Quando entrei para o 2.º ciclo, era baixa, gorda e usava uns óculos de massa cor de rosa com apontamentos de amarelo e verde que dificilmente passavam despercebidos. Como se não bastasse, era um ano mais nova do que toda a gente — e para que dúvidas não restassem, a professora fez questão de explicar isso mesmo no primeiro dia. “A Marta só tem 9 anos porque fez a primária em três anos”, disse. “É mais pequenina do que vocês, têm que a ajudar”.
Precisei de poucas horas para me tornar na ave rara do colégio — a minha aparência era desagradável, era mais nova do que toda a gente numa escola que ia do 5.º ao 12.º ano e ainda tinha levado com o rótulo de sabichona. A minha “impopularidade” estendeu-se a todos os anos, ao ponto de ter miúdos do 8.º ano a perseguir-me. Era um alvo demasiado fácil para deixar escapar.
O 2.º e 3.º ciclos foram um inferno. As minhas notas caíram drasticamente, portanto os professores não me achavam "piada". A minha alimentação não era saudável, portanto estava sempre a ouvir comentários depreciativos na cantina e no bar — dos auxiliares, não apenas dos miúdos. Quanto aos meus colegas, bem, salvo as devidas exceções, eram autênticas máquinas de tortura.
Eu simplesmente não valia nada.
Estávamos em 1998. Naquela altura não se falava de bullying como hoje, mas sejamos sinceros: nada teria mudado se o estrangeirismo já tivesse chegado a Portugal. Os professores e auxiliares sabiam do que se passava. As freiras sabiam do que se passava, ou não me encontrassem escondida na capela durante todos os intervalos. Toda a gente sabia, mas ninguém queria saber. São coisas de miúdos, e os miúdos acabam por se entender.
Esta semana, Ricardo Martins Pereira contou-nos a história do filho, vítima de bullying desde a primária. Ele já não é a mesma pessoa. Já não é o menino doce e afetuoso, está envolvido em episódios de violência e humilhação todas as semanas. E o Ricardo, como pai, já não sabe o que fazer. E o Ricardo, como pai, informado e a viver uma época em que toda a gente sabe o que quer dizer bullying, já fez tudo o que está ao seu alcance para mudar as coisas. Infelizmente, não lhe valeu de nada — continua tudo igual.
Os meus pais nunca foram à escola falar sobre o que estava a acontecer — há 21 anos, o meu pai disse-me que respondesse com um murro e arrumasse o assunto. Eu não respondi, eram demasiados murros para distribuir, mas o assunto morreu ali. Pelo menos em casa. Por parte da escola, a única coisa de que me recordo é da culpabilização. De fazerem queixas de que eu era demasiado tímida, demasiado calada, que não tinha boas notas.
Eh... pois.
Ninguém fez absolutamente nada. E, 21 anos depois, as escolas continuam a dizer que não podem fazer absolutamente nada. Só que podem. Aliás, devem: elas estão ali para formar cidadãos, não apenas para ensinar matemática. Elas têm o dever de fazer o acompanhamento dos miúdos que fazem bullying e dos miúdos que sofrem de bullying.
Elas têm o dever de proteger os mais fracos e de capacitá-los com ferramentas que os façam seguir em frente sem se virarem para comportamentos destrutivos ou autodestrutivos. E têm igual dever de perceber porque é que uma criança se vira para a violência contra outra de forma tão gratuita.
Repito: as escolas não podem, devem. O sistema de educação tem de ser melhorado, caso contrário vamos continuar a ter textos como estes escritos daqui a 21 anos. Ou, pior, não teremos ninguém para os escrever. Porque o bullying não é apenas a boca de um colega no intervalo, é uma perceção continuada e permanente de que não valemos nada. E isso persegue-nos, consome-nos e faz-nos acreditar que, de facto, não valemos nada. E quando não valemos nada e ninguém nos quer, o que é que estamos aqui a fazer? É o que nos perguntamos.
Não adianta afixar cartazes nas paredes com frases bonitas como "Diga não ao bullying". Não adianta passar filmes de hora e meia na aula de Formação Cívica, não adianta mandar recados na caderneta. É preciso intervir no momento, é preciso acompanhar, é preciso ter pessoas especializadas e preparadas para agir. E tem de ser agora.
Eu não quero ver os meus filhos a sofrer de bullying como eu sofri. Eu não quero ver os filhos do filho do Ricardo a sofrerem de bullying como ele sofreu. Desse lado, o leitor provavelmente também não quer. Está na altura de fazermos alguma coisa então, não?
Andreia Nogueira, psicóloga e responsável pelo projeto piloto das “Escolas de Empatia”, já decidiu fazer alguma coisa. E é a história deste programa que tem como intuito prevenir o bullying que lhe contamos esta semana. Criado pela associação Par, e com um programa elaborado por uma equipa de psicólogos e outros especialistas, o objetivo do projeto é trabalhar, junto das crianças, aspetos como inteligência emocional, empatia, autoconfiança e consciência do outro. Este ano letivo o programa só está disponível numa escola, mas o objetivo é chegar a (muitas) mais.
E porque infelizmente a violência nas escolas nem sempre parte dos alunos, esta semana trazemos-lhe também a história de um aluno que foi agredido por um professor numa escola em Lisboa. Uma rasteira e uma cotovelada na cabeça: foi assim que um professor atacou um miúdo atrasado para as aulas. "Doeu, não foi?, perguntou. A lei protege esta criança e nós explicamos-lhe como.
Saindo do tema do ensino, o jornalista Fábio Martins sentou-se à conversa com Paul French, o escritor britânico e especialista na história da Coreia do Norte. Para o autor, basta um pequeno erro para que os problemas atinjam uma escala mundial.
E há mais. Da portuguesa que esteve em Cardiff e assistiu aos problemas de som do concerto das Spice Girls, até ao Ramiro que vai passar a ter serviço de entregas em casa, contamos-lhe ainda pedidos mais ou menos excêntricos de 15 artistas no Rock in Rio Lisboa e mostramos-lhe a nova marca de roupa da blogger Maria Guedes.