Pelo segundo ano consecutivo, Tiago e Rafael Mesquita Guimarães, dois alunos de Famalicão que frequentam o 7.º e o 9.º ano de escolaridade, respetivamente, voltaram a reprovar de ano devido à falta de comparência na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. A notícia desta segunda-feira, 5 de julho, foi uma repetição do que já tinha acontecido no anterior ano lectivo, embora os dois estudantes — que têm um aproveitamento excelente nas restantes disciplinas —não tenham ficado retidos em 2020, depois de os pais destes terem avançado com uma providência cautelar, algo que já repetiram este ano, a 29 de junho.

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Em causa estão as matérias desenvolvidas na disciplina, entre as quais a educação sexual que, na opinião dos pais de Tiago e Rafael, deve ser um tema abordado em casa e não na escola, tal como avança o  "Jornal de Notícias". O casal acredita ainda que os dois filhos estão  "sob perseguição de quatro entidades do estado: Ministério da Educação, Ministério Público, Segurança Social e Comissão de Proteção de Crianças e Jovens", de acordo com o mesmo jornal.

Este é o segundo ano em que os dois jovens se veem no meio de uma polémica que chega a todo o País, incendeia as redes sociais e divide opiniões. Mas para os principais visados, os alunos, que tipo de consequências podem existir, sejam imediatas ou a longo prazo?

Para Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, existem uma série de questões que carecem de resposta. "Não conheço estas crianças em particular, esta família ou esta escola, mas há algumas questões reflexivas que me coloco. Como é que estas crianças estão a vivenciar esta situação onde, embora estejam no centro de tudo, são em simultâneo alheias a tudo o que acontece? Qual é a sua vontade: ir às aulas de cidadania, não ir e porquê?", questiona a especialista, que salienta que a possibilidade de os estudantes ficarem retidos de ano, quando têm um excelente aproveitamento a nível geral, pode acarretar consequências negativas, embora tudo dependa forma como estes encaram a situação.

filipa jardim da silva
Filipa Jardim da Silva

"Se chumbarem e ficarem retidas no mesmo ano letivo, voltando a lecionar as mesmas matérias em disciplinas onde até tiveram bom aproveitamento académico, é possível que sintam essa experiência como uma punição, como uma injustiça, como uma humilhação. Por outro lado, também é possível que encarem o sucedido como uma consequência natural pelas escolhas da família, como uma vitória ou mesmo como uma rebeldia."

Num panorama geral, a especialista salienta ainda que, como pais, é importante saber separar águas. "Importa não nos esquecermos de que não somos donos de ninguém e apesar das nossas crenças, tradições e mentalidade, os nossos filhos podem ou não identificar-se com elas. Assim, quanto mais educação, cultura e mundo permitirmos acesso aos mais novos, mais eles terão uma oportunidade de se construir e definir enquanto pessoas que são, diferenciadas dos pais e dos professores que as educam e orientam."

Não são conhecidas as vontades dos jovens, só a dos pais

Filipa Jardim da Silva reforça também que os filhos nem sempre têm de se identificar a 100% com as crenças dos pais. "Poderão partilhar de mais ou menos valores, poderão identificar-se com mais ou menos legados e tradições, poderão concordar ou não com certas formas de pensar. Quando impedimos os mais novos de conhecer mundo, de aceder a ensinamentos diferentes dos familiares, acabamos por lhes limitar a sua construção, impondo o que acreditamos como certo e promovendo mais rigidez do que flexibilidade, mais dogmas do que multiplicidade, mais anulação do que aceitação."

No caso de Tiago e Rafael, não são públicas as vontades dos jovens, apenas as dos pais. Mas o que não falta na sociedade são pais a imporem os seus desejos aos filhos, mesmo que estes ultrapassem em muito a educação.

"A história destas duas crianças abre espaço a reflexões mais abrangentes do que este contexto individual. Reflexões sobre como afinal estamos a promover a educação para o respeito pela diferença na nossa sociedade e maiores níveis de inteligência emocional nos mais novos", salienta Filipa Jardim da Silva, que caracteriza o sucedido em Famalicão e as consequências a nível da sociedade como mais uma "situação em que tantos adultos se debatem uns com os outros, e em que os mais novos são pouco ou nada ouvidos".

"Um adulto não deve usar a sua idade ou posição para se sobrepor sempre e a qualquer custo a uma criança. Uma criança tem direitos, tem vontades, tem identidade, tem capacidade para pensar e sentir, independentemente da sua faixa etária. E, às vezes, há combates por crianças para as proteger que acabam por vulnerabilizá-las ainda mais", relata a psicóloga clínica.

A polémica com a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento

Saúde, direitos humanos, educação sexual, igualdade de género, desenvolvimento sustentável, entre outros, são alguns dos temas abordados na disciplina que já está marcada pela polémica. Mas será que há razão para isso?

"Quando estes tópicos são abordados com respeito pela liberdade individual e sem dogmas, como é suposto nas escolas públicas portuguesas, no fundo abraçam a multiplicidade de religiões, de orientações sexuais, de géneros e de mentalidades que existem na nossa sociedade. Viver em comunidade é aprender a lidar com a diferença com respeito", relata Filipa Jardim da Silva.

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Mas embora no caso de Tiago e Rafael a componente relacionada com a sexualidade seja o motor da decisão dos pais de não permitirem os filhos de frequentar estas aulas, o que mais podem estes dois jovens — e outros na mesma situação — estar a perder? Podem ficar menos preparados para lidar com questões tão vitais como estas na idade adulta? Pior: podem tornar-se menos tolerantes?

"À partida, as escolas são incubadoras de formação de futuros adultos, pelo que além das competências cognitivas, é importante que promovam competências sociais e emocionais", explica a especialista. "Quando a Constituição determina que incumbe ao Estado, para proteção da família, cooperar com os pais na educação dos seus filhos (artigo 67 da Constituição Portuguesa), diria que esta cooperação passa pelo respeito a várias crenças, religiões e tradições familiares. E nessa cooperação cabe a promoção de competências de cidadania, ou seja, a capacidade de respeitarmos e coexistirmos com o outro, mais semelhante ou mais distinto de nós."

Para além disso, Filipa Jardim da Silva chama a atenção para o perigo de começar a diferenciar ou afastar tudo o que não vai de encontro às nossas formas de pensar. "Se para as escolas respeitarem as famílias, o objetivo passar por termos turmas homogéneas em crenças, tradições, mentalidades, valores, características físicas e enquadramentos socio-culturais e familiares, então vamos começar a criar guetos dentro das nossas escolas. E que mensagem isso passa para os mais novos?", questiona a especialista.

"É suposto um casal católico e casado sentir-se incomodado pelos filhos terem colegas de escola agnósticos de pais divorciados? É perigoso que uma criança de uma determinada religião compreenda que existem várias religiões distintas nas suas crenças e tradições? É criticável que crianças de pais heterossexuais possam ter um professor homessexual? E é desaconselhado vetar informação credível de saúde e sexualidade aos mais novos, abrindo espaço a que acedam a essa informação em canais e contextos menos fidedignos?", questiona a psicóloga clínica.

"Na aldeia global em que vivemos hoje em dia, a rejeição e o julgamento limitam-nos. Mais do que nos afastarmos de quem tem crenças diferentes das nossas, há que aprender a co-criar um espaço de respeito e tolerância por essa diferença", conclui.

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