Gastei oito horas da minha vida a ler "Na Sombra", o livro de memórias do príncipe Harry, que chegou às livrarias esta terça-feira, 10 de janeiro. Tendo já escrito alguns artigos sobre os conteúdos desta obra autobiográfica, o que me têm perguntado com mais frequência é: "vale a pena?".

A resposta é complexa, tão complexa como a nossa relação (nós, plebeus, nós republicanos, nós, sociedade do espectáculo) com as figuras de uma instituição tão anacrónica como é a monarquia. E Harry, por muito que se tente distanciar, é uma figura emblemática desse regime que nada nos é há mais de um século, mas que tanto fascínio exerce no imaginário coletivo.

"Na Sombra" custa 22,95€, por isso, se tiver esse dinheiro para gastar, antes num livro do que em tabaco. Está muito bem escrito, escorreito, fácil de ler, embora a tradução para português tenha as suas falhas, sobretudo na equivalência do tom 'posh' das conversas entre os membros da família real britânica e o seu círculo mais próximo.

"Na Sombra" é surpreendente, mas não um surpreendente "ah! Não sabia isto!", que exclamamos quando vemos "The Crown", mas um surpreendente do género "a sério que ele contou isto?". Tem momentos divertidos, mas não é uma diversão "aahaha, que engraçado". É mais aquele gargalhada meio sem jeito, da qual depois nos arrependemos, quando vemos alguém dar um trambolhão.

"Na Sombra" é um livro fantasmagórico, porque a presença de Diana está em todo o lado. Em todos os capítulos, em quase todas as páginas. Em referências dolorosas, com as quais conseguimos sentir empatia, noutras que incomodam porque se percebe claramente que há, mais do que um processo de luto que não foi feito, uma obsessão.

Todas as datas vão dar a Diana, um animal no meio da floresta é Diana. Trocar mensagens com Meghan é um sinal da presença de Diana. Diana, Diana, Diana. E o príncipe parece, mais no final do livro, quase que admitir isso, ao descrever a forma como olhou longamente para o corpo da avó, a rainha Isabel II, logo após a morte da monarca. ( "Era difícil, mas continuei, pensando como me arrependi de não ter visto a minha mãe após o desfecho. Anos a lamentar essa falta de provas, a adiar a minha dor por falta de provas").

Realidade: em 1991, Carlos e Diana fizeram uma segunda lua de mel, uma tentativa desesperada para salvar o casamento. Nestas férias, que aconteceram a bordo de um iate em Itália, estiveram também os príncipes Harry e William créditos: Netflix e DR

Camilla é a sua outra obsessão, e não é preciso perceber muito de psicologia para entender como é que um miúdo de 12 anos, com uma mãe tão idolatrável como Diana, projetaria todo os males do mundo na madrasta. Um miúdo, sim. Um homem de 38 anos, não.

A rainha consorte, além da imprensa tabloide (as alcunhas dos papparazzi e jornalistas, a comparação com os talibãs) são os grandes alvos do livro. E não deixa de ser irónico como o alvo do ódio visceral do príncipe é também onde procura aprovação, citando artigos onde é visto de forma favorável, arrasando aqueles em que a cobertura mediática é negativa. Mas, sejamos honestos: a imprensa tabloide é altamente problemática, Harry e Meghan foram tratados como lixo e é impossível não sentir empatia com isso.

Mas Harry dedica mais páginas aos media do que a Meghan Markle e isso torna-se cansativo. Como se a vida toda deste sujeito se tivesse feito não contra os tabloides, mas em função destes.

O príncipe Harry e Meghan Markle em novembro de 2017, aquando o anúncio do noivado
O príncipe Harry e Meghan Markle em novembro de 2017, aquando o anúncio do noivado O príncipe Harry e Meghan Markle em novembro de 2017, aquando o anúncio do noivado créditos: DR

Percebemos também que, entre o final do ensino secundário e até conhecer Meghan (distam 13 anos), Harry é, essencialmente, um desempregado de luxo. Cumpre serviço militar no Afeganistão, faz algumas visitas oficiais, mas o somatório da sua atividade profissional em mais de uma década resume-se a isso. Pelo meio há relatos infindos de festas, discotecas, viagens, estadias prolongadas em África e na Austrália, e uma autocomiseração infinda pelas noites passadas em casa do pai e de Camilla, a comer refeições preparadas pelo staff da casa real, "de pé, ao lado do lava loiças". As referências recorrentes aos desenhos animados "Family Guy" e à série "Friends" ("Penso que vi todos os episódios de Friends em 2013. Concluí que era o Chandler", escreve) contrastam com a quase dolorosa falta de cultura geral, de conhecimento (e é o próprio que o admite), de mundividência.

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A forma como Harry se refere às mulheres em geral é altamente desconcertante e até problemática, desde a descrição da mulher com quem teve relações sexuais pela primeira vez ("episódio inglório, com uma mulher mais velha. Ela gostava de cavalos, e tratou-me como se eu fosse um jovem garanhão"), passando pelas "raparigas de aspecto duvidoso" de Las Vegas, até à recomendação para Meghan usar o cabelo solto no encontro com o futuro sogro ("Tinha o cabelo solto, tal como lhe sugeri. O Pai gosta que as mulheres usem o cabelo solto. A Avó também. Referia com frequência 'a bela juba de Kate'").

E não deixa de ser estranho como é que um homem que, de repente, se tornou tão woke e das causas e de combater o seu "preconceito inconsciente", tenha aceitado que, no seu livro de memórias, as mulheres sejam descritas como cavalos, e que ele próprio fizesse essa recomendação à mulher. E que uma mulher tão empoderada-independente-moderna-e-tudo como Meghan não o tenha mandado bugiar perante uma "recomendação" daquelas. E que, na primeira aparição pública do casal, em 2017, toda a sua indumentária tenha sido "previamente aprovada pelo palácio" (nota: eram umas calçadas de ganga, uns sapatos rasos e uma camisa).

O que é mais doloroso (e, admitamos, mais cativante para o leitor) são as descrições das discussões, da rivalidade, da relação de amor-ódio entre os dois irmãos. É, aliás, essa que motiva o próprio livro. "Na Sombra" de William, o herdeiro, o irmão que diz, repetidamente, amar, mas que destrói (a ele e à cunhada) repetidamente, ao longo de tantas páginas.

Os príncipes William e Harry
Os príncipes William e Harry Os príncipes William e Harry créditos: Instagram

E, ainda assim, é difícil não continuar a folhear. JR Moehringer, o ghost writer escolhido por Harry para elaborar o livro, fez um ótimo trabalho a captar a voz do príncipe, a registar para a eternidade todos os pensamentos, mesmo os mais mesquinhos (e há tantos, tanto pormenor prosaico que dispensávamos saber). Há, também, a sensação, mais para o final do livro, que o autor-fantasma deixou de ter tanto acesso a Harry como no início (fala-se de arrependimento, mas os milhões recebidos à cabeça pelo contrato editorial terão falado mais alto) e "Na Sombra" termina, meio à pressa, e sem tanto detalhe.

Há duas frases que resumem "Na Sombra" e que são não só inquietantes como demonstradoras do caos, da solidão e, quiçá, de alguma falta de noção, de Harry. Em janeiro de 2020, o mês em que negociou a sua saída da família real britânica, o príncipe encontra-se com o pai e o irmão nos jardins de Frogmore House, palácio rural pertencente à família real, ao lado do qual está o Cemitério real. Lá, estão sepultados reis e rainhas. E também "a famigerada Wallis Simpson" e o "duplamente famigerado rei Eduardo VIII". O duque de Sussex refere-se ao seu tio-avó, que abdicou do trono porque não lhe foi permitido casar-se com a norte-americana Wallis Simpson, que era, além de plebeia, divorciada. "(...) um e outro afadigaram-se para assegurar o seu derradeiro regresso a este local: ambos estavam obcecados por serem sepultados precisamente neste local (...) Pergunto-me se Wallis e Eduardo ainda sentirão que valeu a pena todo o afã. Afinal, que importância tem?".

Rei Eduardo VIII e Wallis Simpson
Rei Eduardo VIII e Wallis Simpson Rei Eduardo VIII e Wallis Simpson

Eduardo VIII e Wallis Simpson viveram exilados em França. Os duques de Windsor continuaram a receber um subsídio generoso da coroa britânica. Eram celebridades, convidados de honra em festas de alta sociedade, e Eduardo VIII chegou a ser pago para escrever artigos sobre a coroação da sobrinha, a rainha Isabel II. Em 1951, lançou o seu livro de memórias, "A King's Story", em que revelava detalhes da sua infância austera, do romance com Wallis Simpson e da forma como se deu o processo de abdicação.

Como disse Harry em entrevista a Stephen Colbert, no "The Late Show", apontando para o seu livro: "essa é uma das razões pelas quais é importante que a História esteja certa". E a História, como sabemos, tem tendência a repetir-se.