Célio Dias pratica judo e representou Portugal nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. Nos anos seguintes, preencheu os títulos dos órgãos de comunicação por assumir a sua orientação sexual, e mais tarde, por partilhar o diagnóstico de esquizofrenia.
Agora, o atleta português fala sobre a sua jornada enquanto “homem negro, homossexual e portador de VIH”, como se descreve, enquanto desconstrói os principais mitos associados à infeção. As suas perspetivas são cruzadas com as de Daniel Coutinho, infeciologista no Hospital Lusíadas do Porto.
Sobre a partilha do diagnóstico da infeção VIH, Célio Dias afirma que esperou até sentir que era a altura certa. “Decidi falar antes do apuramento e lutar dentro do tapete em plenitude com aquilo que eu sou: um atleta negro, homossexual e portador do VIH”, diz à MAGG.
“Nunca me fez sentido falar da minha orientação sexual, da esquizofrenia ou do VIH no pós-carreira, porque sinto que o papel que as minhas intervenções poderiam ter seriam mais diminutas se assim o fizesse”, explica o judoca português. Ainda assim, esclarece que compreende o lado de quem escolhe manter estas características privadas, por ser algo “extremamente pessoal”.
Agora, partilha o seu diagnóstico com o objetivo de fazer parte da conversa e ajudar a desmistificar o preconceito que gira à volta da infeção. “É necessário desconstruir a realidade de que hoje o VIH ainda é uma doença que mata, porque isso já não é verdade, felizmente”, assegura.
O atleta revela também que as reações variam entre as pessoas, e mesmo no núcleo familiar podem ser mais resistentes. A este receio acrescenta-se ainda a fé religiosa, que Célio diz ser também uma fonte de “culpa e vergonha” em relação à contração do VIH.
Já no universo desportivo, o atleta afirma que se “vive no mundo da ilusão” e que o desporto “trabalha com um atleta que é utópico”, considerando que “existem muitos atletas que são pressionados a não partilharem as suas crenças ou o seu real posicionamento sobre assuntos como a homossexualidade e o VIH, ou até questões de saúde mental, porque isso poderá causar uma má imagem nas considerações desportivas, e o desporto é uma realidade que vive muito da imagem”.
O medo que contamina a população
Esta não é uma realidade individual, como esclarece Célio Dias. "Se formos ver as estatísticas, para as pessoas da comunidade LGBTQIA+ existem taxas de suicídio muito acentuadas, que são derivadas de potenciais rejeições ou considerações enganosas, e que podem eventualmente deturpar a realidade para a pessoa que está com o diagnóstico”.
Salienta até que estas situações podem ter repercussões sem retorno. “As pessoas preferem dar fim à sua vida do que lidar com as consequências de falar sobre o assunto. Eu próprio tive pensamentos suicidas de querer por um final à minha vida”, desabafa.
Face a este receio, Daniel Coutinho, infeciologista no Hospital Lusíadas do Porto, transmite que o problema se incide depois “a nível do rastreio do diagnóstico precoce”, tendo em conta que “os últimos dados mostram que ainda há uma grande percentagem de pacientes a serem diagnosticados numa fase tardia da doença”. No entanto, verifica “uma população cada vez com mais fragilidades e outras doenças associadas como diabetes, e tudo isso envolve uma panóplia de medicações que às vezes exigem um cuidado extra”.
O médico aponta a falta de conhecimento como um dos obstáculos ao processo, uma vez que “as pessoas continuam a sentir esse estigma e medo de que os companheiros ou as pessoas com quem trabalham saibam da doença e escondem a medicação dos outros”, o que “muitas das vezes pode levar a falhas no tratamento”.
Sobre a infeção por VIH em concreto, Daniel Coutinho garante que hoje em dia é “muito tolerada” e que “se a pessoa tomar a medicação, a doença está controlada e não tem riscos de transmissão para ninguém”.
Então, como desconstruir estes mitos?
Primeiro, desconstrói-se a vergonha de não saber: Célio Dias garante que, quando fala sobre os mitos e o que as pessoas não entendem ainda sobre o tema, facilmente se podia incluir a ele mesmo.
“Porque eu penso que até nós termos esse desafio a nível pessoal, não pensamos nos assuntos. Porque é que haveria eu de pensar no cancro do intestino, se não tenho uma realidade próxima a mim ou eu próprio não tenho esse desafio?”, reflete o atleta. “Ou seja, eu não responsabilizo as pessoas pela desinformação. Cabe-me a mim, a pessoa que tem esse diagnóstico e a informação, partilhar”, remata.
Quando questionado sobre que ideias ainda estão por desconstruir, Daniel Coutinho, menciona que “as pessoas associam ainda muito à toxicodependência”, quando, na verdade, “os últimos dados mostram de forma muito consolidada a associação aos comportamentos sexuais”.
Outro risco que o profissional de saúde refere é o facto de as pessoas percecionarem a infeção por VIH “como uma doença mais dos jovens”, o que cria “aqui esta dificuldade em chegarmos aos doentes da infeção VIH já em faixas etárias superiores”.
"Um terço dos doentes diagnosticados têm mais de 50 anos e prevê-se que esta faixa etária possa chegar a ocupar os 50% daqui a uma década”, refere o especialista. Contudo, não associa este mito apenas aos pacientes, uma vez que “mesmo da parte dos profissionais de saúde, existe uma resistência em fazer um rastreio a pessoas mais velhas, porque acham que não há risco associado, e por isso os diagnósticos acabam por chegar em fases mais tardias da doença”, conclui.
Como já apontou o médico, na causa destes mitos está, entre outras coisas, a falta de informação fidedigna. “Não sei se está relacionado com a pandemia e com o que estamos a viver, mas acho que tem havido muita falta de campanhas e de literacia em relação à saúde no global, e em relação às infeções sexualmente transmissíveis, e acho que era importante voltarmos a ter um papel mais educativo em relação a isto”, afirma.
"Hoje em dia, há muita informação na internet, mas nem toda ela é credível. Da parte da DGS e do Ministério da Saúde, têm faltado as campanhas em relação à infeção”, conclui o especialista.
Teve um comportamento de risco? Saiba o que fazer
Daniel Coutinho explica, enquanto profissional de saúde, que a melhor ação a tomar após um comportamento de risco será sempre consultar o respetivo médico. Em termos de medidas coletivas, responde que “as pessoas devem agir de acordo com o que a Direção Geral da Saúde já preconiza e realizar um rastreio universal a todas as pessoas, pelo menos uma vez na vida”. Procede, ainda, para simplificar que “já existe há alguns anos a profilaxia pré-exposição, em que as pessoas são avaliadas para ver se há necessidade de fazer a de pós-exposição, de modo a evitar a transmissão da doença”.
E se o resultado for positivo, também importa considerar a saúde mental, na voz de Célio Dias, quando diz: “o melhor conselho que posso dar é que as pessoas se aceitem a si mesmas, sem tabus, sem medo de serem ouvidas. Penso que é fundamental e gritante partilhar sobre esses assuntos de um modo inclusivo e normalizar todas essas questões”.