Não haverá sinal mais evidente de modernização de uma sociedade do que a alteração de comportamentos individuais, sociais e até culturais que promovem a discriminação, a humilhação, a desigualdade, o rebaixamento de género e o desrespeito pelo indivíduo e pelos seus direitos e, também, o desrespeito pelos animais e pelos seus direitos.

Em Portugal, algum deste trabalho tem sido feito, de forma lenta, muitas vezes tímida, e é apenas ilusória a sensação que temos de que existe já, na sociedade, uma condenação evidente deste tipo de comportamentos. Existem ainda duas linhas muito distantes entre aquilo que é defendido publicamente — porque é politicamente correto, porque dá likes, audiências, porque eleva o estatuto de quem se posiciona em defesa dos fracos — e aquilo que são os comportamentos efetivos, em privado.

O terror psicológico, a humilhação e o imenso orgulho de ser caloiro. Afinal, a praxe académica é boa ou má?
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Na última semana, o País discutiu a postura agressiva de Bruno de Carvalho no “Big Brother Famosos”, a evidente necessidade de expulsar este homem que humilhou e violentou, física e emocionalmente, a namorada, perante milhões de pessoas. Montou-se uma narrativa moralista sobre a indecência dos comportamentos do concorrente e a necessidade absoluta de se combater e punir de forma imediata e implacável este tipo de postura. Tudo certo. Nenhuma dúvida em relação a isso. Serei sempre o primeiro a juntar a minha voz aos protestos contra qualquer tipo de humilhação pública, violência, desrespeito de pessoas ou animais. O que é preciso é que haja uma coerência absoluta naquilo que defendemos publicamente, aquilo que fazemos em privado, e uma necessidade de agirmos da mesma forma perante situações idênticas.

Vamos a exemplos.

Várias foram as figuras públicas que se juntaram a Ana Garcia Martins, a comentadora oficial do “Big Brother Famosos”, e a primeira a contestar a decisão do próprio canal emissor do programa, a TVI, de não expulsar o concorrente assim que ele exibiu um comportamento violento, agarrando a namorada pelo pescoço. É, efetivamente, inaceitável que se promova este tipo de violência em horário nobre de televisão sem que se mostre, no imediato, que existem consequências para quem pratica estes atos. Até aqui, tudo óbvio. O que não se pode é criar uma narrativa de que a TVI é a má da fita e que só se move por audiências e que tenta fazer negócio com uma coisa tão séria como a violência sobre as mulheres. Poucos de nós temos moral para erguer uma bandeira numa luta conta a TVI, como se o canal de Queluz de Baixo personificasse todo o mal da sociedade, em que todos nós lutamos pelo que é correto e só nos movemos por valores, e depois há uma estação de televisão que só quer lucrar com coisas imorais, e com um crime.

Vamos então alargar a discussão e passar da violência física para a violência emocional, verbal, a agressividade de forma holística, até porque foi disso tudo que Bruno de Carvalho foi acusado, e não apenas de ter apertado o pescoço a outra concorrente.

Um dos programas de maior sucesso dos últimos anos da SIC, principal concorrente da TVI, foi o “Ídolos”, um programa de descoberta de talentos musicais onde os concorrentes têm de ser avaliados por um júri. Um dos jurados, Manuel Moura dos Santos, o mais famoso, falado e polémico, ficou conhecido unicamente pela forma autoritária, agressiva, desrespeitosa e vexatória como tratava os candidatos mais fracos, ou que, mesmo sendo bons, e estando já em fases avançadas do programa, tinham prestações que eram, na opinião dele, más.

Quando se fala de “Ídolos”, muitas pessoas dizem mesmo que adoram o programa, “sobretudo nos castings”. E porquê? Porque se divertem imenso a ver pessoas (miúdos, sobretudo miúdos) a serem humilhados perante milhões de pessoas. Já houve mesmo casos de miúdos com sinais evidentes de perturbações cognitivas, atrasos, que nem por isso deixaram de ser expostos à humilhação, ao riso público de milhões de pessoas. E que consequências é que isso teve na vida daqueles miúdos? No seu dia a dia, na escola, no relacionamento com os colegas, com a comunidade aonde vivem? O que é que isso interessa? O que interessa é que nós nos rimos muito.

Legalmente, o canal de televisão está defendido, porque tem em mãos uma folha assinada pelos pais que consentem que as imagens passem em televisão. Também esses pais estão, muitas vezes, à procura do sucesso dos filhos, iludidos pelo amor, pelo potencial da fama, coisas que dificultam o discernimento. Mas tantas e tantas vezes estes pais e estes miúdos são só pessoas humildes, sem vivência, nem cultura, nem estudos, e que são apenas deitados ao fogo para que todos nós possamos aquecer-nos nas nossas gargalhadas caseiras.

Mas há mais. Quem é que de nós aceitaria ter, no nosso emprego, um chefe, um superior, um diretor, coordenador, que nos berrasse aos ouvidos de cada vez que fizéssemos algo menos bem? Quem é que olharia para esse chefe como um exemplo a seguir, e admitiria que só seria possível à nossa empresa ter sucesso tendo à frente uma pessoa que nos humilha em frente a toda a gente, que nos chama burros, incompetentes, ignorantes, que insulta toda a gente? Façamos essa reflexão. Aceitaríamos isto para nós? Quereríamos isto para nós? Só é possível atingir-se a excelência se tivemos alguém a insultar-nos aos ouvidos com berros? Eu diria que não. Mas é essa a ideia que se promove nos programas de Ljubomir Stanisic, o chef mais idolatrado da televisão portuguesa.

Podemos sempre dizer que aqueles concorrentes já sabem ao que vão, que irão tirar proveitos da exposição, que ganham mais do que perdem, podemos discutir o que quisermos. O que não podemos é achar que ao exibirmos este tipo de comportamento perante milhões de pessoas não estamos a promover a violência laboral, a promover a ideia de que para que as pessoas façam um bom trabalho, então, têm de ser humilhadas e insultadas nos seus empregos.

Faço parte de uma geração de empreendedores que cresceu a ver em Steve Jobs um génio único, um dos homens mais admiráveis de sempre, já que conseguiu criar e depois reinventar aquela que é hoje a empresa mais valiosa do mundo, a Apple. Mas basta ler a maravilhosa biografia de Steve Jobs, escrita pelo fantástico Walter Isaacson, para perceber que Steve Jobs era isso tudo, mas era também um perfeito idiota, sem qualquer tipo de sensibilidade humana, sem capacidade de gerir relações pessoais, que abandonou as filhas, maltratou mulheres e abusou de drogas. Promover a cultura Stevejobsiana ou Stanisiciana ou manuelmouradossantosiana é promover aquilo que é o contrário do que se deve querer para uma sociedade mais justa, tolerante e humana.

Como o Big Brother nos mostra que continuamos a ter muita dificuldade em aceitar quem é diferente de nós
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Ainda esta manhã, e incentivado por acesas discussões no Twitter sobre o assunto, fui ouvir o podcast do programa da RTP2 “A Minha Geração”, brilhantemente conduzido pela Diana Duarte, em que ela entrevistou Rui André Soares, o criador da página da Comunidade Cultura e Arte. Isto porque o entrevistado foi alvo de dois enxovalhos públicos por parte da humorista Joana Marques, em dois episódios do seu programa, e podcast, “Extremamente Desagradável”.

Não me limitei a ouvir a sátira, quis ir ouvir o original, o bruto, antes de tirar as minhas conclusões. E o que é que ouvi? Um rapaz nervoso, ingenuamente honesto, que não tem qualquer medo de dizer “não tenho nenhuma opinião sobre isso”. Acho isso admirável nos dias de hoje, em que todos parecem ter opiniões muito firmes sobretudo, mesmo quando não fazem sequer ideia do que estão a falar. Claro que houve respostas atrapalhadas, algumas sem profundidade, o Rui André Soares soube vender-se mal, mas gostei da postura humilde que ele revelou, sem problemas em assumir-se leigo em muitas coisas (pintura, literatura), e resolvido quanto ao facto de não ter uma licenciatura, mas um curso profissional.

Achei bonito e honesto. Pensei, sobretudo, que o que ele construiu, um site dedicado à promoção da cultura, com uma página de Instagram de enorme alcance, é algo de valor, que acrescenta, que não faz mal a ninguém. Ouvi, depois, os dois episódios do programa de humor a humilhar o rapaz por não dar as respostas que nós, elite urbana e cultural, achamos que ele deveria ter dado, ou por estar nervoso ou simplesmente por ser honesto (como quando disse várias vezes que não se lembrava de nomes de pessoas, coisa mais normal do mundo). O enxovalho não se restringe, naturalmente, ao “Extremamente Desagradável”, e é altamente amplificado pelas redes sociais. De repente, temos milhares de pessoas a comentar, a gozar, a partilhar opiniões devastadoras para um rapaz que cometeu o crime de dar uma entrevista, e de estar nervoso. Não o defendo, como também se diz nas redes sociais, por ele ser de esquerda, ligado do Bloco de Esquerda, até porque está nos antípodas das minhas convicções políticas, defendo-o como defendo todas as pessoas que têm o direito de não ser publicamente humilhadas — e com as consequências muitas vezes sérias que isso pode trazer — para nosso próprio entretenimento.

Afinal, o que é que há aqui de tão diferente em relação à grande polémica “Big Brother Famosos”, Bruno Carvalho e afins? Diria que pouco. Violência física, emocional, psicológica, laboral são todas formas de violência inaceitáveis naquilo que deve ser uma sociedade que queremos ser mais justa, equilibrada.

Não podemos hastear a bandeira da saúde mental só quando nos dá jeito e ignorar essa mesma proteção da saúde mental quando em causa está um indivíduo que queremos humilhar, ou que nos diverte vê-lo a ser humilhado. Não podemos mostrar-nos como o rosto da luta pelos direitos civis e individuais quando no dia a dia também nós humilhamos outras pessoas. Não podemos acusar os outros de quererem fazer negócio com a violência, quando nós próprios também o fazemos, ou colaboramos com organizações que o fazem. Não podemos gritar aos sete ventos que temos de promover a sororidade quando vemos essas mesmas mulheres a humilhar, rebaixar e atacar outras mulheres.

A capa do humor também não pode servir de desculpa para tudo, como se a única forma de se fazer humor fosse através da humilhação de alguém, e promovendo essa humilhação nas redes sociais, amplificando-a perante milhares de pessoas. Nos dias de hoje, isso tem um nome, chama-se cyberbulling, e é totalmente inaceitável — pelo menos é isso que andamos a tentar vender aos nossos filhos. Mas depois são esses mesmos filhos que nos vêem a rir da humilhação pública dos outros.

No humor não é tudo eternamente aceitável, da mesma forma que isto é válido para quase todos os aspetos da nossa sociedade. Os tempos mudam, os hábitos mudam, a exigência muda, e as artes têm de se adequar ao mundo em mudança. Quando eu era miúdo, era absolutamente normal chamar “gordo”, “caixa de óculos”, “esqueleto” aos outros miúdos. Não havia isso da condenação do body shaming. Felizmente hoje há. Há 20 anos era vista como uma absoluta violação dos direitos das pessoas impedi-las de fumar em restaurantes e espaços fechados. Foi uma discussão que durou anos. Hoje, é evidente que se tomou a decisão certa. Há 30 anos ninguém discutia as touradas em Portugal, mas hoje discute-se, essa luta continua e está longe de ser ganha. Mas a evolução leva-nos para aí, e vai chegar o dia em que será proibido ferir de morte animais numa praça para nossa diversão.

O humor não é nem pode ser uma exceção nem uma desculpa aceitável para humilhar pessoas, pessoas essas que podem sofrer perturbações emocionais, pessoais ou profissionais, muito sérias, graves, e até irreversíveis por causa dessas “piadas inocentes”, sem intenção.

Há décadas que sou um consumidor compulsivo de humor, em todas as suas formas, em livro, sitcom, série, filme, podcast, stand up  e a verdade é que não preciso que alguém esteja a vexar alguém para me fazer rir. Os melhores humoristas norte-americanos tão idolatrados pela nossa comunidade de humoristas nacionais, quase todos eles, fazem humor genial sem necessidade de insultar ou rebaixar ninguém. E quando o fazem, quase sempre, a vítima são eles próprios ou as pessoas de quem verdadeiramente gostam, porque isso não é humilhação é assumidamente uma brincadeira, que qualquer um entende e aceita.