Citando a célebre tirada de Francisco Rodrigues dos Santos, proferida no debate com André Ventura, em janeiro passado, "um esquadrão de cavalaria à desfilada na sua cabeça não esbarra contra uma ideia". Frase do ex-líder do CDS-PP que encaixa na perfeição ao fundador / mentor / guia espiritual / whatever da Prozis.
Miguel Milhão, um célebre desconhecido entre nós até à passada segunda-feira, 27 de junho, tornou-se o tema da semana ao:
- partilhar a sua opinião sobre a reversão da legalização do aborto nos Estados Unidos, elogiando os reconquistados direitos dos "bebés por nascer"
- ser o protagonista do podcast mais desastroso da história do podcasting no qual, além de insultar o seu País natal (o empresário vive nos Estados Unidos), denegrir os consumidores da sua empresa, destratar toda a gente que não elogiou o seu ponto de vista, humilhar influenciadores, desvalorizar as mulheres e a ciência em geral, proferiu a seguinte frase: "Se eu tivesse uma filha que tivesse sido violada, tentava falar com ela e eu cuidava da criança sem problema nenhum. Não consigo sacrificar um inocente pelos crimes de um criminoso."
Esta quarta-feira, qual criança intoxicada com a vanglória do feito de se ter tornado um tema num País que, aparentemente, despreza, Milhão (que eliminou a sua conta de Instagram), passou a descrever-se da seguinte forma na rede social LinkedIn:
- "master and woke mob master destroyer" (mestre e destruidor-mestre de multidões esclarecidas)
- "super power: Uncancellable. Cancel and woke mob master destroyer! You can run but you can’t hide!" (super poder: incancelável. Mestre destruidor do cancelamento e das multidões esclarecidas. Podes fugir mas não te podes esconder).
Miguel Milhão é o Elon Musk que merecemos. O Kanye West a que temos direito. O Jack Dorsey de Tuga Town. Um homem adulto com síndrome de Peter Pan (a avaliar pela bizarra notícia, avançada pela NiT, sobre a festa com cabras anãs e José Castelo Branco a rebolar, tudo isto no meio do local de trabalho), que com certeza tem muitas qualidades, uma vez que construiu um império de venda de manteiga de amendoim, "prota", leggings e códigos de desconto para mistura instantânea de panquecas. Não é a mesma coisa do que uma rede social ou a maior transformação no setor automóvel desde a Ford, mas cada um é para o que nasce. E Milhão nasceu porque a mãe não o abortou, segundo revelou no podcast "Conversas do Karalho" (nome apropriado).
O que me chocou mais em Miguel Milhão é a incapacidade gritante de construir um discurso coerente, a dificuldade em argumentar, a construção frásica básica. O que me chocou mais em Miguel Milhão foi a postura de vítima que teve ao longo de quase uma hora de monólogo (tenho uma pena imensa do desgraçado que teve de servir de interlocutor àquilo), sem perguntas, sem contraditório, como se aquilo que ele próprio gerou lhe tivesse sido destinado, como um fado (podes tirar o rapaz da tuga mas não tiras a tuga do rapaz).
Miguel Milhão acha, no seu pequeno mundinho de barcos e "recursos ilimitados", que "um País inteiro" está contra ele. Chega a ser constrangedor que um empresário que criou um império de "prota" e "whey", tenha um discurso tão semelhante a um concorrente da "Casa dos Segredos" (sem ofensa aos concorrentes da "Casa dos Segredos"). E daí, até faz sentido.
Mas Milhão é o espelho de um determinado tipo de pessoa, que baseia as suas argumentações não em factos mas em crenças, alicerçadas em "factos alternativos" de sites obscuros e dos confins das redes sociais, como aquele que mostrou no direto, o "abort73", um site cuja credibilidade é altamente duvidosa, está repleto de informações falsas, e que é financiado pelo líder de um grupo religioso chamado Loxafamosity Ministries. Milhão é um exemplo de um tipo de gente que argumenta com "é a minha opinião", "gostos não se discutem", "estamos num País livre", argumentos esses que, em tantas vezes, são usados para insultar, denegrir ou apenas para não admitir erros crassos e falta de conhecimento.
Por fim, o que me deixou mais consternada naquela quase uma hora de discurso patético-infantilóide, pejado de mania da perseguição, complexo de Deus-Sol e uma enorme falta de noção, foi a ausência de referência à autonomia das mulheres e à agência sobre o seu próprio corpo. Para Milhão (e para tantos outros fanáticos que se dizem pró-vida), as gravidezes ou existem no vácuo ou são levadas a cabo por autómatos. Os seres humanos responsáveis por viabilizarem uma gravidez (pessoas com útero) não têm, para pessoas como Milhão, voto na matéria. Nem mesmo em casos extremos, como violações, risco de vida para a mulher e para o bebé, deficiências graves.
Milhão, talvez devido à sua tocante história de vida, filho de mãe solteira nascido cego de um olho, queria salvar todos os bebés do mundo, para que todos tenham a possibilidade de fundar um império de "prota" que tem um "seguro mesmo top". É um bom princípio mas, em vez de enveredar por caminhos que condicionam as liberdades individuais (das mulheres, seres que Milhão considera claramente indignos de menção), talvez fosse melhor abrir uma instituição para crianças carenciadas, ou criar uma bolsa de estudo. Qualquer coisa que não envolvesse obrigar hipotéticas crianças violadas a terem bebés.
Miguel Milhão é pela vida a qualquer custo. Eu sou pela vida com dignidade. Por isso, sou uma defensora acérrima, quer da interrupção voluntária da gravidez (que, apesar de em condições muito diferentes, existe desde tempos imemoriais), quer da eutanásia. Porque ambas preconizam aquilo que deve ser a vida numa sociedade evoluída, democrática, compassiva e justa: o direito a dispor do que nos permite existir como pessoas, o corpo.