Parece que o mundo está do avesso. Vejamos: os países nórdicos da Europa, como a Suécia, Finlândia ou Noruega, estão a ter noites tropicais e o Ártico está a derreter — sem esquecer que já sofreu mais de 100 fogos desde junho. Coisas estranhas estão a acontecer, mas, infelizmente, tudo aponta para uma mudança de paradigma que nos diz que este é o novo normal.
Na origem destes fenómenos bizarros está o aquecimento global, provocado por inúmeros fatores, todos relativos a ações humanas. As ondas de calor extremo, uma das consequências evidentes, são cada vez mais comuns. Os termómetros servem de prova: os recordes de temperaturas máximas têm, todos os anos, sido ultrapassados. O planeta está a ficar cada vez mais quente.
O mundo sofre as consequências e grita socorro na forma destes acontecimentos extremos. Os humanos não escapam: o corpo não está preparado para enfrentar mudanças tão radicais e inesperadas. E a mente também se ressente.
Ainda que o inverno e o frio sejam o cenário que mais se associa a uma saúde mental fragilizada, não podemos descartar os efeitos do calor. Temperaturas demasiado altas mexem com a cognição, com o humor, tendo potencial para agravar estados de pessoas que mentalmente já são mais vulneráveis. É isso que a ciência tem estado a mostrar. Ora veja.
1. Gera mais violência
O aumento da temperatura leva a um crescimento de 4% na violência em contexto interpessoal e de 14% em violência de grupo. São estas as conclusões do estudo “Quantifying the Influence of Climate on Human Conflict”. Segundo a mesma investigação, liderada por Marshall Burke, estes dados têm implicações significativas nos casos de violência doméstica.
Se as temperaturas continuarem a aumentar — o que é o mais previsível, ainda que esforços estejam a ser feitos para travar este aquecimento — os casos de conflito humano vão aumentar. As cidades são, de acordo com o investigador, os locais mais propícios a este fenómeno, pela falta de espaços verdes e estruturas feitas de asfalto e betão.
2. Aumenta as taxas de suicídio
A violência não será apenas contra terceiros. O suicídio também parece aumentar com o crescimento das temperaturas, diz também Burke noutra investigação, de 2018: nos Estados Unidos e no México, revela, as taxas de suicido têm vindo a aumentar juntamente com a subida dos termómetros, em 0,7% e 2,1%, respetivamente.
Em “Higher Temperatures Increase Suicide Rates in the United States and Mexico“, Burke diz que, caso as emissões de gases de efeito de estufa não sejam reduzidas, estima-se que entre 14 e 26 mil pessoas possam cometer suicídio nos Estados Unidos, até 2050.
3. Interfere com o humor
O mesmo estudo que falou no suicídio associado ao aumento da temperatura analisou mais de 600 milhões de comunicações nas redes sociais e descobriu que houve um aumento da utilização de linguagem depressiva e da proliferação de ideias de suicídio. Parece, assim, haver uma clara interferência do calor na saúde mental.
Segundo Marshall Burke, uma das causas poderá estar relacionada com a alteração dos níveis da seratonina, um neurotrasmissor que, em parte, interfere também na função de regular a temperatura do corpo.
4. Cognição comprometida
Pensar com muito calor não é fácil. E vários estudos já o vieram confirmar. Por exemplo: a investigação de 2016 levada a cabo pela universidade de Harvard, e publicada na revista "Plos Medicine", acompanhou estudantes e comparou os níveis de concentração, os tempos de reação ou a memória no decorrer de uma onda de calor de 12 dias. Os resultados mostraram que aqueles que viviam em dormitórios com ar condicionado tinham funções cognitivas significativamente mais despertas face ao grupo de estudantes que trabalhava em zonas sem ar condicionado.
De acordo com o estudo “Effects of Heat Stress on Cognitive Performance: The Current State of Knowledge”, as tarefas cognitivas mais complexas, como a memória de trabalho ou a identificação de padrões, são muito prejudicadas com temperaturas altas.
5. Aumento de insónia — e de fraca qualidade do sono
O efeito do calor na qualidade do sono também é evidente, pelo menos para quem dorme em casas sem ar condicionado. O sono é um pilar fundamental para a saúde física e mental e o aumento de temperaturas tem um enorme potencial para provocar insónias. Resultado: há privação de sono, que influencia o humor e a cognição, tendo também impacto em pessoas mais vulneráveis a depressões.
Segundo o estudo “Nightime Temperature and Human Sleep Loss in a Changing Climate”, de 2017, pessoas que residem em centros urbanos e em casas sem ar condicionado estão mais vulneráveis a este problema de sono — e, consequentemente, de foro mental.
6. Agravamento do estado de doentes com problemas mentais
São inúmeros os estudos que mostram que pessoas com transtornos psicóticos, de humor, de abuso de substâncias ou com deficiências cognitivas, podem ver os seus estados agravados em períodos com picos de calor, perdendo a capacidade para cuidar de si, tornando-se no grupo mais propenso a sofrer de insolações ou de outros problemas relacionados com subidas de temperatura.
Vamos a alguns exemplos. De acordo com o estudo “Acute Impacts of Extreme Temperature Exposure on Emergency Room Admission Related to Mental and Behavior Disorder”, realizado em Toronto, no Canadá, em alturas de ondas de calor, as emergências recebem mais doentes com doenças psiquiátricas. O mesmo resultado foi observado na Austrália, mostrou a investigação “The Effect of Heat Waves on Mental Health in a Temperate Australian City.”
Segundo o estudo “Deaths of psychiatric patients during heat waves”, picos de calor fazem aumentar a mortalidade para pessoas com doenças mentais.
Doentes com esquizofrenia são um grupo especialmente frágil uma vez que a regulação térmica está ligada à doença, vendo o seu estado psicótico agravado em dias quentes, diz a investigação “Layer Upon Layer: Thermoregulation in Schizophrenia”.
Ao mesmo tempo, e avança o estudo “Psychotropic Drugs Use and Risk of Heat-Related Hospitalization”, medicamentos para tratamento de problemas de foro psiquiátrico — antipsicóticos, antidepressivos — afetam a função de regulação de temperatura do corpo, podendo, com o aumento das temperaturas, levar à desidratação e a aumentar os níveis de lítio, o que deixa os pacientes à mercê do risco da toxicidade dos fármacos.