Nos primeiros dias, meses, anos de vida (e até sempre) as preocupações dos pais são muitas, principalmente no que diz respeito à formação da estrutura das crianças. Algo que acontece frequentemente e deixa os pais em alerta é o facto de as crianças colocarem os pés para dentro, fugindo assim aos "padrões de normalidade", embora "a normalidade no sentido subjetivo é um conceito estatístico".
Quem o disse foi o pediatra Hugo Rodrigues, numa entrevista à MAGG na altura do lançamento do livro "O Livro do seu Bebé — Os primeiros 1000 dias". Voltámos a falar com o especialista em pediatria, desta vez para perceber, afinal, se é comum as crianças colocarem os pés para dentro e que solução é mais eficaz para contornar a situação.
"É muito comum e na esmagadora maioria das vezes tem que ver com a forma como as crianças se sentam", revela Hugo Rodrigues. Isto está relacionado com o facto de os bebés, quando começam a gatinhar, habituarem-se a sentar com as pernas para trás [em W] de modo a facilitar a saída para a frente para voltar a gatinhar.
"Ao sentarem-se com as pernas para trás, quando se põem de pé a perna é rodada para dentro. A questão é que nestas situações isto não é um problema no sentido de ser algo que necessite de correção. É apenas uma alteração postural, portanto, a solução é corrigir a forma como se sentam", sugere o pediatra Hugo. A forma mais correta seria então ensinar as crianças a sentarem-se com as pernas cruzadas para a frente — posição que conhecemos como sentar "à chinês" — uma vez que, dessa forma, "os pés rodam para fora, por isso, corrige-se a rotação para dentro da perna".
Já Gonçalo Trafaria, fisioterapeuta e especialista em osteopatia pediátrica, apresenta outra alternativa. De acordo com o especialista, de modo geral, a colocação dos pés para dentro tem maior incidência entre os 2 e os 4 anos, mas entre estas situações podem haver algumas mais graves, como o chamado metatarso aduto (caracterizado por uma deformidade do pé). "Acredita-se que seja causado pela posição do bebé in utero, contudo, um exame cuidado da anca e todo o membro deverá ser tido em conta como forma de despiste de outras causas", explica à MAGG.
É nestes casos que o uso dos sapatos ao contrário pode fazer sentido, no entanto, é preciso ter precauções. "A indicação para usar o calçado reverso deve ser orientada por um profissional familiarizado com estas situações, uma vez que o uso indevido poderá contribuir para um hallux valgus (vulgarmente conhecido como joanete)", acrescenta.
Quanto a esta prática, o pediatra Hugo Rodrigues é da opinião de que, quando a causa é postural, já não faz sentido nos dias de hoje. "Os sapatos ao contrário podem fazer de conta que estamos a corrigir o problema, mas, na verdade, se a criança continuar a sentar-se mal não vamos solucionar nada", defende.
Para além disso, uma vez que é nos primeiros tempos de vida que as crianças estão a ganhar os apoios normais e o pé a desenvolver as suas estruturas ao apoio natural do corpo, "se metermos os sapatos ao contrário estamos a contrariar os apoios normais do pé. Não me parece de todo a melhor opção".
Um olhar atento e estratégias que os pais podem adotar
O especialista em osteopata pediátrica, Gonçalo Trafaria, defende que antes de partir para qualquer correção é muito importante "avaliar fisicamente o pé da criança, nomeadamente a rigidez face à tentativa de correção, podendo ser realizadas algumas medições para quantificar o eventual desvio". Contudo, antes desta fase, há alguns fatores que podem ser decisivos no desenvolvimento dos pés.
"As solas dos sapatos, sejam de couro ou borracha, devem ser grossas o suficiente para proteger, mas flexíveis o suficiente para caminhar. Já o calcanhar, deve conferir o suporte necessário para que o mesmo não deforme", nota o osteopata quanto à importância da escolha do calçado.
Como conferir tudo isto? No caso da flexibilidade, ao dobrar o sapato para cima, a sola deve dobrar sem muito esforço e para perceber se o calcanhar está adaptado, deslize o dedo para constatar a firmeza.
Consequências a longo prazo
A forma de sentar é uma das primeiras coisas que os pais podem e devem corrigir de modo a evitar prolongar o problema, de acordo com o especialista Hugo Rodrigues. "Se nos apercebermos disto e corrigirmos numa fase precoce, a correção é perfeitamente normal e natural em relativamente pouco tempo", diz.
No mesmo sentido, Gonçalo Trafaria refere que "não haverá problemas de maior gravidade, desde que o pé mantenha uma boa mobilidade e flexibilidade". Ainda assim, destaca que se a tendência de as crianças colocarem os pés para dentro não for corrigida, as crianças "podem desenvolver a marcha em pontas dos pés", que, com a ajuda de um profissional, pode ser trabalhada.
*Texto originalmente publicado em 2020 e adaptado a 1 de novembro de 2022.