Há muito que as doenças sexualmente transmissíveis (DST) deixaram de ser o bicho papão que foram nos anos 80. Ainda assim, apesar de já não serem o centro das atenções mediáticas, continuam a espalhar-se a um ritmo alarmante — mas poucos parecem importar-se.

O preservativo permanece negligenciado, bem como a educação sexual. No verão, tal como no fim de ano, com todas as festas existentes, aumentam os casos de contágio por DST. A pandemia desacelerou esta tendência que entretanto, devido ao alívio das restrições de segurança, se voltou a verificar.

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"Há um aumento transversal das DST, sobretudo nas camadas mais jovens, propiciado pelo verão", garante Miguel Carvalho, urologista, à MAGG. O especialista reconhece que existe uma "expansão de contactos" devido à "aglomeração de jovens nos festivais" e aos "anos de pandemia", que foram castradores.

Os convívios constantes nos meses de verão estão muitas vezes associados ao consumo de álcool e de estupefacientes. Para a ginecologista Maria do Céu Santo, "os festivais, o verão e o calor são cenários extremamente fáceis para muitos iniciarem o consumo de álcool e drogas, também devido ao acesso mais fácil a essas substâncias".

Estas últimas vêm aumentar a probabilidade de propagação destas infeções, "porque, a partir de determinado nível de consumo, podem diminuir a nossa vergonha e as barreiras nas interações sociais, promovendo os comportamentos de risco", alerta o médico de família Nuno Hipólito Santos.

"Os jovens estão pouco preocupados com as DST e muito alertados para a parte da gravidez. Ficou-lhes mais no cérebro"

A recusa por parte dos jovens em usarem preservativo durante as relações sexuais mantém-se. Para o urologista Miguel Carvalho, aquilo que leva as camadas juvenis a recusarem o preservativo não é a falta de informação. "O preservativo nem sempre é uma boa notícia para estas camadas", refere. A ginecologista Maria do Céu Santo está de acordo.

"Acham que usar preservativo dá uma diminuição do prazer, o que é um mito. Hoje em dia, existem preservativos extremamente finos e, muitas vezes, até melhoram a relação, porque têm alguma lubrificação", aponta, lembrando que o stresse, o cansaço e as pílulas podem levar à secura vaginal. "O preservativo até pode melhorar a relação", salienta.

Porém, para a Diretora de Marketing da marca de preservativos Control, Patrícia Nunes Coelho, "existe uma barreira no planeamento familiar", pois "o preservativo que é dado é quase borracha de pneu, o que cria logo uma desistência". "Se começamos logo no início a dar preservativos grossos e que possam interferir com a relação sexual, aquilo torna-se sempre uma coisa negativa", acredita Maria do Céu Santo. Nuno Hipólito Santos também reconhece que estes preservativos "podem não ser tão interessantes" para os jovens.

Mas são estes métodos barreira, como o preservativo masculino e o feminino, que previnem contra as infeções sexualmente transmissíveis. "A pílula, os adesivos, o anel vaginal e os dispositivos intra-uterinos fazem a prevenção da gravidez, mas não evitam infeções de transmissão sexual", recorda o médico.

Nuno Hipólito Santos
Nuno Hipólito Santos Nuno Hipolito Santos é médico de família no Centro Terapêutico e Educacional de Braga. créditos: Instagram

Ao contrário do que se verificava há umas décadas, hoje "a principal preocupação dos jovens é a gravidez", crê a responável da Control. Já Maria do Céu Santo afirma que "os jovens estão pouco preocupados com as DST e muito alertados para a parte da gravidez". "Ficou-lhes mais no cérebro", salienta.

"As pessoas já não morrem de DST, o que leva a uma espécie de falsa sensação de segurança"

Miguel Carvalho, diretor do Serviço de Urologia do Hospital Garcia de Orta e coordenador da unidade de urologia da clínica CUF Almada, crê que a mensagem passada com medidas "há muitos anos, na sequência do HIV e das hepatites", foi "de alguma forma, aliviada". "O ênfase que era antigamente dado a esta questão não o é atualmente", reforça.

Nuno Hipólito Santos relembra que "hoje em dia, tipicamente, as pessoas já não morrem de DST, o que leva a uma espécie de falsa sensação de segurança e a um agravamento dos comportamentos". Esta falta de uso do preservativo, que muitas vezes parte de "pessoas que têm parceiros ocasionais", provoca o surgimento das infeções.

"O preservativo é a forma mais natural de proteger das DST, apesar de o consumidor achar que só acontece aos outros", refere a diretora de Marketing da marca líder em preservativos no mercado português. "Por natureza, o homem não quer usar [o preservativo]. Partimos desse pressuposto complicado e existem diversas barreiras", conta, mencionando a sensibilidade e o cheiro a látex como elementos de rejeição.

Patrícia Nunes Coelho Control
Patrícia Nunes Coelho Control Patrícia Nunes Coelho é Diretora de Marketing da Control há quase uma década. créditos: Instagram

Não é um pénis XL que faz romper um preservativo

Maria do Céu Santo considera que "os preservativos que são distribuídos deviam ser os melhores do mercado, os mais finos, com condições, sem romper". "O homem muitas vezes pensa que rompeu porque tem um pénis XL, mas não. Há preservativos de todo o tamanho. Rompeu porque foi mal aplicado", sublinha.

A ginecologista e obstetra, que trabalha no Hospital da Luz e na X Clinic, elucida que o preservativo, quando colocado, deve deixar sobrar um espaço na ponta, "uma bolhinha". "Não se pode esticar mais, senão rompe", alerta. Além disso, de acordo com a médica, os preservativos não podem ser lavados e reutilizados, nem expostos ao calor.

Patrícia Nunes Coelho avisa também que "as unhas de gelinho são péssimas para abrir o preservativo", já que "basta haver uma falha" para o romper. "Ter pêlos rapados também afeta", pelo que deve ser feita uma boa depilação. A falta de lubrificação também é inimiga de um bom uso do preservativo.

De acordo com um decreto lei do Ministério da Saúde, "um preservativo tem 100% de proteção". "A partir do momento em que é aberto, passa a 87%", refere a responsável de marketing.

"A infeção passa desapercebida. Só na sequência da realização de análises por outro motivo é que a pessoa vem a saber que está infetada"

Quanto às doenças sexualmente transmissíveis, "o problema não é só apanhar, é curar", recorda a marketeer. Algumas destas infeções podem ser invisíveis e passar completamente despercebidas. Um parceiro sexual pode transmiti-las sem ter qualquer sintoma.

Por esse motivo, assim como salvaguarda o urologista Miguel Carvalho, ao ser identificado alguém portador de uma DST, deve ser "obrigatoriamente feito o screening para todas as outras", na tentativa de as despistar e de evitar o progressivo contágio. Infeções como clamídia "podem passar desapercebidas". "É importante que, uma vez diagnosticados, se faça o despiste aos parceiros", refere o urologista.

Dr. Miguel Carvalho
Dr. Miguel Carvalho Miguel Carvalho é Diretor do Serviço de Urologia do Hospital Garcia de Orta e coordenador da unidade de urologia da clínica CUF Almada. créditos: Imagem cedida

"Os homens, a maioria das vezes, não têm sintomas, mas são veículo de transmissão. Tem de se tratar sempre a mulher e o parceiro para evitar a reinfeção", menciona Maria do Céu Santo, que esclarece que as DST podem ser transmitidas por bactérias, fungos, parasitas ou vírus e que o contágio pode ocorrer através do sangue, do sémen ou dos fluidos vaginais, portanto, tanto por sexo vaginal como por sexo anal e oral.

Ginecologista há 33 anos, recebe muitos pedidos para efetuar análises às DST quando as pacientes "mudam de parceiro fixo". A faixa etária entre os 20 e 0s 40 realiza mais análises de rotina, mas "a seguir ao verão, imensas pedem para as fazer, até adolescentes". "Algumas vão mesmo só à consulta para ver se está tudo bem e para fazer controle das DST", nota.

"Não estrague o amanhã com um momento de prazer hoje"

Embora existam DST com terapêutica fácil, como comprimidos e cremes, doenças como as hepatites e o HIV "podem ficar crónicas". A maioria já tem tratamento, mas muitas "podem causar consequências a longo prazo às pessoas, nomeadamente infertilidade", observa Nuno Hipólito Santos.

"O HIV pode causar complicações nos órgãos e diminuir a qualidade de vida", acrescenta o médico de família, que exerce no Centro Terapêutico e Educacional de Braga. O urologista Miguel Carvalho explicou à MAGG que "o espetro das DST é muito grande" e que "tem muito que ver com os períodos de incubação das doenças".

Enquanto "bactérias não virais" implicam períodos curtos (entre os 7 e os 10 dias), nas virais, como o HIV ou nas hepatites, "a infeção passa desapercebida e só mais tarde, na sequência da realização de análises por outro motivo, é que a pessoa vem a saber que está infetada".

DSTs
DSTs Cada infeção sexualmente transmissível tem um período de incubação próprio, que pode ir de dias a meses. créditos: Maria do Céu Santo

Maria do Céu Santo criou este quadro que explicita qual o período de incubação de cada uma das infeções sexualmente transmissíveis. O HIV pode demorar até sete meses para se manifestar e as hepatites meio ano, por exemplo. O indivíduo portador pode ter sintomatologia logo — sendo que "o mais frequente é prurido, comichão, alguma dor" —, mas pode demorar.

"Não estrague o amanhã com um momento de prazer hoje", apela a ginecologista com sub-especialização em DST. Além do sexo, também os brinquedos sexuais podem transmitir estas infeções, pois "também são meio de contaminação", destaca.

Os utentes destes equipamentos "têm de os lavar bem" e "devem sempre utilizar preservativo, mesmo nos brinquedos", garante Maria do Céu Santo. Já que também são transmitidas pelo sexo oral, há que ter cuidados ao realizá-lo.

"Para a vulva não há execuções ideais", refere o médico Nuno Hipólito Santos, que sugere a utilização de uma dental dam, uma estrutura plástica tipicamente utilizada em tratamentos dentários, que se pode comprar para o efeito.

Isso ou "pequenas películas que se colocam sobre a vulva e permitem a prática de sexo oral na forma segura". Pode também "cortar-se um preservativo numa estrutura tipo quadrado e aplicar diretamente na vulva, de modo a separar a boca do homem ou da mulher da vulva".

"Há muita coisa que pode ser feita para evitar a propagação das infeções sexualmente transmissíveis"

Para Nuno Hipólito Santos, "há muita coisa que pode ser feita para evitar a propagação das infeções sexualmente transmissíveis". Além do uso do preservativo, ainda mais incentivado no caso de existirem "relações com parceiros que não conhecem", devem descartar-se lubrificantes "que não sejam aquosos" (como a vaselina), pois podem "danificar o látex e diminuir a proteção que se pretende".

O médico alerta para a importância de se realizar testagem "com frequência", sobretudo no caso de se ter relações sexuais com várias pessoas. Estas análises podem ser pedidas aos médicos de família, a quem cabe informar os utentes "de como se devem proteger".

Estes devem estar atentos aos sintomas que possam surgir depois de ter comportamentos sexuais de risco, tais como, enumera, ardência a urinar, dor nos testículos, no pénis, na vulva ou no ânus, corrimentos pela uretra, pelo ânus, pela vulva, comichão, o aparecimento de feridas ou bolhas nestas estruturas. É ainda imperativo que os indivíduos não tenham relações sexuais enquanto tiverem sintomas.

O médico de família sente que as consultas de planeamento familiar são "absolutamente essenciais" como prevenção. "Devemos conversar abertamente com os jovens, sem tabus. A segurança deve ser perfeitamente explicada", incentiva. No entanto, estas consultas são "quase em exclusivo" dedicadas à mulher e a "evitar gravidezes não desejadas". O médico, que ainda não deu muitas destas consultas a homens, acha que o mesmo não está certo e deveria ser mudado.

"Devíamos ter educação sexual nas nossas escolas e isso não está feito. Em Portugal, ainda olhamos para a sexualidade como um tabu"

Todos os entrevistados com quem falámos para este artigo estão certos de que a maior arma para combater as DST é a educação. As conversas sobre os comportamentos sexuais devem ser tidas independentemente da sexualidade de cada um e deviam começar "cedo, em ambiente escolar", refere Nuno Hipólito Santos.

"Devíamos ter educação sexual nas nossas escolas e isso não está feito. Em Portugal, ainda olhamos para a sexualidade como um tabu, e há muitas casas em que os pais não têm essa conversa com os filhos. É na escola que deve ocorrer", acha. Para Patrícia Nunes Coelho, as entidades governamentais deveriam orientar os jovens "para o caminho e o produto certo".

Já Maria do Céu Santo vê o diálogo com os adolescentes como "uma das ferramentas mais importantes em termos educacionais". Para a ginecologista, há que "alertar, para que nunca percam o controlo".

Doutora Maria do Céu Santo
Doutora Maria do Céu Santo Maria do Céu Santo é ginecologista e obstetra no Hospital da Luz e na X Clinic. créditos: Imagem cedida

Já Patrícia Nunes Coelho "gostava de conseguir mostrar à nossa sociedade a importância da educação". Sente que é "um problema dos pais", por ser "difícil explicar a um filho determinadas coisas". "Os pais têm este receio de, ao informarem, estarem a promover, e isto tem de se desmistificar. Falarem não é promoção, é proteção", aponta.

Além disso, para a responsável de marketing, ao existir este diálogo, devem ser passados às mulheres, "de uma forma muito clara", outros valores como "és tu que mandas no teu corpo" e "és tu que decides". Em Portugal, são tanto os homens como as mulheres quem compram preservativos da marca que Patrícia representa:  50/50.

Na tentativa de aumentar a literacia sexual, a Control disponibiliza o serviço Control Talks, que funciona via WhatsApp. Do outro lado da conversa está Vânia Beliz, sexóloga e psicóloga que responde, de segunda-feira a sexta-feira das 18h às 20 horas, a quaisquer questões que são colocadas, sempre de forma anónima, para o contacto +351 934 059 910.