Em março passado, a propósito do Dia Internacional da Mulher, entrevistei Carla Tavares, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. E houve uma resposta que me ficou na memória.
"É muito difícil de se fazer prova [do assédio] porque a maior parte das situações são feitas no silêncio e numa circunstância de isolamento, sem testemunhas. O que é certo é que há por esse País fora vidas desfeitas e pessoas que vivem num sofrimento constante porque são vítimas de assédio, muitas vezes de assédio moral (...) Mais de 40% das vítimas de assédio são mulheres. É uma questão que tem um impacto de género muito forte."
A inquietude ficou cá dentro, e o sentimento de que, como jornalista e diretora executiva desta publicação que é direcionada para o público feminino, estava a fazer muito pouco para trazer luz e esclarecimento a este tema. A oportunidade (ou seja, a atualidade) apresentou-se após a entrevista de Sofia Arruda a Daniel Oliveira, na qual a atriz descreveu a situação de assédio moral e sexual por parte de um homem influente de uma produtora de televisão. A recusa de Sofia em ceder a esses avanços resultou no seu afastamento do pequeno ecrã.
O que podíamos fazer nós, MAGG, para problematizar esta questão? Falar com mulheres do meio artístico, é certo, mas sobretudo colocar a questão a montante, do lado das empresas ligadas ao mundo televisivo, os canais e as produtoras. Foi o que fez o Fábio Martins, na reportagem que publicámos na sexta-feira, 23 de abril.
O impacto desta reportagem, muito partilhada e comentada nas redes sociais, não me enche de orgulho. Porque a reportagem está incompleta. E não por nossa culpa. Está incompleta pelo silêncio de quem não respondeu às nossas questões, a saber: a RTP, a empresa pública de rádio e televisão (parcialmente financiada com o dinheiro dos nossos impostos) remeteu-se ao silêncio, assim como SP Televisão (produtora das novelas da SIC), Endemol e Shine Iberia (produtoras de formatos como "Big Brother", "Hell's Kitchen" e "The Voice Portugal") também não responderam às nossas questões.
SIC e TVI revelaram as suas estratégias internas no combate ao assédio no local de trabalho. Embora, verdade seja dita, me cause alguma apreensão que, por parte do grupo Media Capital (detentor da TVI e da Plural Entertainment) haja a intenção de criar "um comité de executivos seniores para analisar quaisquer queixas denunciadas". Em particular as palavras "executivos seniores".
O tema do assédio tornou-se um debate à escala global desde o início do movimento #MeToo mas, por cá, parece que não se passa nada. Não há registo de queixas, não há nomes e de nada vale essa insistência quase pornográfica em querer que as vítimas atirem nomes para a praça pública. Como se alguém, sem ter provas, se fosse arriscar a um processo de difamação. Como é que se prova uma conversa a dois num escritório, uma mão enfiada numa blusa, uma proposta sebosa a troco de trabalho, uma ameaça que mais ninguém ouve?
Pior. Como é que se pode pedir coragem a celebridades se nós, anónimos, não a temos nos nossos locais de trabalho, fechando os olhos a muitas situações, desvalorizando o sofrimento de quem é alvo de comentários, toques indesejados, ameaças e "bocas" que até podem fazer rir a turba no momento mas que, de engraçadas, não têm nada?
O assédio sexual e moral ligado ao mundo da TV e do cinema tem associado um lado fascinante, voyeurista. Quer-se saber quem são os "cabrões", os "tarados". Também se aponta o dedo às "fáceis" que "se puseram a jeito" (a revolta no estômago que me dá ver gente a escrever isto em caixas de comentários, a vomitar esta cloaca sem qualquer tipo de pejo).
Mas, se formos falar da funcionária da fábrica, do supermercado, do escritório, tolhida de medo num qualquer armazém pouco glamouroso, paralisada de terror perante os avanços de um superior, ou pior, do patrão, conformada com as bocas nojentas dos colegas, o cenário muda de figura. Aí, ninguém quer saber. Não é sexy.
Já ouvi relatos de mulheres em situação de precariedade a quem foi proposto sexo a troco de um dinheirito por fora. Mulheres que, muitas vezes, são mães solteiras, ou vivem em agregados familiares com baixos rendimentos, e que se colocam perante o cenário impossível de verem a sua dignidade violada numa base diária apenas para por comida na mesa e pagar a renda da casa.
É por essas mulheres que isto não pode ficar assim. É por essas mulheres que não têm voz, que não têm milhares de seguidores nas redes sociais, que não vão ao "Alta Definição" que nós, que temos voz, não nos podemos calar. E precisamos dos homens decentes para serem nossos aliados. Precisamos que as palavras, as reportagens, as entrevistas, se transformem em escrutínio, em medidas obrigatórias em todas as empresas, na criação de mecanismos que permitam a todas, desde a gaspeadeira à apresentadora de televisão, fazerem queixa sem ter medo de ver o seu trabalho posto em perigo.