Há muito tempo que já ninguém fala dos golos de Cristiano Ronaldo. Só dos auto-golos, ou golos-contra, como dizem os brasileiros, uma expressão que aqui se aplica na perfeição. Há meses que Ronaldo marca golos contra ele próprio, e parece que nem se apercebe disso. E é muito triste que assim seja. É muito triste que Cristiano tenha andado 20 anos a trabalhar para chegar ao topo do mundo e que depois, em meia dúzia de meses, esteja a destruir a imagem do nosso maior de todos, do herói, do rei português do mundo. Mas se só há uma pessoa que pode colher o mérito do seu sucesso — o próprio, mais ninguém — também só há uma pessoa a quem se pode apontar o dedo agora, quando tudo parece estar errado — outra vez a ele próprio, a Cristiano.

Mas vamos começar por uma confusão que parece persistir na cabeça não só de Ronaldo como da família de Ronaldo e de todos aqueles que acham que não há o direito de apontar o dedo a Ronaldo. Quando se critica as atitudes de Cristiano não se está a ser ingrato, injusto ou invejoso. Quando se critica as atitudes de Ronaldo não se está a querer apagar a história que ele construiu, a diminuir os seus méritos ou a cuspir-se no prato de onde se anda a comer há anos. Quando se critica as atitudes de Ronaldo não se está a dizer que ele está velho, que é mau jogador e que devia reformar-se. É o contrário de tudo isso. Quando se critica as atitudes de Ronaldo está-se apenas a dizer que ele errou, e errou. Ele também erra, pasmem-se. E o problema não é o que se passou neste último jogo, em que saiu antes de a partida terminar, quando os colegas ainda estavam a trabalhar. O problema vem de trás e arrasta-se.

“Se o Ronaldo não vier, vem o filho". Mãe Dolores quer o filho (ou o neto) no Sporting
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Caiu muito mal a quase toda a gente aquela birrinha no verão, em que Cristiano fez tudo o que podia para ser transferido. Andou a oferecer-se a meio mundo, não se juntou à equipa quando devia e continuou de férias, e isso passou uma imagem péssima, de que está acima dos outros, de que é mais do que alguém, e, num desporto coletivo, ninguém é mais do que ninguém. Ronaldo foi o melhor do mundo durante muitos anos, mas nunca ganhou um jogo sozinho, teve sempre ao lado dele 10 colegas que o levaram a ser o maior do mundo. Negar isso, sim, é ser ingrato, injusto e indecente. Essa birrinha chegou ao mundo inteiro, porque o mundo inteiro está atento a Cristiano, dentro e fora do campo. E dos mais atentos são as crianças, que o idolatram, que o querem copiar nas fintas, nos golos, nos carros, no corte de cabelo, na postura. E nenhum pai quer ensinar um filho a achar-se mais do que os outros, a desrespeitar os colegas de profissão.

O problema principal de Ronaldo não é só um problema de Cristiano, é um problema estudado na Psicologia, o de alguém que foi durante anos e anos o melhor do mundo, e visto como o melhor do mundo, de repente, ver-se ultrapassado. Ou melhor, Cristiano não se vê como ultrapassado, porque ele genuinamente acredita que ainda vai provar a toda a gente que é o melhor do mundo. Ele não quer aceitar, e não aceita, que já não é o melhor do mundo. E não é. De todo. Da mesma forma que Pelé não aceitou que tinha de deixar de jogar e andou a arrastar-se pelo Cosmos. E Eusébio, que andou pelo Beira-Mar e o União de Tomar. Maradona, que já depois de ter parado, voltou aos relvados com exibições penosas. Acontece a Ronaldo, hoje, como aconteceu a todos os que foram, no passado, o que Ronaldo é hoje. Essa não aceitação da realidade é o que está na base de tudo o resto.

Foi duríssimo para Ronaldo perceber, no verão, que afinal não é desejado por todos. Que o Real Madrid, onde é Deus, o achou demasiado velho para regressar. Que o Bayern de Munique não achou importante contratá-lo. O Atlético de Madrid não o quis. E ele, Ronaldo, consciente de que ainda é o melhor do mundo, jamais se sujeitaria à humilhação de regressar, já, ao seu Sporting, o que seria assumir que o fim estava aí. Cristiano voltou ao United porque não tinha mais portas aonde bater. E  o clube percebeu isso, o treinador percebeu isso, e Ronaldo não fez questão nenhuma de demonstrar o contrário. Desde o início do ano que anda de trombas, amuadinho, a armar conflitos, e, sobretudo, a jogar pouquíssimo, a não marcar golos, o que o deixa ainda mais irritado, porque ele continua a achar que é o maior do mundo, mas apenas não o consegue provar porque não tem uma equipa à altura — foi assim o ano passado. Ou seja, os culpados são os outros, não é ele.

Depois da birrinha do verão, veio o episódio da pré-temporada, em que Ronaldo saiu do estádio quando o jogo ainda decorria, uma vez mais numa tremenda falta de respeito e consideração pelos colegas, pela equipa e até pelos adeptos, que gostam de sentir que os jogadores da sua equipa gostam tanto do clube como eles próprios. E os adeptos não saem antes dos jogos (só quando o resultado já interessa pouco e querem fugir ao trânsito, vá).

E agora este episódio, em que Ronaldo foi para o balneário com o jogo ainda a decorrer, amuado porque não entrou.

Ronaldo será um fator de desestabilização da seleção nacional se for com esta atitude para o Mundial. Na verdade, Ronaldo irá ao mundial pelo estatuto que tem, pelo peso institucional que tem, por tudo aquilo que a seleção lhe deve, e não por aquilo que está a jogar, porque isso é muito, muito pouco. Qualquer avançado selecionável, neste momento, tem mais golos, melhores exibições e mais jogos do que Ronaldo. No entanto, ele será titular no Qatar, disso não há grandes dúvidas — até porque o selecionador será Fernando Santos. Não que mereça, porque não merece.

Como português, como fã de Ronaldo, como pai de filhos que olham para ele como um modelo, preocupa-me que ninguém à volta de Ronaldo tenha poder de influência para lhe dizer: para. Chega. O Ronaldo que todos conhecemos não merece este Ronaldo de agora, este reizinho que não aceita que o tempo passou. O dele, passou, enquanto melhor do mundo. Não passou enquanto desportista modelo, enquanto exemplo para milhões de crianças e outros futebolistas. Mas, se ele continuar assim, vai passar também. E é triste.