Já todos nos deparámos com apelos feitos por famílias que, de repente, veem um dos seus enfrentar uma doença cuja cura passa por um transplante de medula. Mas, por medo ou desconhecimento, são muitos os que não dão resposta. E se lhe dissermos que o processo é bem mais simples do que muitas vezes se pensa e que as implicações para o dador são praticamente nulas?

Vamos então esclarecer o processo.  Tenho de me sujeitar a uma cirurgia? Fico com dores? Há risco de vir a contrair leucemia depois do transplante? Posso doar medula mais do que uma vez? Estas são algumas das principais dúvidas, muitas vezes associadas a mitos sem fundamento.

Miguel tem 6 anos e uma doença rara. Todas as manhãs pergunta: "Mãe, com o que é que eu vou ter de me preocupar hoje?"
Miguel tem 6 anos e uma doença rara. Todas as manhãs pergunta: "Mãe, com o que é que eu vou ter de me preocupar hoje?"
Ver artigo

Apesar de Portugal ser um dos países com maior registo de dadores de medula óssea a nível mundial e o terceiro na Europa, são ainda vários os dadores que desistem do processo após serem chamados para mais testes devido à existência de compatibilidade com algum doente.

Para Pedro Guerreiro de Sousa, dador de medula em 2009, esta é uma situação incompreensível. "Não consigo perceber porque é que se desiste, faz-me realmente confusão. Para mim foi um processo completamente inverso. À medida que se foi aproximando fui vivendo do ponto de vista emocional um processo que era de uma responsabilidade muito grande mesmo", conta à MAGG.

Pedro tem 55 anos e é pai de três filhos. Quando, no final de 2008, foi chamado para doar medula estava à espera do terceiro filho e recorda que se encontrava na base de dadores há "cerca de três ou quatro anos". "Na altura, registei-me porque li a informação e percebi que era necessário medula. Felizmente nunca tive nenhum caso na família", refere.

"Em meados de 2008 fui chamado e disseram-me que eu era compatível com um recetor. Disse logo que sim, não senti reticência nenhuma", explica Luís à MAGG referindo que foi sempre acompanhado no IPO de Lisboa pelo Dr. Ernesto.

Pedro confessa que, apesar de ter conhecimento de que o processo é confidencial, quis saber alguns detalhes sobre o doente. "Na atura cheguei a saber que era um miúdo da idade do meu filho mais velho — que, na  época, tinha 9 anos — e que vivia em Paris."

"Hoje eu digo meio a brincar meio a sério que tenho três filhos e meio"

Para Pedro, há um processo importante que acontece antes da doação: "A consciência de que existe uma pessoa do outro lado que nós não sabemos quem é e que depende de nós", refere. E explica o processo, referindo que  tudo começa quando, nos quatro dias antes da doação, são retiradas ao recetor todas as defesas, ficando num espaço isolado. "Ficam à espera da minha medula e essa é uma responsabilidade muito grande. Nessa altura recordo-me que conduzia mais devagar, andava com muito mais cuidado."

Pedro Guerreiro de Sousa
Pedro Guerreiro de Sousa é também dador de sangue créditos: Facebook

Por ter a mulher grávida na altura, pediu ao médico para optar pelo método de recuperação mais fácil. No caso da a punção, que implica uma anestesia geral, explicaram-lhe que as implicações neste processo estariam mais ligadas à anestesia em si do que à retirada da medula.

Portugueses respondem a apelo. Filas de espera de horas para dar sangue
Portugueses respondem a apelo. Filas de espera de horas para dar sangue
Ver artigo

Depois de analisar o caso, o médico verificou que a diferença para o recetor não era quase nenhuma e, por isso, optaram por fazer a doação periférica que implica a estimulação das células uns dias antes. "Durante esses quatro dias levei as injeções [de estimulação]. Depois fui para o IPO e tive lá uma manhã inteira com um cateter num braço e outro noutro. O nosso sangue passa por uma máquina três vezes para a retirada a medula. Recordo-me de ver um saco com a medula, que foi rapidamente levada para ser enviada para França", explica. "Senti ali algum incómodo nos dias seguintes, mas foram coisas completamente secundárias que não alteraram em nada a minha vida."

Depois da doação, Pedro regressou à vida normal e mostra-se orgulhoso deste processo. "Ainda hoje eu digo, meio a brincar meio a sério, que tenho três filhos e meio. Há este meio filho que não sei onde é que está."

Luís Rodrigues, 26 anos, dador em 2020

Luís Rodrigues, 26 anos, decidiu aos 19 informar-se sobre o que era ser dador. Ao perceber o impacto que poderia ter a doação na vida da outra pessoa, fez a inscrição juntamente com os pais, que também se inscreveram.

Em 2020 foi chamado para fazer mais testes, visto que se verificava compatibilidade com um doente. Estávamos no começo da pandemia da COVID-19 em Portugal, o que fez com que Luís fosse acompanhado no IPO do Porto — ao qual se teve de dirigir duas vezes — e não no de Lisboa, onde vive. "Quando fui chamado disse logo que sim, nem sequer pensei muito sobre a questão", afirma.

O processo não tem custos para o dador e, no caso de Luís, as deslocações ao Porto, assim como a estadia, foram suportados pelas entidades competentes.

Antes do processo final foi sujeito a vários exames e, tal como Pedro, também Luís conseguiu saber algumas informações sobre a pessoa a quem ia fazer a doação. "Neste caso, o paciente era um bebé com cerca de um ano. Agora deve ter por volta de dois, se tudo tiver corrido bem, até porque nós não sabemos o que se sucede depois."

Fez a doação através de células periféricas retiradas pelo braço, não sendo sujeito a qualquer anestesia.  Para estimular as células teve de tomar injeções. "Consegue ser desconfortável e provoca alguns enjoos, mas nada que não se tolere. Acho que existe alguma fobia ao desconforto na nossa sociedade, mas eu consegui tolerar."

"Acho que é uma pequena ação que se pode transformar em algo maior e que não custa nada."

Após a colheita regressou à vida normal em poucos dias. "Tive um dia de repouso [terça-feira], na quarta-feira voltei ao trabalho com um ligeiro desconforto nos braços porque são muitas horas a tirar sangue, na quinta-feira já estava praticamente bom e sexta-feira já estava excelente."

Hoje, passados alguns meses da doação, sente-se bem, refere que não afetou em nada a sua saúde e acrescenta ainda que pelo facto de ser dador de medula ficou com isenção de pagar taxas moderadoras para o resto da vida.  "Tenho de fazer exames durante os próximos anos, sempre tudo pago."

"Não acho que isso tenha feito de mim melhor pessoa. Fui uma pessoa que calhou ter sido compatível e acho que a maioria também o faria".

Como é que homens homossexuais podem dar sangue? Critérios continuam "obsoletos" e "discriminatórios"
Como é que homens homossexuais podem dar sangue? Critérios continuam "obsoletos" e "discriminatórios"
Ver artigo

E para quem ainda não avança por medo, deixa um aviso: "É uma pequena ação que se pode transformar em algo maior e que não custa nada. É bastante acessível para todos e que não deveriam ter medo."

"Penso que as pessoas têm uma ideia errada do que é e não têm bem noção de que o processo é muito mais simples do que se pensa".

O que é a medula óssea e quais os requisitos para ser dador?

Antes de avançarmos para a desmistificação de alguns mitos, importa esclarecer o que é a medula e em que situações se recorre ao transplante. Segundo a Associação Portuguesa Contra a Leucemia, a medula óssea é um tecido esponjoso que preenche o interior de vários ossos, como por exemplo os da bacia, e é neste tecido que existem células progenitoras, ou seja, com capacidade para se diferenciarem e darem origem a qualquer célula do sangue periférico.  Numa situação normal, estas células renovam-se constantemente mantendo um número relativamente constante em qualquer momento.

Manuel Abecasis, antigo diretor do Departamento de Hematologia do Instituto Português de Oncologia de Lisboa — onde exerceu funções até dezembro de 2020 — e do Programa de Transplantação de Medula Óssea, começa por explicar à MAGG que, no caso dos dadores, é essa substancia gelatinosa que é retira parcialmente para permitir fazer o transplante.

Dr. Manuel Abecasis
Manuel M. Abecasis foi Diretor do Departamento de Hematologia do Instituto Português de Oncologia de Lisboa e é diretor do Programa de Transplantação de Medula Óssea. créditos: APCL

Quanto aos doentes que necessitam de transplante de medula, o especialista explica que, na maioria dos casos, essa necessidade está relacionada com alguma doença maligna no sangue sendo a leucemia a mais frequente. "Mas  há também  outras doenças, que ocorrem sobretudo em crianças e que têm que ver com o mau funcionamento do sistema imunitário da criança ou doenças hereditárias do metabolismo que podem também ser curados com esse método", esclarece Manuel Abecasis.

Para ser dador basta ter entre os 18 e os 45 anos, peso mínimo de 50 quilos, altura superior a 1.50m, ser saudável e nunca ter recebido transfusões após 1980. Para se registar, basta preencher um impresso após tirar uma pequena amostra de sangue. Contudo, esta deverá ser uma decisão voluntária e consciente e cabe ao dador informar-se antes de a tomar, uma vez que, depois de inscrito na base de dados, poderá ser chamado para salvar uma vida. E, para esclarecer quem ainda está de pé atrás quanto ao processo, a MAGG falou com o diretor do Programa de Transplantação de Medula Óssea, que esclareceu alguns mitos.

Mitos e Verdades

  • Posso-me inscrever como dador para uma pessoa em específico?

A resposta é não. "Esse tipo de situações não pode ser aceite porque essa não é a base na qual os registos funcionam", esclarece o especialista do IPO. A única hipótese de doar para uma pessoa em específico é quando se trata de um familiar, mas, nesse caso, a pessoa não chega a ficar na base de dadores.  "Se vai dar para um irmão, por exemplo, não fica no registo."

De acordo com a Associação Portuguesa Contra a Leucemia, o desejável é que o doador das células seja um irmão, visto que entre irmãos é maior a probabilidade de encontrar um dador compatível — em média, um em cada quatro irmãos é compatível.  Contudo, quando o doente não tem irmãos, ou os irmãos não são compatíveis, procura-se encontrar um dador compatível fora da família, algo que é difícil sendo por vezes necessário pesquisar entre 100 mil, 200 mil, 500 mil, ou mais de 1 milhão de dadores.

Deste modo, e em virtude dos protocolos que Portugal tem com outros países, os registos nacionais estão ligados a uma rede mundial que abrange um universo de mais de 13 milhões de dadores, havendo mundialmente cerca de 38 milhões de dadores. Assim, quando nos inscrevemos como dadores podemos doar para qualquer parte do mundo e "em virtude deste tipo de colaboração há também muitos doentes portugueses a receberem medulas que vêm de dadores estrangeiros", indica Manuel Abecasis.

  • Depois de me inscrever como dador posso, a qualquer momento, decidir sair da base de dados?

"Sempre que a pessoa quiser, pode sair da lista e nem tem de dizer porque é que quer sair. A pessoa é perfeitamente livre de deixar de estar na lista quando entender que já não quer estar", explica o hematologista, referindo que basta que a pessoa avise o registo português e indique a partir de que data já não está disponível para ser dador.

"Nós [médicos] não sabemos a razão pela qual as pessoas deixam de ser dadoras, somos apenas informados de que foram retiradas do registo e podem ter sido retiradas do registo por várias razões. Por terem tido uma situação de saúde que já não lhes permite serem dadores, por terem ultrapassado o limite de idade ou por terem emigrado, por  exemplo", explica o hematologista.

Para além desta possibilidade, existe ainda a opção de a pessoa se voltar a inscrever mesmo depois de ter informado o registo português da saída. "Tem de se inscrever novamente e fazer o processo outra vez, mas pode sempre voltar. Nós já temos tido dadores que dizem, por exemplo, 'nos próximos seis meses vou estar a trabalhar fora do País, portanto nesse período de tempo não estou disponível', Quem diz seis meses pode dizer anos", explica Manuel Abecasis.

  • Já me inscrevi como dador há vários anos, o meu nome continua na lista?

"O registo está feito de forma eletrónica e as pessoas mantém-se na base de dados até ultrapassarem a idade limite. Quando chegam a essa ideia são retiradas da base de dados ou são retidas antes, se houver alguma razão para isso."

Segundo Manuel, a idade limite de 45 anos está definida porque o que acontece com muita frequência é a pessoa se inscrever e só ser chamada cinco ou dez anos mais tarde. O especialista explica que não se justifica que se invista esforços em pessoas com mais de 45 anos uma vez que a probabilidade de virem a ser chamadas é muito pequena, sendo assim  "preferível aproveitar os recursos em pessoas mais jovens".

  • Há alguma hipótese de se saber para quem é feita a doação?

O especialista explica que é raro o dador ficar a saber alguma coisa acerca da pessoa a quem vai doar, visto que o processo requer sigilo absoluto. O mesmo acontece no caso do doente, que também não fica a saber quem foi o dador. "Já tem acontecido dadores portugueses darem células para um doente no estrangeiro e, mais tarde, o hospital receber um cartão ou até um pequeno presente de agradecimento da parte do doente. O doente manda a mensagem para o registo onde o dador está inscrito e essa carta é depois transmitida ao dador de forma anónima sem qualquer identificação possível."

  • A medula óssea é retirada da espinhal medula?

Não. Segundo o especialista, esta é uma " confusão frequente" dadas as parecenças nos nomes mas são duas coisas totalmente diferentes. "Quando nós temos de retirar medula óssea vamos buscá-la aos ossos da bacia não tem nada que ver com a espinal medula, que é uma coisa completamente diferente", afirma o hematologista.

  • Para doar medula tenho de me sujeitar a uma intervenção cirúrgica?

A extração de células da medula pode ser feita através de dois métodos diferentes. Num deles, a medula é retirada do interior dos ossos da bacia, por meio de punções. Este processo implica que o dador seja levado para o bloco operatório, onde lhe é dada uma anestesia geral.

A outra forma consiste na doação por meio de uma máquina que colhe o sangue da veia do doador, separa as células  e devolve os elementos do sangue que não são necessários para o paciente. Neste caso não há necessidade de internamento nem de anestesia, sendo todos os procedimentos feitos pela veia. Contudo, este método requer que o dador, durante os dias que antecedem a doação, faça a estimulação de fatores de crescimento através de injeções que levam à produção de células progenitoras.

"O dador tem sempre a primazia da escolha. São explicados os dois processos e a equipa que vai colher as células pode dizer que a equipa de transplante prefere determinado processo, mas a decisão final é sempre do dador. É ele quem decide como acaba por doar as células", afirma Manuel Abecassis.

  • Posso vir a desenvolver leucemia depois de doar medula?

Manuel Abecasis esclarece que este é um "receio que não tem fundamento nenhum". Quanto a outros aspetos, o especialista explica que, embora os efeitos secundários de doação sejam muito moderados, há sempre situações que pode interferir com a saúde do dador "como em qualquer procedimento médico".

"Nós não podemos dizer a um dador que ele não vai ter efeitos secundários nenhuns. É relativamente frequente quando as pessoas dão, por exemplo, através de uma das veias do braço poderem ter algum desconforto como enjoos ou cãibras, mas nada de extraordinário."

  • Posso doar medula óssea mais do que uma vez?

A resposta é sim, uma vez que a medula regenera. "Há circunstâncias particulares em que a pessoa pode ser solicitada a dar mais do que uma vez, já tem acontecido, mas são situações muito raras. A pessoa que dá pode ser contactada de novo para saber se está disponível para dar novamente."