Um rapaz decidiu fazer dumpster diving, gravou o resultado, partilhou no Instagram e a coisa tornou-se viral.

De repente, meio mundo acordou para um número que se esforçou para esquecer: no nosso País desperdiça-se um milhão de toneladas de alimentos por ano. Mas como números grandes como estes são difíceis de quantificar, vamos lá simplificar: dividido por todos, cada português desperdiça 132 quilos de comida por ano, o equivalente a 50 mil refeições diárias que acabam no lixo. É muita comida.

Mas, como em tudo, fácil mesmo é apontar o dedo e descartar responsabilidades. A culpa é dos retalhistas, é dos supermercados, e do governo e é da COVID. E não deixa de ser. Mas sabes de quem também é a culpa? Nossa, pequeno consumidor que quer despensa cheia e frigorífico carregado, não vá o COVID-3459 chegar e eu não estar preparado.

Eu também já fui das que ia ao corredor dos frios e enfiava o braço até ao fundo para tirar os iogurtes com o prazo de validade mais alargado. Ou a que escolhia as bananas mais verdes, porque sabe-se lá quando me ia apetecer comê-las. Ou também a que não pegava numa lata de tomate amolgada porque já que vou pagar que seja por produto perfeitinho.

Mas um dia, passei pelo instagram da Anna Masiello e vi as fotografias da comida que ela trazia do lixo. Não por não ter dinheiro para comer, mas porque, de facto, era quase irreal a quantidade de coisas que se encontram assim que se levanta a tampa do caixote que está à frente de um qualquer supermercado.

Na altura, a MAGG foi a primeira a dar a conhecer a história desta italiana que trabalha todos os dias para que o mundo tome consciência do que deita fora e, numa noite, também eu me juntei à Anna, naquele que foi o meu primeiro dumpster diving.

Éramos quatro, fomos a um só supermercado, e não tivemos braços nem sacos suficientes para trazer tudo o que lá estava. Só um caixote estava cheio de pão até ao topo, era impossível fechá-lo. Refeições embaladas, iogurtes, quilos de fruta e legumes e até bolos de aniversário.

Desde aí que volta e meia lá regresso ao lixo e, de todas as vezes, nos quilos de comida que trago comigo, vem também o peso da impotência. Como é que é possível isto acontecer todos os dias?

Crónica. Comi comida apanhada do lixo. Não só sobrevivi, como vou voltar
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Ja culpei os retalhistas, claro. E ainda culpo, porque por muito que perceba que um Continente não é uma instituição de caridade, não percebo as dezenas de latas de comida para animal que uma noite encontrei no lixo, ou as embalagens de legumes cujo prazo só termina dali a dois dias, ou ainda as sacadas de pão às vezes ainda morno que acaba no lixo. É que o importante é ter as prateleiras cheias até à hora de fecho e o cheirinho de pão acabado de fazer. Disclaimer, não foi acabado de fazer. Quando muito foi acabado de descongelar, ou vocês acham que há um padeiro a fazer bolinhas de farinha e isco natural por trás de cada forno do hipermercado?

Mas essa de culpar o outro é fácil e acaba por ser só mais uma desculpa para, da próxima, continuar a escolher as bananas mais verdinhas "porque as outras já sabemos que vão para o lixo". Não, vão para o lixo porque ninguém as compra.

Se estiverem atentos, o Continente já tem sempre uma cesta onde põe as bananas que ficam sozinhas, montando ali uma espécie de Tinder para as frutas solteiras. Façam swipe, com sorte acabam num date feito de panquecas que nem precisam de açúcar.

A mesma cadeia acaba de anunciar a criação de cabazes de cinco quilos de fruta e legumes mais maduros à venda por 2,50€. Fico feliz. Na mesma linha, o Auchan e a Makro estão disponíveis na aplicação Too Good To Go, que disponibiliza caixas de alimentos a um preço muito reduzido de produtos que, naquele dia, acabariam no lixo.

Lá em casa, uma banana faz um bolo, umas papas e um estufado
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Além disso, já todas as superfícies colam um selo colorido nos produtos que estão com um prazo de validade apertado. Da próxima que optar por aqueles cogumelos já a gritar ajuda, prepare-se, vai sentir-se a Madre Teresa de Calcutá do desperdício alimentar.

Ainda assim, esta capa de super herói pode mesmo é vesti-la em casa, em todas as vezes que abre o frigorífico e repara que tem mesmo só o que precisa. E que se sobrou batatas do jantar e ainda tem ovos no frigorífico, acalma a vontade esparguete à bolonhesa e faz uma tortilha. E que se o prazo do iogurte acabou a 03/08 e hoje é dia 4, não se nos vai gangrenar um membro por comê-lo. No limite, são bactérias boas para o intestino. O segundo cérebro, não é assim?