Se nunca viram o "Feitiço do Tempo", não vão perceber tão bem a piada e eu vou lamentar isso profundamente. Se já viram (rufar de tambores e voz de Jorge Gabriel), então sejam muito bem-vindos a mais um dia exatamente igual ao de ontem. Estamos em casa, de pijama, a teletrabalhar (até quando é que vamos continuar a usar esta palavra?) e a papar séries na televisão. Amanhã? Same shit, ma friends.
Epidemiologistas estudam a curva do vírus, eu por cá tenho andado a estudar a curva das emoções. E, atingido o marco das duas semanas fechadinhos em casa (o que, convém notar, é o equivalente a um ano), foi-se a excitação dos primeiros tempos: foi-se a ganância do papel higiénico, foi-se aquela vontade súbita de fazer skypes com pessoas com quem tínhamos estado há dois dias, foi-se a paciência para estar agarrado aos telejornais o tempo todo e nem o Rodrigo Guedes de Carvalho nos salva disto — até porque toda a gente sabe como é que estão o país e o mundo: cheios de COVID.
Findou-se também o entusiasmo dos treinos online, porque agora treinar é pretexto para ir para a rua e, de repente, dou por mim num jogo de consola (dizer consola é como dizer teletrabalhar), cujo objetivo é manter a distância de segurança. Caíram também arrumações em casa, até porque não resta nada para arrumar, excepto a loiça que se acumula no lavatório da cozinha, que pode ficar para depois, porque, sei lá, ninguém vai sair ou entrar aqui.
AI, que isto hoje está negativo. Sentem o meu desespero? Partilham do mesmo desespero? Pois é, entra o país em fase de mitigação e entramos nós em fase "WTF, isto está mesmo a acontecer". Alguém que me dê uma injeção e que acorde quando isto acabar, porque não se vai perder nadinha. Bem, há a possibilidade de acordarmos e de não haver ninguém, mas vamos pensar pelo melhor.
Sim, pensamento positivo é importante. Mas peço alguma contenção, porque isto não é tempo para unicórnios felizes. Onde é que eu quero chegar? Aqui: bardamerda para o "vamos ficar todos bem". Em primeiro lugar, vamos ficar gordos e se isso acontecer é porque somos uns sortudos — se a ideia desses quilos vos arrelia, então atentem aos boletins diários da DGS, atentem aos vídeos que nos chegam de fora. Em segundo, muitos de nós até podem ficar super bem, mas a questão é: quando? Quando é que vou deixar de ser o Bill Murray?
Sinto-me sempre contente quando a vida sozinha se encarrega de nos esfregar na cara aqueles chavões pirosos que ninguém aguenta ouvir. Por exemplo: aquela ideia do "só dás valor quando não tens" é, assim de repente, do mais pertinente que há. E isso vê-se pelas coisas absolutamente simples e mundanas de que sentimos saudades.
Eu, por exemplo, sinto falta daquela sensação permanente do "ó meu deus, vou ser a última a chegar à redação". Sinto falta de me vestir e pensar "ergh, estás feia" (não estavas Ana, estavas linda, olha para ti agora) ou de pensar "ó, meu deus, olha-me para o tamanho desse buço." Hoje, acordo e já estou no trabalho. O meu outfit é pijama (se vocês se arranjam de manhã é porque, com todo o respeito, não batem bem da marmita). O buço que se lixe, está aqui vivo e de boa saúde. Tirá-lo, p'ra quê? Até já gosto dele.
Também temos saudades de ter saudades dos nossos namorados. Aqui por casa, decidi que durante o dia vou tratá-lo como um colega de casa, daqueles com quem não quero falar ou cruzar-me. Ele entra na cozinha, eu entro na sala, ele entra na sala, eu entro no quarto, ele entra no quarto, eu escondo-me na casa de banho. E é assim que a gente se vai entendendo. Este tema há-de ser desenvolvido melhor num próximo escrito. Por ora, estou na fase de recolha de material.
Também tenho saudades de me arrepender. De me arrepender de ter ido para o Lux, porque a minha cabeça está a explodir e porque, passando os olhos a medo pela aplicação do banco, percebo que gastei metade do ordenado. De me arrepender de ter comprado aquela saia que não serve para absolutamente nada. De me arrepender de não ter guardado dinheiro para viajar (agora, voz inspiradora), para ver o mundo, absorver outras culturas e expandir a minha mente. Viajar? Deixem-me ir ali à praia do Terreiro do Paço e eu sou feliz.
Sinto falta do meu peepz lindo, sinto falta dos meus colegas de redação fora do Slack e da minha família. Tenho muitas saudades da minha família, principalmente porque não sei quando é que volto a estar com ela. Sinto falta dos jantares de domingo, sinto falta de ver o meu pai a mandar-nos calar para ver a abertura do telejornal, sinto falta de vê-lo destruir uma travessa à colherada com aquele jeito transmontado. Sinto falta de receber a mensagem da minha mãe a dizer "traz tapparweres" e de lhe explicar que não é assim que se escreve tupperwares.
Enfim, sinto falta de muitas coisas. Mas, em suma, sinto falta de não ser o Bill Murray, que é um grande porreiro, mas que vive sempre o mesmo dia, pelo menos naquele filme em que estamos todos.
O filme eventualmente há-de acabar. Até lá, "vamos ficar todos bem". Que nojo, estava a gozar. Até lá, é ir fazendo o que há para fazer, o melhor que se consegue, dentro de casa, não fora dela.
E foi isto, meus pequenos Bills.
Até para a semana, que é como quem diz, até hoje.