Acordo cedo. Há geada no quintal, nos campos aqui à volta. Estaria um lindo dia de Inverno não fosse este o amanhecer do segundo dia do Segundo Grande Confinamento. Escrito assim, com maiúsculas, dá-lhe um ar imponente, uma dimensão de batalha, embora nesta guerra sejamos apenas soldados rasos.

Batem as oito no sino da igreja. Depois de alimentar os gatos semi-vadios que por aqui se vão instalando, ligo a TV. "Homem esperou 13 horas em ambulância por uma cama", "Filas de ambulâncias no Hospital Santa Maria". A angústia aperta-me a garganta, o espanto, a impotência. E um alívio egoísta. O meu pai está há uma semana internado e por lá há-de ficar. Além dos problemas que o atiraram para lá, contraiu o novo coronavírus. Ironicamente (e para já) está assintomático.

Ao ver os rostos de bombeiros, iluminados pela incandescência das sirenes, a expressão desolada, entre o desânimo e o assombro de medo, dou por mim a alegrar-me pela entrada atempada do meu pai no hospital. Hospitais, aliás, porque, do público, já foi transferido para um privado. "Precisamos libertar camas", diz-me a médica, num tom profissionalmente neutro.

Março de 2020 parece um passeio no parque, comparado com o que se avizinha. A próxima semana vai ser um inferno.

De volta ao noticiário, agora a campanha eleitoral.

O movimento #VermelhoemBelem, em que anónimos e figuras públicas pintaram os lábios de escarlate em apoio a Marisa Matias e contra o machismo (nem lhe chamaria machismo, diria apenas boçalidade), ocupa lugar de destaque. Depois (e sempre, o tema omnipresente nesta campanha, como uma mancha que não sai), André Ventura. O candidato presidencial fez anos esta sexta-feira. Vou ao Google, por curiosidade, saber quantos.

André Ventura é da minha idade. Nasceu em 1983, como eu. Completamos 38 anos em 2021. Não sei se me choque, se me espante, se encolha os ombros. Apetece-me dizer 'ya, normal'. André Ventura não é uma exceção da minha geração. É produto de uma geração. Não é especial, não é um génio. É produto de uma série de fatores, conjuga alguma esperteza e oportunismo. Os ingredientes estavam todos lá, bastava juntar água e agitar. Ele chegou primeiro e fez a mistura. Como um Tang manhoso para beber num lanche em que se estraçalha a democracia em migalhas.

Qualquer boa intenção do #VermelhoemBelem é eclipsada pelas imagens que se seguem. Maria Vieira encarna Marilyn Monroe e, num momento que nem o mais genial dos guionistas se lembraria de inventar, canta "Happy Birthday, Mr. President".

Em 1962, naquela que seria uma das suas últimas aparições públicas antes de morrer, Marilyn Monroe usou um magnífico vestido decotado, cor pérola, brilhante que, em 1999, foi leiloado por 1,3 milhões de dólares. O então presidente dos EUA, que completava 45 anos, seria assassinado pouco mais de um ano depois.

Naquele que é certamente o momento mais WTF de quase 47 anos de campanhas eleitorais em democracia, até Ventura se sente constrangido. Há um lampejo de "o que é esta merda?" no olhar do mesmo homem que apelida históricos da luta antifascista de "velhos bêbados" e insinua boçalidades sobre mulheres que usam batom vermelho. Há ali um microssegundo — quase consigo ver os neurónios de Ventura a colapsarem — de noção. Que passa, claro.

É isto que fica. Uma atriz, outrora simpática, de quem até gostávamos, a dar um beijo repenicado na testa de um homem que se diz incumbido por Deus para cumprir a missão de fazer do País território de gente de bem. É isto que provocará, ao longo deste sábado, risos em algumas casas, nojo noutras, tristeza em algumas, indiferença em muitas porque, no momento em que vivemos, a maioria tem mais com que se preocupar.

Mas fica sempre aquela sensação de que 'isto', um aniversário comemorado em pleno confinamento, com gente delirante de um fervor quase religioso, sem máscaras, a bater palmas e a aplaudir um homem que nem 40 anos tem, é mais forte, em termos comunicacionais, do que uma certa elite bem intencionada a postar os lábios pintados de encarnado nas redes sociais.

Porque, ao fim do dia, com quem é que o povo que tem medo de ligar o aquecedor para não pagar um balúrdio de eletricidade se identifica? Esse é o meu medo. O medo de que a revolta inconsequente, apenas para causar impacto nas redes sociais, o apoio à causa do instante porque temos todos FOMO (fear of missing out, em português, o medo de perder o momento), não traga nada de positivo, apenas acicate o descontentamento, apenas afaste as fações de um País que anda cada vez mais a duas velocidades.