"Amo-te, mas não quero dormir contigo". A reportagem, publicada no "The New York Times"  no início de fevereiro, sobre a realidade de casais com uniões felizes, que dormem ou em camas ou em quartos separados, dava mote à pergunta. Então e em Portugal, também é assim?

Fizemos a nossa sondagem informal no Instagram, à qual responderam 937 pessoas. À pergunta "No contexto de uma relação em que há coabitação dormiriam em camas / quartos separados?", 48% respondeu 'sim' e 52% respondem 'não'. Ou seja, havia aqui matéria para refletir.

sondagem sono

De acordo com um inquérito de 2012, levado a cabo pelo Better Sleep Council, um em cada quatro casais (de uma amostra de 542 inquiridos) disse dormir em camas separadas. A pesquisa foi feita nos Estados Unidos e não existem dados equivalentes em Portugal.

O que sabemos, e a História conta-nos isso, é que esta coisa de partilhar a mesma cama é uma "modernice" com pouco mais de um século (e basta ver uma temporada de "The Crown" para perceber que, até há bem pouco tempo, partilhar o leito era coisa reservada às classes sociais mais baixas, uma vez que aristocracia e realeza mantinham o hábito de ter quartos separados).

"Durante muito tempo, o casamento era de conveniência, era quase um contrato social e prático de reunião de bens. As pessoas não tinham qualquer interesse em partilhar o leito a não ser para fazerem os filhos. A partir do momento em que casamos por amor, faz todo o sentido partilhar o espaço", começa por explicar Catarina Mexia.

A psicóloga clínica, especializada em terapia familiar e individual, salienta que o ato de dormirmos agarradinhos ao nosso parceiro traz inequívocos benefícios. "O abraço promove a produção de uma série de hormonas que nos fazem sentir bem, que nos fazem aproximar do outro, que nos fazem sentir uma série de emoções que são boas."

Catarina Mexia
Catarina Mexia - Psicóloga Clínica Especializada em Terapia Familiar e Individual créditos: DR

No início é tudo lindo e a paixão até nos faz ouvir ao longe aquilo que, ao fim de alguns meses, se torna um ronco capaz de acordar a Bela Adormecida. Ou então, se inicialmente até achávamos graça à outra pessoa estar a devorar séries até às cinco da manhã, ao fim de algum tempo já só queremos que a bateria acabe depressa para não termos aquela luz azul a lixar-nos o sono.

Mas estamos a antecipar-nos ao drama. Catarina Mexia frisa que, antes de um casal decidir dar o passo de partilhar casa e, por conseguinte, cama, deve falar sobre o tema. "Há pessoas que têm um dormir difícil. Há pessoas que se mexem muito durante a noite, há pessoas que ressonam. É difícil controlar essas circunstâncias. São coisas sobre as quais vale a pena conversar, porque fazem com que o casal possa tomar essas decisões: ‘vamos partilhar um quarto? Em que circunstâncias? Ou vamos à partida considerar que o que faz sentido para nós é cada um ter o seu quarto?’".

A psicóloga salienta o facto de, embora possa não parecer romântico, uma conversa deste género pode evitar "uma série de problemas" mais à frente. Sobretudo quando um dos elementos do casal começa a sentir o seu sono prejudicado. "A partir do momento em que tenho alguém ao meu lado que ressona e eu não consigo dormir, já não é uma questão de cedências, mas de pormos em causa a nossa saúde", frisa Catarina Mexia. 

E não falamos apenas da saúde física. O que vivemos durante o dia necessita do tempo de um sono repousado para ser processado. A psicóloga clínica explica que, "nas fases REM do sono processamos muita coisa que possa ter sido potencialmente traumática para nós e isto é fundamental".

"Por exemplo, quando existe um acidente de automóvel, uma situação de bullying no trabalho. Fazermos uma noite de sono permite-nos processar estas situações. Não estou a dizer que o bullying no trabalho se resolve com uma noite de sono! O que estou a dizer é que experiências muito intensas no nosso dia a dia, potencialmente traumáticas, podem ser processadas durante o sono REM, que precisa de x horas de sono para acontecer. Se não temos um sono repousado, profundo, estes momentos podem não acontecer", explica. 

Do simples ressonar às parassonias: não dormir bem dá-nos cabo da saúde

Roncopatia. Apneia do sono. Insónia. Parassonia. Distúrbios do sono na gravidez e na menopausa. Não ter um sono repousado, seja por problemas de saúde nossos ou do nosso parceiro pode ter consequências graves para a saúde, que vão desde simples alterações de humor até provocarem o agravamento de patologia cardiovasculares, arritmias, hipertensão, e dificultarem o controlo da diabetes. 

Vânia Caldeira, pneumologista e especialista em Medicina do Sono
Vânia Caldeira, pneumologista e especialista em Medicina do Sono

Vânia Caldeira, pneumologista e especialista em Medicina do Sono, faz parte da equipa do Departamento do Sono da Clínica Hugo Madeira.  Tal como explica, salientando a multidisciplinariedade de uma consulta desta especialidade, na qual intervêm outras áreas da medicina, desde a pneumologia à neurologia, passando pela psicologia do sono, otorrinolaringologia "e, às vezes, cirurgia maxilofacial", é quase preciso uma aldeia para voltar a dormir bem.

A especialista distingue os vários tipos de perturbações do sono.

  • roncopatia (o vulgo ressonar): "significa que há uma vibração excessiva da nossa via aérea durante o sono. Ressonar traduz um fenómeno que não é normal e que, muitas vezes, vai progredindo e que, a determinada altura, já temos apneia do sono";
  • apneia do sono: "além do vibrar excessivo e ruidoso, já temos momentos em que temos uma obstrução total ou parcial da via aérea. São paragens respiratórias";

Vânia Caldeira alerta para a importância de nenhum dos elementos do casal desvalorizar o ressonar. "Qual é o principal problema? É a pessoa que ressona procurar ajuda. O próprio ressonar, por si só, também se trata. E, depois, é o impacto que o ressonar tem no companheiro e que é muito disruptivo. Muitas vezes, quando tratamos a roncopatia ou a apneia do sono, os casais conseguem voltar a dormir juntos, mas numa fase de transição, para não perturbar o sono alheio, [dormir em camas separadas] pode ser uma solução", salienta a especialista. 

  • insónias: "o problema maior é com as insónias de manutenção, as que acontecem a meio da noite. A pessoa acorda, anda às voltas na cama, depois vai comer. Comete uma série de erros e isto também é disruptivo para quem está ao lado a dormir bem e, de repente, a outra pessoa anda ali em movimentações".
  • Em casos mais raros, as parassonias, podem obrigar a que, seja por questões de saúde, seja por segurança, a que as pessoas tenham mesmo de dormir em quartos separados. "Há uma em particular, o distúrbio do sono REM, em que as pessoas têm movimentos muito violentos. Nesta fase do sono, temos sonhos mais bizarros, violentos ou intensos. É normal não termos tónus muscular, é um mecanismo protetor para que não comecemos a encenar os nossos sonhos. Nesta patologia, o que acontece é que temos o tónus mantido. As pessoas que sofrem desta doença pontapeiam os companheiros, por exemplo, e têm muita memória".

Seja no caso do distúrbio do sono REM (tratável com medicação, embora seja um "marcador de uma doença neurodegenerativa"), seja em casos de sonambulismo, Vânia Caldeira salienta que é mesmo recomendação médica as pessoas não dormirem juntas". "No caso dos sonâmbulos, o quarto deve estar preparado para a pessoa deambular sem se magoar."

Telemóveis, gravidez, bebés e tudo o que nos tira o sono à noite

Além de problemas de saúde, que podem ou não ser causados por fatores externos, há toda uma série de acontecimentos e escolhas que podem influir com a qualidade de sono, ainda para mais quando se tem uma vida a dois. O uso de ecrãs no quarto (sejam eles uma clássica televisão, um tablet ou telemóvel) podem ser fonte de discórdia e subsequente perturbação do sono.

"O problema dos ecrãs é, por um lado, o efeito direto da luz. Qualquer exposição à luz após o jantar é prejudicial ao sono, não nos está a preparar para dormir. E não é só a luz, é também o conteúdo. Se à noite estamos a ver coisas que nos deixam excitados, que nos deixam tristes que, de alguma forma, interferem com as nossas emoções, é mais uma coisa contraproducente para o nosso sono. O objetivo depois do jantar é nós criarmos um ambiente calmo, sem ruído, com pouca luz, tranquilo e que nos relaxe no sentido de nos preparar para o sono", explica Vânia Caldeira. 

A especialista sugere estratégias para tirar os ecrãs do quarto:

  • "passar a ver a televisão que gostam de ver à noite, mas na sala. Que se associe a ideia de que o quarto é só para dormir";
  • "tentar trocar a televisão por um livro com uma luz pequenina de apoio à leitura, uns fones para ouvir uma música calma";
  • "há pessoas a fazer meditação, que é ótimo para o sono, à noite, para relaxar";

E quando só um dos elementos do casal vê séries na cama, perturbando o outro? "Depende da sensibilidade de cada um. Se eu tenho uma mulher que chega à consulta porque não dorme e depois o marido está com o telemóvel ou com a tv ligada, é uma negociação", explica a médica, frisando o trabalho de diálogo que é feito na consulta de Medicina do Sono.

"Fazemos muitas perguntas para conhecer a família. Tenho de perceber se a pessoa tem crianças pequenas, se são adolescentes que chegam às tantas a casa a bater com as portas e, depois, é um bocadinho uma negociação em família", explica, acrescentando: "ajuda muito as pessoas que não dormem bem procurarem ajuda atempadamentee, mas levarem também o companheiro". 

família cama
créditos: Unsplash

A chegada de uma criança, já de si um momento disruptivo na vida de um casal, pode tornar-se ainda mais desafiante quando um dos elementos (ou os dois) estão em privação de sono. "Não é muito fácil saber qual é o momento em que as pessoas devem pedir ajuda. O que sabemos é que pessoas que já dormiam mal previamente têm que estar mais alerta", salienta Vânia Caldeira.

"Se é uma coisa que tem impacto na relação, no humor, se as pessoas já nem olham uma para a outra, é altura de procurar ajuda. Muitas vezes, a Psicologia do Sono ajuda muito porque são comportamentos, são medidas, como diminuir a exposição à luz à noite, tentar transitoriamente gerir a dois para que ambos tenham oportunidade de dormir. As sestas de 20 minutos, não mais do que isso, ajudam muito a mãe. Se for uma sesta de uma hora durante o dia vai tirar qualidade do sono à noite", explica a pneumologista, salientado ainda que as sestas devem, idealmente, ocorrer logo após o almoço e não a meio nem ao final da tarde.

Pés em água quente ou bonecas das preocupações. 11 truques para dormir que nem um anjinho
Pés em água quente ou bonecas das preocupações. 11 truques para dormir que nem um anjinho
Ver artigo

Vânia Caldeira refere que as mulheres, em particular, adiam mais a procura de ajuda, além de desvalorizarem as perturbações do sono quer na gravidez quer na menopausa. A médica salienta que, quer numa fase quer noutra, não dormir bem "não é normal". "Os sintomas de apneia do sono na menopausa são muito diferentes do típico sintoma de apneia do sono no homem. As mulheres acordam muito cansadas, têm dificuldades de concentração e insónia. O padrão típico da mulher, sobretudo na menopausa, é acordar muitas vezes durante a noite sem saber porquê. Depois de fazermos o estudo do sono, percebemos que a causa é a apneia do sono", explica a especialista em Medicina do Sono. 

"Quero dormir sozinha. Como é que abordo a questão?"

"O facto de as pessoas dormirem juntas não diz nada sobre a relação de amor. Eu posso dormir todas as noites no mesmo quarto, na mesma cama e não ter um pingo de sentimento por aquela pessoa que está ao meu lado", afirma Catarina Mexia. Quando, seja por questões de saúde ou questões mais práticas como horários de trabalho, o uso de telemóveis ou outros ecrãs, um dos elementos chega a um ponto sem retorno, como se deve abordar a possibilidade de dormir em camas separadas?

"A primeira coisa que temos de ser capazes de fazer é conversar com o outro, colocando questões. Não é partindo do princípio que a minha questão está a incomodar o outro. Começar por perguntar ‘como é que podemos resolver isto?’ ou ‘a minha proposta é esta. O que é que pensas disto?’. Quando a questão vem do lado de lá, é a mesma coisa. ‘Isto para mim está a ser um problema, eu gostava que pensássemos um pouco sobre como podemos resolver isto. Eu tenho uma solução que passa por isto. O que é que pensas disto?’", exemplifica a psicóloga clínica. 

mulher cama
créditos: Unsplash

E se houver finca-pé de uma das partes? "Nesse caso, o ir dormir para um quarto, o por em cima da mesa a cartada de ‘eu vou mudar de quarto’ é só um sintoma. Aqui, a questão de dormir ou não em quartos separados já não aparece como um ato saudável, mas sim uma separação sem separação. Eventualmente, estas pessoas precisam da ajuda de um profissional porque alguém já chegou a um limite, alguém não está a conseguir iniciar um diálogo construtivo", explica Catarina Mexia. 

A psicóloga clínica salienta que dormir na mesma cama ou em quartos separados não é uma métrica nem para o amor nem para a proximidade física num casal, esteja ele junto há pouco tempo ou há muitos anos.

"Quando estamos a falar de jovens, o facto de estarmos em quartos separados pode até aumentar essa proximidade e fortalecer esses laços. O facto de poder haver visitas surpresa, isso pode até apimentar a relação. No caso das pessoas de mais idade (e não só) isto pode ser visto como uma questão de respeito. Quando as relações vão evoluindo e se vão tornando mais longas, há também uma evolução nos valores. A proximidade física não vai sendo tanto considerada um sinal de amor mas, se calhar o facto de a pessoa perceber que precisa de de afastar para permitir ao outro repousar, isso sim ser um sinal de amor, de respeito. E há muitos momentos em que as pessoas podem estar juntas", acrescenta ainda a psicóloga clínica.