Maria dos Anjos Catapirra tornou-se cuidadora informal em 2008, após a irmã ser diagnosticada com Alzheimer precoce. Na altura, pouco ou nada se falava sobre aquilo que era ser cuidador informal — e foi aí que Maria percebeu as dificuldades pelas quais estas pessoas passavam, para que lhes fosse dada alguma ajuda ou direitos.
A irmã tinha 48 anos e três filhos a cargo, dois deles menores, que passaram a contar com a ajuda de Maria dos Anjos. "Apercebi-me [em 2008] que ser cuidador informal neste País era igual a zero, ninguém queria saber de nós. Não houve nenhum apoio nem ninguém que me conseguisse ajudar minimamente e foi muito complicado. Nem os meus sobrinhos tiveram direito a apoio psicológico, porque ninguém quis saber se eles eram menores ou não."
À MAGG, revela que, nessa altura, escreveu para "todos os sítios possíveis e imaginários" para tentar perceber que apoios é que ia ter porque, uma vez que continuava a receber o mesmo ordenado, mas os gastos eram muito superiores, as dificuldades financeiras começaram a instalar-se. "Foi aí que comecei a perceber o que é que eram cuidadores informais e qual a falta de apoios. Comecei a interessar-me pelo tema e pela necessidade de haver legislação que apoiasse quem cuida", diz. Entretanto Maria acabou por perder a irmã, mas continua como cuidadora da mãe, há mais de oito anos — uma senhora invisual com 90 anos e problemas cardíacos.
Por ter percebido, desde cedo, as dificuldades pelas quais os cuidadores passam em Portugal, Maria dos Anjos Catapirra passou a fazer parte das reuniões de um grupo de cuidadores e ex-cuidadores que levou à criação de uma petição pelo Estatuto do Cuidador Informal, entregue na Assembleia da República em outubro de 2016.
Em 2018, esse mesmo grupo, do qual Maria dos Anjos faz parte, decidiu formalizar a Associação Nacional de Cuidadores Informais (da qual Maria é atualmente vice-presidente). "A associação é criada como o resultado necessário para dar voz ao movimento que nós já tínhamos e, acima de tudo, para lutarmos pelos direitos dos cuidadores informais."
Legislação atual é considerada insuficiente para as necessidades dos cuidadores
Em setembro de 2019 conseguiram que fosse aprovada a Lei n.º 100/2019 que define o Estatuto do Cuidador Informal, legislação essa que Maria dos Anjos considera "muito insuficiente", uma vez que não teve em consideração vários itens que os cuidadores informais consideram relevantes. Como exemplo, Maria dos Anjos refere o facto de, atualmente, ainda não ser considerada a carreira contributiva das pessoas que cuidam.
"Há pessoas cuidadoras que cuidam durante 20, 30 ou 40 anos e não têm direito a nada. Depois temos também o problema da legislação laboral, que nós ainda não sabemos como é que vai ficar para o cuidador informal. Era de extrema importância que lhes fossem dados alguns direitos. As ausências [ao trabalho] são constantes, as deslocações para médicos e fisioterapias também são muitas e é muito complicado as pessoas estarem a gastar as próprias férias porque não têm outras soluções", diz a vice-presidente da Associação Nacional dos Cuidadores Informais, referindo que "a legislação laboral continua a ser uma lacuna muito grande".
Para José Soeiro, sociólogo e deputado do Bloco de Esquerda, a lei aprovada em 2019 apresenta também algumas falhas. Nomeadamente o facto de, mesmo considerando só os concelhos aos quais os projetos-piloto se destinavam (30 em todo o País), o estatuto ter chegado a uma ínfima parte das pessoas que precisavam.
Porquê? Segundo o deputado, porque "o modo como a lei foi depois regulamentada pelo governo estabeleceu um conjunto de condições de acesso, nomeadamente ao subsídio de apoio ao cuidador, que foram fatores muito fortes de exclusão".
"O balanço que se pode fazer desta primeira fase da aplicação do Estatuto é dececionante relativamente à expetativa"
Esta segunda-feira, 3 de janeiro, o Presidente da República promulgou o decreto que estabelece os termos e condições do reconhecimento do Estatuto do Cuidador Informal e que alarga a todo o território continental as medidas de apoio aos cuidadores informais. Apesar de o mesmo ainda não ter sido publicado, José Soeiro explica à MAGG que este alargamento era algo que já estava previsto desde o início (e que o que tem de ser visto agora é o que mais irá mudar).
"O balanço que se pode fazer desta primeira fase da aplicação do Estatuto do Cuidador Informal é uma avaliação dececionante relativamente à expetativa que foi gerada. Dececionante até no sentido do escasso número de pessoas que tiveram acesso ao estatuto", diz.
Na opinião do deputado, "há várias dimensões do estatuto que precisavam de ser concretizados e não foram": como a lei do trabalho ou o acesso ao descanso do cuidador. Além disso, até os aspetos que foram concretizados, como o subsídio de apoio ao cuidador, apresentaram, segundo o político e sociólogo, várias falhas — "exigências burocráticas que excluíram a maioria dos cuidadores", diz.
"A maioria dos cuidadores não teve acesso ao subsídio de apoio ao cuidador por, por exemplo, não terem a mesma morada fiscal da pessoa cuidada, já serem reformados, ou pelo facto de ser preciso comprovar a dependência", explica.
Maria dos Anjos Catapirra é um destes casos. Apesar de cuidar há oito anos da mãe, não tem acesso ao estatuto de cuidadora informal principal devido ao facto de não apresentar a mesma morada fiscal que a da progenitora.
"Em termos de aplicação das medidas, a grande diferença [entre ser cuidador informal principal ou não principal] limita-se ao subsídio de apoio", explica Maria. "Quem legislou devia pensar que se eu cuido há oito anos, 24 horas por dia, sinto-me no direito de ser cuidadora informal principal porque não há outra."
"A lei tem de se aplicar às minhas necessidades e não sou eu que tenho de me adaptar às necessidades da lei"
"Durmo cá, não tenho um espaço para a minha roupa, a minha casa tem as minhas coisas lá e acho que no espaço de dois anos fui lá uma vez. Tudo isto faz parte da dignidade de quem cuida e eles esquecem-se", continua.
Para Maria dos Anjos, não deveria ser o sistema informático a ditar quem é, ou não, cuidador informal só por ter em conta uma morada diferente. "A lei tem de se aplicar às minhas necessidades e não sou eu que tenho de me adaptar às necessidades da lei."
À MAGG, explica que, entretanto, se conseguiu reformar. Apesar de ter saído prejudicado (uma vez que ainda não estava na idade da reforma), Maria considerou que esta era a melhor alternativa. "Entre os custos para ter a minha mãe num espaço, ou ter de pagar a alguém que cuidasse dela, e o que eu vou perder de reforma, achei que ela está bem melhor comigo."
Segundo José Soeiro, o Estatuto do Cuidador Informal foi, desde 2019, reconhecido a 977 pessoas e só 352 é que receberam efetivamente o dinheiro. Além de todas as condições já mencionadas, está ainda estipulado que, para ter acesso ao subsídio "os rendimentos de referência do agregado familiar do cuidador informal principal têm que ser inferiores a 531,84€", lê-se no site da Segurança Social. Tal como frisa o deputado, "só cabe nesta condição quem for mesmo muito pobre".
"O valor que estava estipulado em projeto piloto era claramente insuficiente"
Ainda assim, tanto para José Soeiro como para Maria dos Anjos, fala-se de um subsídio que não vai, de todo, ao encontro das necessidades (e no máximo poderia rondar os 440€). "O valor que estava estipulado em projeto piloto era claramente insuficiente. Seria importante que pensassem que se as pessoas estão a cuidar 24h por dia, 365 dias por ano, deveriam ter direito a um subsídio para ter o mínimo de dignidade", diz Maria dos Anjos.
Apesar de o documento, promulgado a 3 de janeiro, ainda não ter sido publicado oficialmente em Diário da República, segundo o comunicado da reunião do Conselho de Ministros de 16 de dezembro, citado pelo jornal "Público", "ao abrigo desta regulamentação, após o período de experiências-piloto em 30 concelhos, as medidas de apoio ao cuidador informal, como o descanso do cuidador, a promoção na integração no mercado de trabalho ou o subsídio de apoio ao cuidador informal passam agora a poder ser aplicadas em todo o território continental" e vêm estipulados.
Maria dos Anjos diz que quer "acreditar que, neste período de tempo, as infraestruturas foram alargadas para permitir o descanso do cuidador" porque, segundo a vice-presidente da Associação de Cuidadores Informais, "mesmo que as pessoas queiram optar por não cuidar e institucionalizar, não há respostas".
"As poucas que vão existindo são privadas e têm custos, como me chegaram a pedir a mim, na ordem dos 2.500€ mensais: o que é impensável para uma família portuguesa", diz, referindo que o problema não está só na falta de lares como (e principalmente) nas alternativas de apoio a crianças com demências ou a precisar de cuidados paliativos. Segundo Maria dos Anjos, nessa faixa etária a oferta é ainda menor.
No caso dos idosos, o último relatório da Comissão Europeia sobre o envelhecimento refere que "quase metade das pessoas com idade igual ou superior a 65 anos são vistas como possuindo uma deficiência ou uma limitação permanente no exercício das suas atividades", contudo, são muito poucas as que têm resposta às suas necessidades.
"Temos um enorme problema de escassez de infraestruturas", salienta José Soeiro, referindo que, segundo o último levantamento que fez, em julho de 2021, o número total de vagas da rede nacional de cuidados continuados era de menos de 16 mil — sendo que há cerca de 800 mil pessoas dependentes no País, diz.
Deputado considera ser necessária a criação de uma rede pública de cuidados sociais
De acordo com o deputado, "Portugal tem, em termos de comparação europeia, uma escassíssima taxa de cuidados formais de respostas sociais para pessoas dependentes" — o que faz com que exista uma sobrecarga para as família e faça aumentar o fenómeno dos lares clandestinos. "Estima-se que cerca de 35 mil pessoas estejam em lares clandestinos — respostas que são as que as pessoas arranjam e podem pagar."
Para José Soeiro, existe em Portugal um problema estrutural no modelo de cuidados que está relacionado com o facto de não haver uma rede pública de cuidados sociais, assim como há uma rede pública de cuidados de saúde.
"Distinguimos, em termos da política pública, que o direito à saúde é algo que o estado tem de garantir através da existência de um serviço público. Mas o direito ao cuidado social, quando não tem uma dimensão predominantemente de saúde (quando se trata da manutenção das pessoas que estão com uma dependência que não pode ser curada), nunca foi encarado como um direito — e isso faz com que não haja uma rede pública de respostas em todo o território. Está nas mãos das IPSS [Instituição Particular de Solidariedade Social], às quais as pessoas só têm acesso se houver vaga e não é algo que possam reclamar."
Além da rede de cuidados, tanto José Soeiro como Maria dos Anjos consideram que o apoio de cuidados domiciliários deveria ser alargado. "Seria importante o profissional de saúde de referência porque estamos isolados e é muito complicado quando temos algum problema de saúde", refere a cuidadora Maria dos Anjos, acrescentando ainda que o apoio psicológico é crucial.
Como vice-presidente da Associação de Cuidadores Informais, Maria dos Anjos refere ter sérias dúvidas sobre a implementação destas medidas, uma vez que o que estava definido em Orçamento de Estado (que não foi aprovado), eram 30 milhões de verba — a mesma que já tinha sido dada nos dois anos anteriores. "30 milhões certamente não daria para a contratação de pessoas para dar andamento às medidas e apoiar os cuidadores informais", assume.
Para José Soeiro, este é um tema que, a nível partidário, "está bastante esquecido" e "não tem tido a centralidade que deveria ter" no debate político. Contudo, tendo em conta o País cada vez mais envelhecido, o deputado considera que esta é uma das questões centrais dos próximos anos.
"As transformações democráticas e culturais nas próprias famílias fazem com que o modelo que temos atualmente de cuidados, que é um modelo que imputa a esmagadora maioria dos cuidados às próprias famílias, seja insustentável porque as família não vão conseguir dar conta", remata, salientado que quanto menos oferta pública houver, mais ofertas clandestinas haverão também.