Autocuidado, o aparentemente simples ato de, como o nome indica, cuidarmos de nós próprios. Um conceito cada vez mais presente, mas também cada vez mais negligenciado por uma sociedade pautada pela pressa, pela rotina e pelos horários a cumprir, que promove a cultura do multitasking e do burnout.
Encaixar no quotidiano uma tarefa que passe por nos colocarmos em primeiro lugar pode parecer impossível, desnecessário e até talvez egocêntrico. Porém, para a psicóloga Helena Paixão, o autocuidado está longe de ser egoísmo. É, em vez disso, "amor próprio, porque, ao cuidarmos de nós, vamos estar muito mais disponíveis para os outros".
O autocuidado consiste "em qualquer ação que façamos de forma consciente e intencional que reverta a favor da nossa saúde global", elucida-nos esta psicóloga. Combate a atenção dispersa e a consequente desconexão connosco próprios. "Permite-nos abrandar, parar e ganhar consciência das nossas necessidades", acrescenta.
Com o intuito de promover o bem-estar, esta psicóloga, em conjunto com a Vitacress e com a editora Livros Horizonte, criou o "Alfabeto do Autocuidado", um pequeno guia de práticas onde cada letra está associada a uma palavra que diz respeito ao autocuidado. Ficou disponível a 4 de setembro em formato de cartas — mas com estas não vai conseguir fazer um "peixinho" ou jogar à sueca.
"A sociedade não nos ensina propriamente a colocarmo-nos na nossa hierarquia de prioridades"
Estas 26 sugestões para usar no dia a dia estão à venda por 6€ no site da Livros Horizonte. "A sociedade não nos ensina propriamente a colocarmo-nos na nossa hierarquia de prioridades. É um conceito ainda pouco vigente na nossa educação, que precisa de ser abordado, clarificado e praticado", considera a psicóloga clínica com 13 anos de prática na área.
Para Helena Paixão, o autocuidado "permite-nos cuidar de nós". É nesse sentido que surgem estas cartas, como "uma ferramenta dinâmica e interativa que nos ajuda a ampliar a nossa capacidade de autoobservação". É a partir daqui que "podemos identificar mais facilmente o quando, como e o que precisamos de fazer", consoante as nossas necessidades, de acordo com o que a psicóloga explicou à MAGG.
"Portugal está no topo do ranking em termos de perturbações de ansiedade e consumo de ansiolíticos", recorda, referindo-se à prática do autocuidado enquanto um "hábito diário para uma vida melhor". Para Helena Paixão, são vários os benefícios inerentes a este aparentemente fácil e rápido exercício.
Além de ajudar "a prevenir estados de doença física ou mental", concede "muito mais bem-estar" e tem um "impacto positivo na nossa longevidade". "Ajuda-nos a gerir melhor a ansiedade, porque permite-nos desacelerar", justifica, continuando: "Convida-nos a olhar um bocadinho para dentro e, a partir daí, podemos identificar como é que nos estamos a sentir".
Ao refletirmos acerca dos nossos sentimentos, das relações que estamos a nutrir e da qualidade da relação que estabelecemos connosco próprios vamos ganhar "mais conexão", de acordo com esta psicóloga, que defende que, para praticar o autocuidado, "basta meio minuto logo de manhã, antes de ativarmos logo o modo automático".
Acordamos, paramos um bocadinho e cumprimentamo-nos. "Como estamos? Como nos sentimos? Do que precisamos? Queremos um duche mais rápido, um duche mais lento? Um pequeno-almoço mais leve ou mais reforçado?", exemplifica. Queria, através de algo "objetivo", "simples" e "prático" como estas cartas, conseguir "tirar o autocuidado daquele conceito bonito que está dentro da gaveta".
"Convidarmo-nos a ter algum tempo para nós, marcarmos uma reunião connosco próprios na agenda, participarmos em atividades que nos fazem sentir bem, cultivarmos relações interpessoais construtivas, colocarmos o corpo em movimento" são algumas das formas de praticar o autocuidado.
O "Alfabeto do Autocuidado", lançado na mais recente edição da Feira do Livro de Lisboa, surgiu "através de um convite da Vitacress", empresa nacional que comercializa, entre outros produtos, ervas aromáticas, agrião de água, folhas para saladas e ervas aromáticas frescas. Este "psicólogo de bolso" agrega o autocuidado na dimensão física, psicológica, espiritual e emocional.
Esta "biblioterapia" surge para combater o facto de a nossa atenção ser "disputada por vários estímulos permanentemente", na "ótica de sensibilizar as pessoas e disseminar informação", promovendo "um vocabulário mais emocional". Com o "Alfabeto do Autocuidado", Helena Paixão quer que se retire uma carta que defina uma intenção para cada dia.
Encontrar uma palavra que correspondesse a cada letra do abecedário "foi fácil, no geral". A indecisão foi o maior desafio, já que existiam várias para certas letras, como por exemplo o "R", que poderia corresponder a "regime alimentar saudável", mas também a "responsabilidade pessoal". Eis alguns exemplos de práticas de autocuidado de acordo com Helena Paixão:
10 dicas de autocuidado consoante o abecedário
- Letra B - "Bem aventurados": esta carta fala sobre "permitirmo-nos ousar ser quem somos" e "procurar aceder mais à nossa essência". Portanto, lutar contra as camadas e as capas que vão sendo criadas para sobreviver às vivências e que nos tornam "uma pessoa que não somos realmente". Apela a "mais autoconhecimento" e a "ser mais quem somos".
- Letra C - "Compaixão": a compaixão, através do autocuidado, "permite dar colo ao que estamos a sentir" e "acolher". Ajuda a contrariar o habitual "diálogo interno destrutivo" e "serve como antídoto". Além disso, "tem um lado muito assertivo, que nos permite ter consciência do que é que queremos e precisamos mudar".
- Letra D - "Dieta equilibrada": esta carta sublinha a importância de uma boa alimentação para o nosso bem estar. Segundo Helena Paixão, a ansiedade e a alimentação estão relacionadas, já que "aquilo que escolhemos ingerir tem impacto no nosso bem-estar psicológico", tal como "a parte psicológica determina muito as escolhas alimentares que temos".
- Letra E - "Escutar": a capacidade de conseguirmos escutar-nos a nós e às nossas emoções. "Se estivermos em modo piloto automático não vamos conseguir perceber sequer o que estamos a sentir", alerta a psicóloga.
- Letra G - "Gratidão": para Helena Paixão, a gratidão é "uma espécie de músculo que podemos aprender a exercitar". Em vez de nos focarmos na parte menos boa das coisas, evitando entrar na habitual "espiral da vitimização ou da reclamação", devemos "focar a nossa atenção no que está bem, notando também aquilo que pode não estar bem". Ou seja, "observar os erros como uma lição de sucesso, como um ensinamento, numa perspetiva construtiva".
- Letra P - "Pausas conscientes": esta carta visa ajudar a "desenvolver a capacidade de percebermos que podemos e devemos fazer pequenas pausas ao longo do dia". Na perspetiva desta psicóloga, tirar apenas um minuto no nosso dia para fazermos esta pausa "pode ser a coisa mais consciente que fazemos por nós". "Pararmos, nem que seja um minuto, vai introduzir mais bem estar ao nosso dia", assegura.
- Letra R - "Responsabilidade pessoal": "é muito frequente as pessoas desresponsabilizarem-se por aquilo que sentem", crê a autora destas cartas, que considera que "tendencialmente, somos educados a culpar o outro, a projetar no outro". Em vez disso, defende que devemos "apropriar-nos" da responsabilidade pelas escolhas que fazemos, pelos comportamentos que temos e pela forma como gerimos os nossos pensamentos e emoções, em vez de reagir tanto. "O outro não me está a irritar, eu é que me estou a irritar. O outro não está a deixar-me triste, eu é que estou a ficar triste", explica.
- Letra S - "Saber priorizar-se": para Helena Paixão, "a nossa sociedade não nos ensina a priorizarmo-nos", mas trata-se de algo imperativo. A psicóloga recorre a um exemplo como metáfora: "Nos aviões, indicam-nos que, antes de colocarmos a máscara de oxigénio numa criança ou numa pessoa com necessidades especiais, primeiro temos de colocar em nós".
- Letra T - "Transformar": esta carta diz respeito a "transformar o medo em curiosidade". "O medo, embora seja uma emoção básica e necessária para a nossa sobrevivência, nem sempre é bem gerido, pode tornar-se muito limitador e gera ansiedade", recorda a psicóloga, que convida a "aprendermos a transformar as dores em dons", a "rigidez em flexibilidade" e o "perfecionismo implacável em autocompaixão".
- Letra Z - "ZZZ dormir": uma carta que frisa a importância das noites bem dormidas. "Se não tivermos um sono suficientemente reparador, isso vai impactar o nosso bem estar, na forma como nos posicionamos naquele dia", assegura a psicóloga, reforçando que a "qualidade do sono tem um papel muito importante na nossa saúde".
Helena Paixão é psicóloga clínica há 13 anos, mas foi há quatro que criou o seu próprio projeto profissional, formando uma equipa online "para dar resposta aos pedidos de consulta, que dispararam com a pandemia". As consultas presenciais acontecem numa clínica na Avenida Augusto Aguiar.
A psicóloga trabalha com uma "abordagem integrativa de terapias de terceira geração, cognitivo-comportamentais", que, de acordo com o que explicou à MAGG, são terapias que envolvem diálogo e reestruturação cognitiva e que se baseiam no mindfulness e também na compaixão.