É verdade que ainda não vivemos numa sociedade perfeita, completamente isenta de estereótipos e julgamentos preconcebidos. Mas se há 30 anos a homossexualidade era um tabu, hoje em dia sabemos (e aceitamos) que existe uma multiplicidade de caracterizações sexuais. A capacidade de entender a diferença estende-se à forma como educamos os nosso filhos, e tentamos mostrar-lhes que podem ser quem quiserem — os meninos podem ser príncipes, as meninas princesas. Ou ao contrário. Quem é que disse que os meninos não podem ser princesas e as meninas príncipes?
Têm surgido vários exemplos na imprensa de pais que optam por educar as crianças sem género: mãe de uma menina em outubro do ano passado, Kate Hudson assumiu recentemente numa entrevista ao site “AOL” que decidiu abordar a educação da filha sem a limitar ao género feminino ou masculino. “Ainda não sabemos com que género ela se vai identificar”, declarou a atriz norte-americana, que apesar de ter chamado à filha Rani Rose e se referir à mesma com o pronome feminino, assumiu na mesma entrevista que optar por a educar como menina seria “extremo”.
Kate Hudson não é a única celebridade a optar por este caminho — um dos bebés mais antecipados de 2019 também poderá ser educado de forma neutra. Segundo a “Vanity Fair”, Meghan Markle e o príncipe Harry optaram por decorar o quarto do primeiro filho em tons cinzentos, e há rumores de que a duquesa de Sussex pretende optar por uma abordagem pouco convencional no que diz respeito à educação do filho. “Meghan quer educar o bebé com uma abordagem fluída ao género e não lhe quer impor qualquer estereótipo”, declarou uma fonte à mesma publicação.
“Não fazia sentido para nós, pais, formatar a nossa filha”
Cátia Cunha, 29, é mãe de Catarina, prestes a fazer 3 anos no próximo mês de maio. Apesar de não ter pensado em educar a filha sem aplicar o género até ao primeiro ano de vida da menina, e daí a decisão do nome Catarina (um nome identificado como de menina), a assessora de imprensa revela que esta foi uma decisão natural em nome da felicidade da filha.
“Educar a Catarina sem uma imposição de género foi algo que nos foi surgindo no primeiro ano de vida dela, não fazia sentido para nós, pais, formatar a nossa filha. Ela é um ser livre, tem gostos e vontades próprias. Como tudo o que fazemos, esta nossa escolha serve apenas para que a Catarina se sinta feliz, cresça feliz e se sinta parte desde mundo como um ser individual, e não como um ser que os pais criaram”, conta Cátia Cunha à MAGG.
A mãe de Catarina explica que, apesar de jovem, a menina tem liberdade para escolher aquilo com que se identifica mais, sem estar presa a opções ditas de rapazes e raparigas.
“Ela tem uma coleção de carros e outra de bonecas. Quando compramos algo, ela é que escolhe. Nunca dizemos ‘isto é para meninos’, e na roupa é igual. Com os desenhos da Patrulha Pata, todos esperam que as meninas gostem da Sky, mas ela prefere o Rubble, por isso ela tem coisas referente a esta personagem”, descreve Cátia Cunha, que reforça que o seu objetivo enquanto mãe é que a filha seja “feliz e que tenha a capacidade de saber o que quer, e não o que os outros querem. Tem que aprender a ser livre e a fazer as suas próprias escolhas”.
Rosa Amaral, psicóloga clínica, explica à MAGG que preferências como estas, em que uma menina prefere roupas ou brinquedos encarados como do sexo oposto, não quer obviamente dizer que exista uma identificação com outro género. São apenas gostos.
“A criança tem preferências, é atraída por algumas coisas e não por outras. As crianças optam pelo prazer de brincar com aquele objeto, de vestir algo com aquelas cores, e não está a definir o seu género por ser rapaz e querer vestir um vestido princesa, ou ser rapariga e querer jogar à bola”, salienta Rosa Amaral, que afirma que as crianças devem poder crescer com liberdade para identificar “as suas preferências e dons”.
A psicóloga Bárbara Ramos Dias, que lançou recentemente o livro "Respostas Simples às Perguntas Difíceis dos Nossos Filhos”, concorda que as escolhas dos mais pequenos não têm obrigatoriamente a ver com a identificação de género, mas sim com as crianças usarem ou brincarem com aquilo “que gostam e com que se sentem bem”.
A especialista explica também que estas escolhas podem ser estimuladas pela presença de figuras de referência: “Um rapaz até pode gostar de usar roupa cor-de-rosa e de coisas mais ligadas ao sexo feminino, e nunca se vir a identificar com o género feminino. Basta lidar mais com mulheres, estar muito ao pé da mãe, avós, tias, para querer usar as mesmas coisas. E vice-versa, uma menina pode preferir jogar à bola e brincar com carrinhos se vir o pai ou os irmãos a fazê-lo”.
Os pais não devem promover ou inibir os comportamentos dos miúdos em relação ao género
Para Joana D’Oliveira, 31, não há preconceitos ou noções preconcebidas daquilo que é de rapaz e de rapariga que limite as vontades do filho Gabriel, de 2 anos. “Apesar do nome masculino, o meu filho está a ser educado para desenvolver a sua individualidade, os seus gostos e quem sabe o seu género ou sexualidade”, explica Joana D’Oliveira.
A fotógrafa comercial recorda um episódio recente, que apesar de ter levado a algumas críticas por parte de familiares mais velhos, fez muito pela felicidade de Gabriel: “Renovámos o quarto dele há pouco tempo e uma das cores obrigatórias era o rosa, a cor favorita dele. Se ele não tem preconceitos com isso, porque haveria eu de lhe incutir tal? Claro que ouvimos alguns comentários, mas nada disso importa, mas sim que ele adorou o quarto novo”.
De acordo com Rosa Amaral, os pais têm de ter uma posição neutra quanto a estas questões, bem como os educadores. “O que é defendido hoje em dia entre os psicólogos é que os pais não devem promover, nem inibir os comportamentos em relação ao género”, explica a psicóloga.
Trocando por miúdos, nem os rapazes devem ser obrigados a brincar com bonecas, nem as meninas com carros, a não ser que esses sejam os seus gostos e preferências. Na mesma lógica, “não se devem limitar áreas de rapazes e raparigas, como definir num contexto de escola que as meninas brincam com as casinhas e os meninos no campo de futebol, e nunca fomentar comportamentos como incentivar as raparigas a ajudar na cozinha e os rapazes a verem futebol com o pai”, explica Rosa Amaral.
Para a especialista, as crianças devem “desenvolver competências com objetos do seu gosto” e devem ter “liberdade de escolha sem certos papéis e definições serem incutidas e influenciadas pelas figuras parentais”.
A diferença entre sexo e género
Por mais que o mundo esteja diferente e mais aberto, ainda existem muitas confusões sobre o que é género, sexo e sexualidade. E quando o tema é educar as crianças sem lhes impor um género, há mesmo muitas dúvidas, críticas e também preconceitos.
A título de curiosidade, no fórum onde a MAGG pediu ajuda para encontrar testemunhos sobre este tema, choveram comentários com dúvidas sobre aquilo que se pretendia — uns num esforço genuíno para saber o que era isto de educar sem género, outros tecendo acusações sobre a vergonha de querer confundir crianças inocentes e afirmando que esta é uma ideologia ligada ao marxismo cultural.
“O sexo diz respeito às características físicas com que se nasceu, com funções reprodutivas diferenciadas”, define Alice Murteira Morgado, psicóloga e professora do ensino superior. Rosa Amaral acrescenta: “O sexo de uma pessoa define-se pelas características biológicas dos cromossomas”.
Já o género é uma história bem diferente, e diz respeito “à divisão masculino/feminino baseada em fatores sociais e culturais”, salienta Alice Murteira Morgado, que explica que a “identidade de género é a perceção da pessoa relativamente às suas características femininas e masculinas”.
Rosa Amaral acrescenta que o género prende-se com as “características associadas aos géneros conforme a sociedade em que estamos inseridos, atribuídas dessa forma”. Como exemplo, a especialista refere que, “quando uma rapariga cresce, vai ter seios, mas não vai obrigatoriamente desenvolver uma vontade de tomar conta da casa — estes comportamentos adquiridos desenvolvem-se devido à sociedade que definem o estereótipo daquele género sexual”.
A identidade de género é algo que se vai construindo pela infância fora até ao final da adolescência, e às vezes até mesmo pela idade adulta. “É um work in progress, precisamente porque existem esquemas mentais do que é o masculino/feminino que vão sendo ajustados consoante as nossas experiências”, refere Alice Murteira Morgado, que salienta também que pode e existe alguma confusão quanto à identidade de género na infância e adolescência.
“Várias teorias de desenvolvimento da identidade de género apontam para o facto de, na infância, ainda haver alguma inconstância neste tema. É por isso normal e expetável que um rapaz pequeno questione o que seria ser rapariga, e vice-versa, sem que isso implique que tenha uma identidade de género distinta do sexo com que nasceu. Também é natural que existam diferenças grandes entre rapazes e raparigas, pela forma como a nossa sociedade construiu os conceitos de masculino/feminino que os condiciona, desde a nascença, a determinadas atividades, formas de agir, preferências.”
A psicóloga e professora explica que, até à adolescência, pode existir confusão na identidade de género, “normativa e expetável, que faz parte de experimentar papéis, preferências, atividades para, numa fase posterior, construir a identidade”.
Existem mitos e medos do passado que influenciam os educadores do presente
Está mais do que visto que este é um tópico que suscita discussões e dúvidas, e os medos e a gestão de expectativas em relação ao futuro dos nossos filhos também faz parte do conjunto.
“Há muitas dúvidas que permanecem de uma fase anterior. Quando me formei, há 25 anos, a homossexualidade ainda era vista como uma perturbação do comportamento, algo que até a ciência já comprovou ser mentira, mas a sociedade ainda tem alguns medos que permanecem. Há pais, inclusive, que têm medo que o facto de deixarem o seu filho ser livre e vestir um vestido de princesa se assim lhe apetecer, condiciona as escolhas sexuais que esta criança vai fazer no futuro, e acham que podem estar a incentivar esta escolha. E tal não é verdade, brincar com bonecas ou jogar futebol não condiciona a orientação sexual, nem o género com que as crianças se identificam”, explica a especialista Rosa Amaral.
“Deve ser dada liberdade para que os miúdos possam ser quem querem. Caso contrário, se os pais insistirem em limitar as crianças ao que é ‘suposto’, podem existir consequências como baixa autoestima e falta de confiança”, salienta a psicóloga Bárbara Ramos Dias, que explica que as crianças “deixam se sentir seguras por não terem espaço para ser quem são e bloqueiam a sua personalidade”.
Rosa Amaral também afirma que limitar as crianças e jovens aos papéis que a sociedade dita como de rapaz e rapariga pode criar miúdos “frustrados” e, a longo prazo, contribuir para a desigualdade de género.
“Incutir uma desigualdade dos sexos a nível comportamental desde muito cedo tem consequências. Se ensinarmos as raparigas que as tarefas domésticas lhes dizem respeito, incentivando as meninas a ajudar na cozinha por exemplo, para além de lhe incutirmos esses ensinamentos, estamos também a ensinar os rapazes que essas tarefas não são para eles. Os papéis de género podem ser de grande influência, e podemos até perpetuar o machismo e a desigualdade de género perante a sociedade”, conclui Rosa Amaral.