especialista. “Quando o corpo se mexe, há logo preocupações de punir, de policiar, e ter medo pela criança. Quando se trata de ter a criança quieta e calada a aprender coisas abstratas ninguém se preocupa com isso. Estamos aqui a criar, sem termos consciência disso, uma angústia pandémica como nunca vivemos e, por outro lado, a aproximação a um estado depressivo que pode ser extremamente perigoso. Devemos lutar por uma infância saudável e natural e não completamente artificializada.

*este texto foi originalmente publicado em 2021 e adaptado.