Encontrar pessoas do passado é sempre surpreendente. E, geralmente, o resultado é o mesmo: os mais discretos do liceu (ou mesmo os que mais sofreram de bullying) saem-se melhor do que os popularões. E quando eu digo saem-se melhor refiro-me a uma existência com mais mundo, o que não tem nada que ver com lugares de topo em grandes multinacionais, contas bancárias recheadinhas de dinheiro ou carrões que gastam litros de combustível, borrifando completamente para o impacto ambiental, porque isso é uma conspiração da esquerda ordinária e mal cheirosa.
Essa é a triste "elite" dos popularões. Estão até de madrugada no escritório da Deloitte ou da Accenture, jantam no JNcQUOI ou no Praia no Parque, usam grandes cachuchos no pulso, envergam camisas divertidas e Paez em época de festival e vão de Uber para todo o lado, porque transportes é coisa de pobre. Por este mesmo motivo, não conhecem as ruas da cidade, excepto a Rua Cor de Rosa, onde apanham pifos valentes à sexta-feira, comportando-se como os selvagens que já eram aos 16 anos. No caso dos homens, acham que mandar piropos é normal e riem-se quando passa uma rapariga gorda. Elas acham que o feminismo é uma coisa horrível, é coisa de mulher frustrada. Dizem todos com orgulho que nunca leram um livro na vida.
São também estes os grandes defensores do capital. E agora como é que eu passo disto para a capitalização das marcas? Não faço ideia, estou um bocado confusa. Mas queria muito escorrer aquele bocado de ódio malandro e como mete tudo dinheiro até achei que fazia sentido.
E, meus amigos, talvez até faça. Rufar de tambores, música de circo, abertura de cortinas: bem-vindos ao exótico mundo da capitalização das causas! A incoerência é palavra-chave na nossa missão, porque só temos um princípio: pelo dinheiro vale tudo. Borrifamo-nos para o feminismo, borrifamo-nos para a diversidade, borrifamo-nos para o aquecimento global, e borrifamo-nos ainda mais para a luta contra a pobreza (pobres não interessam, porque não têm dinheiro), mas fazemos campanhas sobre isto tudo. Instrumentalizamos causas por dinheiro, transformamos pessoas em tokens e não temos vergonha em assumi-lo.
É verdade, meus caros, não têm vergonha em assumi-lo. As incoerências estão em todo lado. Não vou especificar nomes, mas há exemplos em barda: marcas de biquinis que publicitam modelos para pessoas XL, mas que não se atrevem a mostrar este tipo de corpo no seu feed de Instagram, porque esse está reservado às medidas mais estreitinhas. Temos artigos de revistas que se concentram na quebra de estereótipos do corpo feminino para, na página seguinte, termos uma publireportagem que pagou umas boas centenas de euros para estar ali a propagar fórmulas mágicas para fazer dieta e ficar "com um corpo perfeito". Temos influencers a partilharem #blacklivesmatter, quando, na realidade, não fazem puto de ideia de onde é que o racismo vem e quais as suas consequências. Ou as marcas de roupa que têm linhas "conscious", quando nos bastidores temos pessoas, incluindo crianças, a trabalhar no Bangladesh, em condições absolutamente deploráveis.
Há que referir ainda as lojas que erguem a bandeira da sustentabilidade até têm dispensadores com produtos a granel, os quais ali chegaram depois de retirados, um a um, das centenas de saquetas de plástico em que vinham armazenados, neste momento a boiarem no oceano e a assassinar mais uma tartaruga. Ou ainda os produtos muito vegan, muito glúten free, muito low carb, pensados, claro, para os mais burritos, porque a verdade é que sempre foram vegan, sempre foram gluten-free, sempre foram low-carb. Enfim, podíamos continuar, mas o ponto é: fica bem. E o que fica bem dá dinheiro.
Agora, o argumento: "Ao menos estamos a falar sobre isto". Certo. Isto é verdade. Ao menos, agora estamos a falar. Mas é a superficialidade que deixa o meu olho a tremelicar. Neste universo, falar sobre feminismo ou sobre crop tops passou a ser exatamente igual: hoje está na moda, amanhã vai deixar de estar. E à medida que os holofotes da publicidade vão escolhendo outros temas, mais mulheres morrerão vítimas de violência doméstica, serão vítimas de assédio e abuso sexual, continuarão a ser mal pagas e representadas. Quando o capitalismo encontrar outras causas com que lucrar, o CO2 vai continuar a somar-se na nossa atmosfera, os gelos vão continuar a derreter, a temperatura vai continuar a subir e os desertificação a escalar. Quando os tubarões das grandes multinacionais se fartarem de falar na representação do corpo feminino, muitas meninas e meninos estarão a sofrer um bullying atroz na escola, estarão a odiar o seu corpo, a contrair perturbações do foro alimentar e a crescer sem se conseguirem aceitar.
As regras emanadas pelos governos são importantes, mas aquilo que acontece dentro das empresas e dos grandes grupos não é menos relevante. O diálogo externo é importante, mas é na forma como se comunica internamente e nas políticas que se implementam que reside a possibilidade de uma mudança real, em nome de princípios comuns, que são a igualdade e o respeito. Sem isso, restam-nos os tokens. Quais serão os próximos?