Os leitores perguntam, a psicóloga Sara Ferreira responde. É assim todas as semanas. Saúde, amor, sexo, carreira, filhos — seja qual for o tema, a nossa especialista sabe como ajudar. Para enviar as suas perguntas, procure-nos nos Stories do Instagram da MAGG.
Caro leitor,
Se a sua pergunta fosse o título de um filme, este seria: “Controlo e Sofrimento nas Relações”, ou algo assim. A verdade é que os ciúmes já se tornaram uma espécie de património não declarado dos relacionamentos amorosos, como se fosse suposto aceitar que eles estão lá mas ninguém os vê.
Ainda bem que começa o seu discurso a admitir que o seu ciúme não é saudável. E o que pode definir a ideia de “bom” ou “mau”? Nestes casos, a sensação de posse.
A pior maneira de nós tentarmos estabelecer uma relação com alguém é pelo controlo. Controlo do quê? De achar que o outro agora, em função do nosso encontro com ele, pertence-nos. E aí é como se nós pegássemos num lápis azul e desenhássemos à sua frente um territoriozinho com umas estacas e um arame farpado ou uma cerca elétrica e lhe disséssemos assim: “Olha, tu só te moves aí, 'tá?”… podendo ainda acrescentar: “Porque tu movendo-te aqui dentro eu estou bem… Se tu pulares a cerca (literalmente!) eu morro…”.
Geralmente, o nosso jeito latino de avaliar a qualidade de um relacionamento é verificar se as partes envolvidas "se possuem". Por esta métrica, infere-se que os ciúmes seriam um marcador positivo. Então, se há sentimento territorialista, logo, isso denotaria amor.
Neste artigo aqui e aqui explico de que formas esta mitologia linda mas absurdamente infeliz destrói as bases dos relacionamentos amorosos entre pessoas que, supostamente, queriam ver-se saudáveis, felizes e radiantes nas suas ralações (opss, quer dizer, relações).
Mas contrariamente ao que se costuma pensar, o ciúme não é fruto de insegurança mas do medo de ser passado para trás e ficar “por baixo”. Portanto, é um medo que ameaça o narcisismo de quem o possui, e quanto maior são os ciúmes quanto mais centrado no próprio umbigo é um ser.
Veja. É o nosso próprio sofrimento. Ao controlar o outro ou ao achar que o outro pode ter um comportamento que nos dê segurança, nós só estamos a olhar para o nosso próprio sofrimento porque é impossível controlar o que quer que seja, e muito menos o direito de ir e vir do outro se assim entender. Ainda para mais, quando me diz que “sente uns ciúmes incontroláveis da minha parceira e não percebo porquê”, algo me diz que a dita cuja até nem deve ter assim tanta participação no despertar dos seus ciúmes, sendo essencialmente um produto da sua “maquinação” mental… (mas um êxito na sua sala de projeções pessoal!). :)
É muito possível que o leitor nunca se encontre suficientemente em paz, afinal o ciúme tem pouco a ver com a pessoa amada. Já notou que, muito provavelmente, nenhuma garantia oferecida pela sua parceira é capaz de abrandar a sua desconfiança?!
Repare o leitor, se nem o nascimento dos próprios fios de cabelo controla!... E nem a nós mesmos, que bem tentamos… pois diga-me (seja sincero!), quantas vezes consegue ter sempre um comportamento linear…?
Ter ciúmes de alguém ou manifestá-lo até pode parecer fofinho, de início, quando a paixão se come à solta, mas não quando se pretende levar uma vida em conjunto, pois torna-se exaustivo e infantil. É como se o seu ciúme quisesse garantir um lugar de exclusividade pela constante averiguação e não propriamente pela experiência mútua de contentamento.
Não sei porquê, mas desconfio que um sonho de consumo para si seria contratar a equipa do CSI para resolver questões um tanto menos graves do que assassinatos, como por exemplo, “checar” a sua parceira… verdade? ;) Bom, não sei, mas de uma coisa estou certa. E o que é? Supor qual será o seu maior medo.
O principal medo do ciumento é ser abandonado ou enganado, e esse medo obsessivo acaba por criar uma relação competitiva com o resto do mundo e controladora com o(a) parceiro(a). Neste artigo aqui falei um pouco acerca da forma como funcionam as “gavetas” dos nossos arquivos, e da forma como certas situações servem “apenas” como mote para desengatilhar os nossos arquivos pessoais ligados a certo tipo de emoções ou sentimentos (sim, como o medo do abandono).
Por exemplo, quando sofremos uma rutura de relacionamento, todas as nossas questões de rejeição e abandono são desengatilhadas e é por isso que sofremos e, muitas vezes, a dor é extrema. E nós, na nossa “ingenuidade” romantizada pensamos que isso é por conta apenas “daquela” pessoa que todo estes sentimentos acontecem. Mas a verdade é esta: dentro do nosso cérebro existe uma espécie de arquivo gigantesco com várias gavetas. Então, vamos supor que nós abrimos a “gaveta” do abandono e da rejeição. Ok? Todas as suas questões emocionais e lembranças (desde a sua conceção) que estão armazenadas aqui e muitas dessas memórias não atendemos de forma consciente, pero que las hay, las hay.
O caso dos ciúmes patológicos, precisamos entender que há muitos aspetos que se assemelham com vários quadros psiquiátricos.
É frequente as pessoas com esquizofrenia, transtornos de personalidade borderline, obsessivo-compulsivo (ou apenas alcoolizadas) manifestarem um certo grau de paranoia ciumenta.
Pense comigo. Qual é a componente principal dos ciúmes? Justamente essa paranoia que desconfia do outro e para isso faz-se utilizar de dados parciais, conclusões incompletas/incorretas e interpretações distorcidas da realidade para legitimar o seu mal-estar.
O ciumento nunca diz: "Eu sinto ciúmes". Diz sempre: "Tu fazes-me sentir ciúmes porque ages assim”. De certa forma, parece que ao exteriorizar a causa do mal-estar, a pessoa não assume a responsabilidade devida pelo seu próprio sentimento.
O facto é que às vezes acho que o FBI só devia contratar quem apresentasse “ciumatologia crónica”, pois ninguém lhes bate em matéria de esperteza. Ele é rastrear o outro, ele é detetar qualquer esgar de mico-expressão, ele é coletar e cruzar dados para confirmar as suas teses de traição, ele é escalpelizar qualquer vestígio de incongruência… E para quê? Para garantir que "tudo" foi vistoriado na mais certificada perfeição, porém, no fim do dia há uma dúvida que o assola sem dó: “o que quer que eu faça, será o suficiente para “garantir” a relação?”
Existe sempre um sentimento de menos-valia e baixa "gostabilidade" nas pessoas ciumentas, como se qualquer pessoa fosse potencialmente mais atraente, bonita, inteligente, sexy ou interessante.
É importante realçar também que o ciúme está diretamente associado à falta de auto-estima, pelo que, nalguns casos, o parceiro ciumento não consegue, sozinho, dar resposta às dificuldades manifestadas. A intervenção terapêutica pode ser útil na resolução destes problemas.
Para ter uma ideia, note que o sentimento de importância pessoal, por exemplo, tende a ser construído na infância, ao termos sido (ou não) crianças estimadas e admiradas pelos nossos pais e familiares. Quem não cultivou isso precisa ainda fazê-lo na vida adulta.
E de que forma? Um caminho possível é pelo desenvolvimento dos sentimentos de competência pessoal e de auto-eficáfica. Isso significa ter desempenhos satisfatórios em diferentes áreas da vida para poder edificar uma fortaleza interior que não seja abalada por uma qualquer comparação.
No entanto, o ciúme potencia a paranoia e o sentimento de inferioridade, e a juntar à “festa” conta com a obsessividade para partir o bolo.
Qual Hercules Poirot, qual quê, o bom ciumento acaba sempre por tornar-se mais numa personagem ao estilo de Hercules Pirô, como este aqui.
Sim, um detetive vão, pois age de forma a tentar investigar provas físicas ou emocionais, espiolhando tudo que o outro diz, sente e se está ou não está onde diz que está. Mas é nessa pressuposto (ou melhor, necessidade) de controlo, previsibilidade e imutabilidade que a pessoa se perde. Afinal, essa é uma aspiração digna de uma "Alice in Wonderland” e não de um filme baseado em factos da vida real.
A vida real é imprevisibilidade, fluxo, mutabilidade, transformação. E neste sentido, o ciúme é a antítese de um amor mais genuíno que precisa de espaço, tempo, generosidade e liberdade para florescer. E sem perceber, com isso faz murchar a flor que porventura tanto diz querer preservar… É como naquela história da menina que tentou segurar o passarinho querido com tanta força que acabou por esmagá-lo…
A falta de confiança abre sérias frestas para que a outra pessoa se sinta insatisfeita, encurralada e, consequentemente, com vontade de encontrar uma forma de sair da relação. Sem ter noção, as atitudes ciumentas podem incentivar a infidelidade.
Como superar, então?
Começando por soprar (leu bem, soprar…para superar!)… Meu amigo, respire, não se desespere e relaxe porque… nada está sob o seu controlo! Tomara que se tivesse a si mesmo no estrito domínio do seu (auto)controlo e (auto)gestão emocional (bem mais difícil, não é?!).
Para iniciar um processo de superação do ciúme (que é possível, acredite) é preciso não só revisitar o seu modelo de amor, de vínculos, como repaginar a sua vida, a sua visão de mundo e a sua personalidade.
Neste vídeo que fiz, e que poderá ver em baixo eu vou dizer-lhe um motivo importante pelo qual a nossa mente nos tortura com memórias que preferíamos esquecer de vez, mas mais do que isso. Vou propor-lhe alguns exercícios práticos que o poderão ajudar a reverter essa sensação de sofrimento com as memórias dolorosas do passado e ainda a redireccioná-las para a construção de algo mais positivo e com mais sentido para si e para os outros. Ou no fundo, ensinar-lhe a conseguir transformar as suas dores em dons.
Não é só de um problema amoroso de que se trata o ciúme. Este é um sintoma que nos sinaliza, acima de tudo, como nos relacionamos com a própria felicidade nas nossas vidas.
Há coisas que não são dons inatos. Treinam-se. E a entrega, a potência pessoal e a capacidade de estar vulnerável diante do outro – que para aplacar o ciúme seria fundamental – são algumas delas.
Depois há outras coisas ou pequenos gestos como cuidar de si, destencionar o corpo, respirar, inspirar (para não pirar, lembre-se), perceber as possíveis consequências do que diz, antes de atirar tudo o que lhe vem à mente, filtrando esse hábito viciante (mas totalmente desmancha-prazeres), e aprender a conviver com o medo da rejeição, do abandono.
Quando o leitor começa a perguntar-se sobre a raiz desse tipo de sofrimento e a permitir-se sondar um pouco mais (nas camadas mais profundas) – e nisso um processo terapêutico ajuda muito – é aqui que começamos a lidar com as emoções reais, com as histórias que vem carregando. Caso contrário, elas vão continuar a acumular-se e a tornar esses sentimentos cada vez piores na sua vida.
Lembra-se da historicidade de cada pessoa que lhe falei atrás a propósito dos nossos arquivos pessoais e suas “gavetas”. Então, e com vista a um processo de superação do ciúme patológico, deste arquivo que se abriu, vamos buscando algumas fichas e vamos rescrevendo a história, ou seja, vamos finalmente poder cuidar de muitas feridas emocionais, com a necessária perícia e habilidade. É só quando chegamos a este ponto aqui que o alívio é gigantesco (o contrário dos “alívios” momentâneos que com certeza tão bem já conhece, como o "scanear" e pseudo-controlar tudo e todo(a)s) e isto ainda vem acompanhado de um benefício importante chamado compreensão.
Neste momento, é possível evoluir, no sentido em que entende os seus próprios sentimentos, qual o tipo de dinâmicas inconscientes que podem estar a acontecer consigo que o fazem repetir este tipo de comportamentos e/ou relacionamentos, etc..
Assim, um processo psicoterapêutico, de entre as suas tantas abordagens, pode ajudá-lo a ter essa compreensão para que num próximo relacionamento tenha uma experiência muito mais saudável.
Podemos combater o ciúme de variadíssimas formas e todas elas não dependem da pessoa amada, uma vez que foco é interno. Você olha com mais carinho e benevolência para si mesmo e começa a desenvolver algo essencial para uma vida mais feliz: o amor-próprio.
Sim, amor-próprio! Esse termo atualmente tão em voga (e que não se confunde com egoísmo ou qualquer outra distorção). E já que todos desejamos a felicidade, especialmente para o ano que acabou de entrar, porque é que o amor-próprio é assim tão importante para ser feliz?
Porque quanto mais nos amamos, mais conseguimos e podemos amar os outros. E quem não se ama não reconhece em si qualidades e talentos (quanto mais nas outras pessoas!) e isso cria uma vida assente no medo.
Precisamos de amor-próprio para nos expressarmos ao mundo com coragem e confiança. É difícil ser-se feliz quando se tem uma “voz” interna critica a cobrar-nos o tempo todo; ou (pior) a impelir-nos a cobrar dos outros aquilo que nem mesmo nós, muitas vezes, nos sabemos dar…
Este meu outro vídeo, disponível aqui em baixo, é para todas as pessoas que costumam sofrer por antecedência e ficar totalmente ansiosas dentro da sua cabeça com cada decisão ou imprevisto e que acabam por perder muita energia mental sem de facto resolver algum problema ou ganhar maior lucidez a respeito do próximo passo.
Nele, eu ofereço-lhe 3 dicas práticas para saber quais são os comportamentos que estão a gerar ansiedade e essa sensação de estar sempre stressado(a) com a vida ou com os outros (especialmente, os mais próximos) e que comportamentos e atitudes (em 3 dicas específicas) pode implementar a partir de hoje para conseguir gerar mais leveza na sua vida.
Quem dera que agora se sinta um pouco mais inspirado a concentrar-se na qualidade da própria vida, e das próprias emoções, na fluidez da relação, na generosidade de se percecionar a si mesmo como um presente para o mundo. Desta forma, a sua parceira não precisaria ser controlada, mas naturalmente – sob a força de uma presença tão magnética – inevitavelmente voltaria com ânimo para se refrescar (como faz um beija-flor no bebedouro).
Agora é consigo, e com todos nós, meu caro leitor.
Um abraço e até para a semana!