Tânia Vargas tinha 26 anos quando engravidou de Gonçalo, o seu primeiro filho. Jovem, saudável, sem comportamentos de risco — não fumava, não bebia e nunca consumiu drogas — ou antecedentes genéticos que podem levantar alguma preocupação, nada fazia prever que a gestora de marketing de comunicação fosse mãe de uma criança com deficiência.

“Tive uma gravidez super tranquila, normal, nunca houve algo que pudesse dizer que fosse um sinal de alarme. Se tomei um Beneron a gravidez toda, foi muito”, recorda Tânia Vargas à MAGG.

Por volta das 12 semanas, após a primeira ecografia morfológica e o rastreio pré-natal, a mãe de Gonçalo recebeu os resultados sem qualquer risco acrescido para trissomias.

“Liguei ao meu marido, disse-lhe que não existiam riscos e lembro-me de comentar: ‘Olha, fantástico, porque tenho a certeza absoluta de que não tinha coragem para ser mãe de uma criança com deficiência'. Até hoje, essa frase ficou”.

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Natural de Serpa, no Alentejo, Tânia estava a residir em Braga, juntamente com o marido, há relativamente pouco tempo.

“Estudei em Coimbra, onde conheci o meu marido. Estive emigrada na Bélgica, a trabalhar na Comissão Europeia, depois fui para o Reino Unido e, quando casámos, decidimos voltar para o nosso País para estar mais perto da família”.

Escolheram Braga por amor à cidade, mas também pela oferta de trabalho. A 1 de julho de 2017, Gonçalo nasceu no Hospital Privado de Braga, às 38 semanas, depois de uma cesariana de urgência.

“Fui ao hospital para uma consulta com a minha obstetra, mas depois de ser avaliada, percebeu-se que já tinha quatro centímetros de dilatação. O bebé não encaixou, com o decorrer do processo acabou por ficar com taquicardia e avançou-se para a cesariana”, relata Tânia.

Apesar do parto mais complicado, a consultora recorda que Gonçalo nasceu sem sinais de alarme: “Chorou, tinha um Índice de APGAR [teste feito no recém-nascido logo após o nascimento que avalia o seu estado geral] fantástico, tudo normal. Ele nasceu a um sábado de manhã, e à noite começámos a reparar em algumas coisas”.

O bebé parecia maldisposto, pouco reativo. “Fizeram logo análises para tentar perceber o que se passava e a única coisa que estas mostraram foi que o Gonçalo estava com icterícia". Isto traduz-se numa coloração amarela da pele e/ou olhos, e é causada por um aumento na concentração de bilirrubina na corrente sanguínea. No caso de Gonçalo, os níveis estavam de facto muito elevados.

"Acabou por ficar internado uma semana na neonatologia, porque surgiram outros problemas, apanhou uma bactéria hospitalar, a apatia continuava, mas sempre pensando que tudo se devia à tal icterícia. Era a única coisa que nos pensávamos que se passava de errado com o Gonçalo”, diz Tânia Vargas.

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Durante a estadia no hospital, e sempre que o bebé era avaliado, a mãe de Gonçalo recorda que lhe diziam sempre que o filho era molinho, que o parto tinha sido complicado, que passou pela icterícia.

“Era sempre à volta desta justificação, e não havendo nada na gravidez que indicasse que podia estar alguma coisa errada, sendo eu nova e saudável, os médicos não adivinharam que se passava alguma coisa”.

Gonçalo acabou por ter alta uma semana depois de nascer, mas a pediatra que acompanhou o caso no hospital recomendou aos pais um exame complementar para garantir que estava tudo a 100%.

“Quando ele tinha 10 dias, fizemos uma ecografia transfontanelar, que em bebés muito pequenos é o equivalente a uma ressonância magnética, para avaliar a existência de uma lesão cerebral. Não encontraram nada de relevante e só me disseram para ver como ele ia evoluir.”

Mas o caminho para o diagnóstico era longo e demorou praticamente um ano a chegar. A cinco dias de Gonçalo completar 1 ano, e depois de vários testes genéticos, chegou finalmente a resposta: o filho de Tânia nasceu com uma mutação genética raríssima, no gene COL1A1.

Ligada ao colagénio, esta mutação genética só tem mais dois casos reportados no mundo inteiro e, no caso de Gonçalo, resultou em duas síndromes distintas: a Síndrome Osteogenesis Imperfecta (OI) e a Síndrome Ehler-Danlos (SED).

Raras e desconhecidas: o que são estas síndromes?

Ambas as síndromes isoladas são consideradas doenças raras. A prevalência da Osteogenesis Imperfecta é de cerca de 1 em 15 mil casos, e a Síndrome Ehler-Danlos é de 1 em 20 mil pessoas — a União Europeia definiu como doenças raras toda a patologia com uma prevalência inferior a 5 em 10 mil casos ou 1 em 2 mil.

No entanto, a “sobreposição de fenótipos, de OI e SED, tal como vemos no Gonçalo, é uma apresentação incomum”, explica à MAGG Marta Amorim, médica especialista em genética no Hospital Dona Estefânia.

Marta Amorim, especialista em genética, explica que a mutação genética de Gonçalo é 'um erro que chamamos de novo, aconteceu pela primeira vez nessa indivíduo'
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De acordo com a especialista, a Síndrome Osteogenesis Imperfecta “é uma síndrome caracterizada por fraturas várias a traumas minor, pela dentinogenesis imperfecta (afeção dos dentes) e surdez, porque o ouvido médio tem os mais pequenos ossos do corpo humano na sua constituição”.

Tal como explica Marta Amorim, a fragilidade óssea das pessoas com esta síndrome “é consequência de mutações genéticas em genes responsáveis por proteínas importantes para a constituição óssea, como são os colagéneos”.

A síndrome pode apresentar-se com diferentes graus de severidade, podendo ser letal in útero, apresentar grande deformação óssea, ou “cursar com uma vida próxima do normal, excluindo a predisposição para fraturas, sobretudo dos ossos longos”.

Já a Síndrome Ehler-Danlos resulta da anomalia de outro tecido de suporte, que não o osso: o tecido conjuntivo. “É assim responsável por hiperelasticidade da pele, com tendência para má cicatrização da mesma, hipermobilidade articular, que conduz frequentemente a luxações ósseas, e por vezes, prolapso da válvula mitral e dilatação da aorta”, salienta a médica, que acrescenta ainda que, nas formas mais severas, “pode ser bastante debilitante, cursando com limitações às atividades diárias e dor crónica”.

São ambas síndromes genéticas, “com vários genes responsáveis pelas mesmas e diferentes apresentações clínicas” . O COL1A1, a mutação genética de Gonçalo é, no entanto, “um gene que, dependendo do tipo de mutação, pode dar origem às duas síndromes, em conjunto, ou em separado”.

“O diagnóstico deu-nos legitimidade”

Antes de chegarem a um diagnóstico final, os pais de Gonçalo e o filho passaram por períodos complicados. Sem respostas, o tempo ia passando, as terapias de Gonçalo iam-se acumulando, bem como as especialidades médicas que a criança consultava — no total, são cerca de 16 as diferentes especialidades.

“O Gonçalo começou por fazer sessões de fisioterapia, para curar uma lesão na zona do ombro esquerdo. Sabemos hoje que essa deve ter sido a primeira fratura dele. Era suposto serem 15 sessões, depois avaliava-se e ele ficava bom, pensávamos nós”, conta Tânia Vargas.

A criança continuava “molinha”, a fazer as sessões de fisioterapia e a mãe de Gonçalo garante que, tal como o marido, estava em negação: “Pensávamos que só tínhamos de fazer as 15 sessões, tudo passava e era isso que tínhamos de resolver. Estávamos a olhar para os sintomas, em vez de olhar para a causa”.

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Entretanto, Gonçalo desenvolveu várias alergias alimentares severas, ao ponto de passar por choques anafiláticos. “Viemos a descobrir que ele faz alergia à proteína do leite de vaca e, ao mamar, ingeriu a mesma através do meu leite”, conta Tânia.

Depois de consultarem uma médica gastroentrologista, descobriram-se mais alergias à criança, entre elas a soja, o ovo e o trigo. E em relação ao leite, até hoje Gonçalo não pode ingerir, tocar ou cheirar este lacticínio, tal a severidade da alergia.

Para além deste problema, foi diagnosticada a Gonçalo uma hipotonia, e o bebé demonstrava não ter força, entre outros sinais. “Não engordava, não se mexia, aos 3 meses não levantava a cabeça. Puxávamos pelo braço e ele deixava-se cair, não tinha mesmo resistência contra qualquer força que lhe fizessem”, recorda a mãe.

Sempre em busca de respostas para o que se estava a passar, a família foi parar ao Hospital Pediátrico de Coimbra, onde uma especialista de medicina genética avaliou detalhadamente a criança, confirmou que algo se passava e avançou para os primeiros testes genéticos.

Aos 6 meses de vida de Gonçalo, Tânia Vargas recorda que chegaram os resultados. “Vieram todos normais e voltámos à estaca zero. Não ficámos aliviados porque sabíamos que algo se passava. A médica também disse que não era possível e mandou-nos fazer exames ainda mais aprofundados.”

Os primeiros testes genéticos, que a criança realizou aos 3 meses, analisam os cromossomas, se estão todos corretos, se não falta nenhum ou se existem em duplicado.

“Utilizando uma metáfora simples, é quase como olhar para um livro e ver se não falta nenhuma página. Já o exoma, o teste dos 6 meses, mais aprofundado e que analisa o genoma humano na sua totalidade, usando a mesma ideia, olha para as palavras das páginas e vê se há algum erro ortográfico. E, efetivamente, o Gonçalo tinha um erro ortográfico”, conta Tânia Vargas.

A mutação genética, o COL1A1, causou as duas síndromes: a Osteogenesis Imperfecta, que faz com que Gonçalo tenha menos densidade óssea do que o normal e, por isso, com que os ossos se partam com mais facilidade; e a Síndrome Ehler-Danlos, que afeta a parte muscular, não existindo tensão suficiente para fazer força.

“Imagine que em vez das suas pernas normais, tem dois fios de esparguete cozidos no lugar. Se tentar dar um passo, abana tudo e cai, pois não há tensão”, compara a consultora. É esta a realidade de Gonçalo.

Mas ao contrário do que se podia prever, o diagnóstico destas duas doenças não foi um balde de água fria para o casal. “Pode parecer estranho, mas ficámos muito aliviados, não tivemos sentimentos de negação, já tínhamos passado por essa fase. Sabíamos que o Gonçalo tinha alguma coisa, já nos tínhamos mentalizado que teria algum tipo de problema, e ambas as síndromes tinham surgido nas nossas pesquisas e em conversas com os médicos”.

Para além do alívio, Tânia confessa que existiram outros sentimentos à mistura. “O diagnóstico deu-nos legitimidade. Até ali, existiam sempre aqueles comentários de que o Gonçalo tinha o seu ritmo, que havia de chegar lá. Cheguei a ouvir que o meu filho era só preguiçoso. Ter o diagnostico das síndromes, e poder dizer ‘Não, o meu filho não é preguiçoso’, deu-me legitimidade para lidar com muitas situações”.

A nível cognitivo, não se passa nada com Gonçalo, embora não fale, algo para o qual os médicos não encontram resposta. “É uma incógnita no meio disto tudo, porque o Gonçalo tem uma compreensão fenomenal. Percebe tudo, comunica não verbalmente, sabe dizer o que quer e não quer, chora, ri, sorri, faz atividades, puzzles, tudo normal. Mas continuamos à procura de uma razão”, diz a mãe.

Atualmente, Gonçalo não anda, mantém as alergias alimentares, mas Tânia Vargas afirma que parece estar melhor da densidade óssea, resultado das constantes terapias de fisioterapia. Segura a cabeça, agarra objetos, brinca desde que a atividade não seja muito agressiva, gatinha e consegue manter-se de pé, com apoio.

As doenças não têm cura, mas as diversas terapias, entre elas a terapia ocupacional, da fala, entre outras, mas principalmente a fisioterapia, contribuem para uma melhor evolução do seu estado de saúde.

“A densidade óssea, que faz com que os ossos dele fiquem mais fortes, constrói-se fazendo carga no membro, força, mas ele tem de ir aos poucos. Se faz força a mais, pode sofrer fraturas. Se faz a menos, não aumenta a densidade. Mas é através do exercício que ele vai fortalecendo os músculos e a densidade óssea, de modo a conseguir fazer o que uma criança normal faz”, explica a mãe.

Se Gonçalo algum dia vai conseguir andar é uma incógnita, mas é possível — até porque a criança, hoje com 2 anos, tem vindo a superar as expectativas dos pais.

“Eu sempre me mentalizei que o meu filho não se ia mexer, não ia andar, não ia falar. Neste momento ele gatinha, comunica connosco não verbalmente, fica de pé com apoio. Tudo isto é uma vitória incrível. As nossas expectativas estavam tão baixas que qualquer evolução do Gonçalo é sempre uma vitória”.

“Tínhamos mais hipóteses de ganhar o Euromilhões do que o Gonçalo ter esta mutação genética”

Tal como explica Marta Amorim, especialista em genética, para “uma doença ser genética significa que resulta de uma mutação, em que uma proteína vai ser expressa de forma suficientemente alterada para comprometer a sua função”.

No caso do Gonçalo, “as doenças genéticas resultam de um erro que chamamos de novo, aconteceu pela primeira vez nessa indivíduo". O genoma humano é formado por cerca de três biliões de letras em cada célula e, “cada vez que elas se multiplicam, há o risco de ocorrer um erro na cópia, alguns corrigidos, outros não, alguns inofensivos, outros com consequências”.

O ocorrido foi fruto de uma lotaria genética e Tânia Vargas reconhece a improbabilidade da situação: “Tínhamos mais hipóteses de ganhar o Euromilhões do que o Gonçalo ter esta mutação genética”.

Mas apesar de hoje em dia ser claro para Tânia que as síndromes do filho não se devem a antecedentes familiares, nem a algo que a consultora tenha feito durante a gestação, a mãe de Gonçalo não consegue abandonar o sentimento de culpa.

“Penso sempre ‘e se?’. Eu sei que não faz sentido racionalmente, que não existiu uma razão para tudo isto. Mas nos primeiros tempos, e agora reconheço que foi algo ridículo, cheguei a fazer uma lista de tudo o que tinha feito durante a gravidez que pudesse ter tido um impacto e causado a mutação do meu filho. Sendo que esta mesma mutação aconteceu ainda o Gonçalo era um aglomerado de células. Mas a culpa está lá sempre, quando ele se magoa, quando faz uma fratura”.

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O desconhecimento da sociedade. “Já me disseram ‘não pode estacionar aí, o seu filho é normal’”

Neste momento Tânia está de baixa de assistência a filho com deficiência, e o seu papel principal atualmente é o de mãe e cuidadora. Ainda assim, conseguiu terminar o mestrado em Marketing Estratégico e tem feito tudo o que está ao seu alcance para elucidar um pouco a sociedade para a realidade das deficiências invisíveis.

Em março de 2018, criou a página de Facebook “O Mundo do Gonçalinho", que conta com mais de 8.500 seguidores, onde Tânia partilha a sua história e realidade. “Dou a conhecer o meu dia a dia, acho que a página acaba por ser um apoio para outros pais e cuidadores em situações semelhantes, mas é também dedicada à sociedade em geral”.

Na opinião da mãe de Gonçalo, ainda existe muita falta de conhecimento em relação às deficiências invisíveis. "Ainda temos muita a ideia das crianças deficientes como vegetal, que não se mexem, são passivas e dependentes, mas há muitas realidades diferentes — nem tudo se deve a algo de errado que se passou no parto e criança ficou um vegetal para a vida inteira”.

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Tal como explica Tânia, existe uma panóplia de deficiências invisíveis, para a qual a sociedade não está preparada, informada e que leva ainda mais à exclusão.

“As pessoas pensam que se a criança não está totalmente dependente ou não é visível, não se passa nada. Já varias vezes estacionei em lugares reservados a pessoas com deficiências, coloquei o dístico, e apesar de o meu filho ter um grau de incapacidade atestado de 95%, já me disseram ‘não pode estacionar aí, o seu filho é normal’. Se não é visível não há problema nenhum ou são os pais que estão a exagerar”.

Para a mãe de Gonçalo, também é importante desmistificar que nem todos os dias são maus, nem que as mães (e pais) de crianças deficientes andam sempre tristes ou deprimidas: “Não somos especiais, não somos todos mães guerreiras, a carregar a ideia que ter um filho com deficiência é uma bênção. Somos pessoas normais”.